Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Tinha de tudo, mas não sabia

Erudito, como Carlos Gomes e Villa-Lobos, ou figura de raiz da música popular brasileira, ao lado de Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha? Pianista, como Arthur Rubinstein, que fez questão de conhecê-lo quando visitou o Brasil, em 1918, ou pianeiro, designação pejorativa que caracterizava, na passagem do século 19 para o 20, os instrumentistas com pouca formação musical, mas muito balanço, que se apresentavam em festas familiares e antessalas de cinemas?

Se fosse ele mesmo a responder essas perguntas, que continuam a intrigar os especialistas neste ano em que se comemoram os 150 anos de seu nascimento, o compositor Ernesto Júlio de Nazareth (1863-1934) reagiria como fez diante de Rubinstein: simplesmente se recusaria a tocar suas próprias obras-primas, como Brejeiro e Odeon, que o visitante queria tanto conhecer, colocando-se à disposição, entretanto, para interpretar Chopin, justamente a especialidade do virtuoso polonês radicado nos EUA.

Permanentemente cindido entre a ambição de se tornar um pianista erudito e a vocação de compositor popular, Nazareth acabou por incorporar um personagem fictício de Machado de Assis. No conto “Um Homem Célebre”, de 1888, o escritor narra o tormento de Pestana, músico que se coloca diante do piano rodeado por retratos de mestres eruditos, mas não consegue compor senão popularíssimas polcas, logo assobiadas nas ruas, para seu desgosto. A imitação da arte pela vida, neste caso, é o ponto de partida da tese de doutorado do professor Cacá Machado, publicada no livro O Enigma do Homem Célebre – Ambição e Vocação de Ernesto Nazareth (São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2007), que analisa “o nó cego do drama existencial” de um homem alçado ao sucesso e à glória, “que teve de tudo, mas morreu com a sensação de que não tinha nada”.

Situado pelo musicólogo Vasco Mariz como um dos precursores da música nacionalista, ao lado de Alexandre Levy e Alberto Nepomuceno – os primeiros compositores a enfrentar a mentalidade “europeizante” do público de concertos no Brasil –, Ernesto Nazareth teve uma vida que o crítico Irineu Franco Perpétuo resumiu como “um catálogo dos lances mais trágicos das biografias dos compositores da escola austro-germânica: lutou contra a falta de dinheiro, como Mozart; perdeu a audição de maneira progressiva, como Beethoven; era sifilítico, como Schubert, e já não estava de plena posse de suas faculdades mentais no final da vida, como Schumann”.

Apesar de tudo, porém, deixou uma obra de 218 composições escritas, que podem ser consultadas em dois sites (www.ernestonazareth.com.br e www.ernestonazareth150anos.com.br), criados, respectivamente, pela cravista Rosana Lanzelotte e pelo Instituto Moreira Salles. Segundo o etnólogo musical Haroldo Costa, o modesto Ernesto Nazareth “pavimentou o caminho do lundu ao samba, estacionando temporariamente na polca, no tango, na habanera e no maxixe, deixando em cada um a marca de seu gênio, fixando as formas até chegar à síntese perfeita: o choro”.

“Pianolatria”

Por volta de 1860, os alagadiços vizinhos do canal do Mangue, na paróquia de Santana, foram aterrados para dar lugar a um bairro que, já em 1872, era apontado pelo primeiro recenseamento realizado no Brasil como o mais populoso do Rio de Janeiro. A Cidade Nova, assim chamada, surgia pobre e fedorenta para abrigar portugueses recém-imigrados que, em razão dos baixos aluguéis, iam morar ao lado de negros escravos e libertos, empurrados para a corte desde que a cultura do café entrara em decadência no interior fluminense. Ali, onde a promiscuidade resultaria, conforme o estudioso José Ramos Tinhorão, “em uma área perfeitamente diferenciada e portadora de características de comportamento social e de cultura próprias, entre as quais se incluiria um gênero de música e de dança em tudo e por tudo original”, nasceu Ernesto Nazareth, no dia 20 de março de 1863. Aquela região, próxima da zona portuária, seria também o berço do samba carioca, em dois endereços: a Praça Onze e o número 117 da Rua Visconde de Itaúna, onde ficava a famosa casa da Tia Ciata.

