Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Frutas no Polígono das Secas, quem diria!

JOSÉ PAULO BORGES

A frase, em tom de profecia maldita, foi emitida em 1877: “A cultura de uvas dificilmente vai dar certo nesta região. Os cachos vão ter sempre parte dos frutos maduros, outra meio maduros e outra verdes. Bons para produzir apenas um ótimo vinagre”. Tanto pessimismo saiu da pena do pesquisador inglês Richard Francis Burton, em sua passagem por Juazeiro, na Bahia, durante expedição pelo rio São Francisco, partindo de Sabará, em Minas Gerais, e terminando no Atlântico. Até alguns anos atrás – não mais que 50 – bem que a afirmação do inglês fazia sentido. O que se via nas duas margens do Velho Chico, divisa dos estados de Pernambuco e da Bahia, era uma imensidão de terra seca e esturricada, pincelada a maior parte