O segundo filho do despachante aduaneiro Vasco Lourenço da Silva Nazareth e de Carolina Augusta Pereira da Cunha Nazareth – um menino de olhos verdes, cabelos pretos e pele cor de jambo – logo se sentiu atraído por um objeto que dominava a sala de jantar daquela casa humilde no morro do Nheco (atual morro do Pinto): um piano de armário. Nele as mãos delicadas de dona Carolina – que animava os saraus e festas familiares – guiaram as do filho pelo universo de Mozart, Chopin, Liszt e Schumann.

Introduzido no Brasil por dom João VI, o piano – tanto de cauda como vertical – foi privilégio de poucos até 1850, quando, diante da proibição do tráfico de escravos, o espaço liberado nos navios barateou sua importação. Até então o instrumento custava um conto e duzentos mil-réis, quantia correspondente a dois anos de salários de um pai de família de nível médio. Com sua popularização floresceu o mercado de partituras, de aulas inicialmente dadas por professores estrangeiros e de concertos e audições, atividades que seriam o ganha-pão de Ernesto Nazareth durante quase toda a sua vida. Até as primeiras décadas do século 20, antes da chegada dos discos e do rádio, dedilhar o piano se constituiu no principal meio de ouvir música em casa, levando a preferência pelo teclado a uma febre social que Mário de Andrade chamaria de “pianolatria”.

Em 1873, além de perder sua grande incentivadora (a mãe morreu ainda nova), Nazareth caiu de uma árvore e sofreu hemorragia no ouvido direito, o início dos problemas auditivos que o acompanhariam daí em diante. Após o luto, o pai apresentou o filho a Eduardo Madeira, funcionário do Banco do Brasil que engrossava a renda com aulas avulsas de música e que foi seu professor durante um ano e meio, reconhecendo-lhe o talento e preparando-o para voos solos, tanto no terreno da execução como no da composição.

Tango brasileiro

A primeira obra de Nazareth, composta em 1877, quando estudava no Colégio São Francisco de Paula (ele foi colega de Olavo Bilac), foi a polca-lundu Você Bem Sabe, dedicada ao pai. O título, dado pelo rapazote de 14 anos, serviu para mostrar ao genitor a profissão que havia escolhido, isso porque Vasco Lourenço preferia ver o filho em atividades mais rentáveis. Dois músicos estrangeiros radicados no Brasil foram decisivos no início de sua trajetória: o pianista português Arthur Napoleão, cuja prestigiosa casa de venda de partituras comercializou durante muito tempo as obras de Nazareth, e o negro americano oriundo de New Orleans Charles Lucien Lambert, seu professor mais qualificado e que mais o influenciou, embora só lhe tenha dado um reduzido número de aulas. Essa foi a solução encontrada por sua família para que continuasse a carreira, baldados os esforços para mandá-lo estudar na Europa, como ocorrera com Carlos Gomes, o mais célebre músico brasileiro do século 19.

Vedado o caminho que poderia transformá-lo em concertista, Nazareth enveredou pela composição, produzindo torrencialmente o gênero de música de andamento vivo e compasso binário que, originário da Boêmia, tornara-se a mais popular dança de salão do Oitocentos. No Brasil, desde a década de 1840, a polca tomara conta da corte do imperador Pedro II, extravasando dos ambientes aristocráticos para fundir-se nas ruas com o lundu africano, passando a ser executada também pelos conjuntos à base de flauta, cavaquinho e violão, os chorões. Precursora da música popular urbana e da cultura de massas, a polca já apresentava entre nós características pop expressas em títulos pitorescos como Cruz, Perigo!, segunda composição publicada de Nazareth, e Gentes! O Imposto Pegou?, também de sua autoria e que faz alusão a uma cobrança extra de 20 réis nas passagens de bonde em 1880, fortemente repudiada pela população carioca no episódio conhecido como Revolta do Vintém.

A polca em solo nacional, porém, já havia perdido a característica marcial europeia, tendo sido recriada de forma relaxada e sincopada por Chiquinha Gonzaga, Joaquim Antonio da Silva Callado, Anacleto de Medeiros e, principalmente, Ernesto Nazareth. Às vésperas da proclamação da República ela estava se transformando em maxixe, ritmo impregnado de balanço que, ainda na década de 1930, era descrito de forma bastante preconceituosa pelos vocabulários oficiais: “Dança lasciva; casa de bailes públicos, onde é exibida, e frequentada por mulheres de vida fácil e homens sem escrúpulos”.

Para se legitimar nos clubes e teatros da elite, o maxixe precisava mudar de nome, e a solução encontrada foi chamá-lo de tango brasileiro, diferenciado de seu homônimo argentino “por ser música pura, e não dramática”, segundo explicação do próprio Nazareth. Gênero que o consagrou e ao qual dedicou mais da metade de sua produção, o tango brasileiro era mais para ser ouvido do que dançado, e essa seria sua principal diferença em relação ao maxixe, palavra que causava arrepios ao compositor: a única vez em que a usou, assinou a partitura com um pseudônimo e o resultado foi Dengoso, um sucesso internacional estrondoso. Muito antes de Aquarela do Brasil e Garota de Ipanema, Dengoso ganhou mais de cem gravações nos EUA e na Europa, chegando a fazer parte de um musical de Hollywood.

A passagem de Nazareth das polcas para o tango deu-se em 1892, com Rayon d’Or, designado de maneira híbrida como polca-tango. No ano seguinte viria a consagração com Brejeiro, que ganhou letra do poeta Catulo da Paixão Cearense em versão intitulada O Sertanejo Enamorado. Numa época em que o direito autoral não existia e as editoras não tinham a obrigação de repassar ao autores os direitos sobre a venda das partituras, o compositor recebeu apenas 50 mil-réis pela música, que chegou a ser gravada na França pela Banda da Guarda Republicana de Paris. A quantia sequer cobria suas despesas, agora pai de família que sofria de reumatismo grave e já padecia dos primeiros sintomas de surdez.

Belle Époque

Em 1893, a jovem República brasileira procurava apagar de sua capital os traços de cidade africanizada que o Rio de Janeiro ostentava desde os tempos coloniais, de acordo com a definição do sociólogo Gilberto Freyre. A demolição do enorme cortiço Cabeça de Porco, nas proximidades da estação da Estrada de Ferro Central, foi o ponto de partida para o “bota-abaixo” de Pereira Passos, o prefeito das desapropriações e das demolições, e consequente construção no local da atual Avenida Rio Branco. Os matizes da modernização da Belle Époque brasileira foram assim sintetizados pelo historiador Nicolau Sevcenko: “Uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense e a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante”.

Na virada do século, Ernesto Nazareth procurou desesperadamente se adaptar a esse contexto, portando-se perante a burguesia com o mesmo servilismo que Franz Joseph Haydn, o Pai da Sinfonia, devotava aos aristocratas de sua época. Tocava nas casas editoras para divulgar partituras e ensinar as mocinhas de boa família a interpretar corretamente suas composições. Exibia-se, também, em clubes e em cinemas como o Odeon, que chegou a manter uma pequena orquestra, com Nazareth ao piano e Villa-Lobos no violoncelo, em sua luxuosa sala de espera, frequentada até por Ruy Barbosa. À empresa Zambelli, proprietária do estabelecimento, dedicou o tango Odeon, que, imortalizado como chorinho, ganharia letra de Vinicius de Moraes na década de 1960.

Apesar do bom comportamento e de aparentar seus tangos mais com a habanera cubana que com o excomungado maxixe, Nazareth nunca foi inteiramente aceito pela elite carioca. Dois episódios comprovariam isso. Primeiro, o escândalo causado pelo fato de Alberto Nepomuceno, a figura mais proeminente da música erudita brasileira de então, tê-lo incluído entre os participantes de um concerto que, em 1908, celebraria o centenário da abertura dos portos brasileiros por dom João VI. O segundo caso, mais escabroso, ocorreu em 1922, quando a polícia teve de ser chamada ao Instituto Nacional de Música para garantir que Nazareth pudesse ali executar obras de sua autoria – além de Brejeiro, ele tocou Nenê, Bambino e Turuna.

Recepção oposta obteve, no entanto, em São Paulo, em 1926, na primeira vez em que se ausentou do Rio de Janeiro, com 63 anos. Dos admiradores paulistas ganhou um piano e foi brindado, antes do concerto que realizou no Teatro Municipal, com uma palestra de Mário de Andrade, que recomendou sua obra aos recitalistas e o definiu como um “compositor brasileiro dotado de extraordinária originalidade, porque transita com fôlego entre a música popular e erudita, fazendo-lhe a ponte, a união, o enlace”. Quando um repórter da “Folha da Noite” perguntou a Nazareth se conhecia uma referência de um crítico francês que o chamara de “genial”, respondeu apenas: “Não sei por quê. Não mereço nada disso”. No mesmo jornal ele afirmaria, sobre o presente recebido: “Passei oito anos sem ter piano. O senhor talvez não calcule o que representa isso para um homem fascinado pelo piano. Parece castigo, não é? Hoje em dia consigo tocar muita coisa clássica, mas exclusivamente pelo meu próprio esforço”.

Desfecho

Já com os sintomas da surdez bem presentes, em 1929 Nazareth perdeu a esposa e passou a amargar seu trágico declínio físico e mental. No ano seguinte, ao assistir a um concerto da pianista Guiomar Novaes, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, saiu no meio do espetáculo com uma crise de choro, perguntando-se: “Por que não fui estudar na Europa? Eu queria ser como ela!” Em 1932, ele recebeu as últimas homenagens em vida. Após um concerto patrocinado pela Sociedade Sul-Rio-Grandense, no Rio de Janeiro, o pintor polonês Bruno Lechowski não se conteve e, para espanto do público, beijou frenética e sofregamente um atônito Nazareth. Ato contínuo foi buscar um quadro para presenteá-lo. Nazareth realiza, logo após, uma excursão pelas cidades gaúchas de Porto Alegre, Rosário do Sul e Santana do Livramento. Nesta última acontece o derradeiro recital de sua carreira.

Do Rio Grande do Sul, acompanhado pela filha Eulina, o compositor segue para Montevidéu. Na capital do Uruguai teve de ser retirado à força de uma casa de música porque tocava piano convulsivamente, sem querer parar. De volta ao Rio de Janeiro é atendido no Hospital de Neurossífilis, em pavilhão anexo ao Hospício Dom Pedro II, onde hoje está instalada a reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na praia Vermelha. Após uma série de exames o diagnóstico é de taboparalisia ou sífilis maligna quaternária, casos em que o cérebro é afetado.

Internado em janeiro de 1933 na Colônia Juliano Moreira – um manicômio em Jacarepaguá com área do tamanho de Copacabana e que chegou a abrigar milhares de doentes mentais, entre os quais o artista plástico Arthur Bispo do Rosário (ver PB nº 408) –, teve anotadas em seu prontuário pelo médico Zacheu Esmeraldo as seguintes observações: “Mostra-se completamente privado de autocrítica e de autodomínio. Revela constante e ruidosa euforia, conta intimidades de família que se afastam da conversação e brigam com todo sentimento de conveniência. Ausência total de senso moral. Não fixa os fatos recentes e narra baralhadamente os remotos. Embora impere sempre a euforia, tem às vezes crises de ruidoso pranto”.

No dia 1º de fevereiro de 1934, Ernesto Nazareth fugiu da colônia, como já fizera outras vezes. Após quatro dias de buscas, seu corpo foi encontrado boiando em um reservatório de água nas proximidades. Um pouco antes, revelara ao musicólogo Mozart de Araújo, que fora visitá-lo: “Tenho para este carnaval uma marcha que vai abafar. O título é: Estás Maluco Outra Vez!” Com essa ironia final despediu-se da vida o compositor que ainda amargaria décadas de esquecimento – um ostracismo que perdurou até que o pianista erudito Arthur Moreira Lima gravou, pelo extinto selo Marcus Pereira, uma série de discos resgatando suas principais criações. Na vertente popular coube a Jacob do Bandolim transformar em choros aquelas obras-primas que valeram ao autor o epíteto de Rei do Tango. “Mas até hoje”, relata o cavaquinista Henrique Cazes, “quando alguém puxa um Nazareth menos conhecido na roda, boa parte dos músicos depõe os instrumentos, intimidada pelas sofisticações que consagraram o gênio do pianismo brasileiro.”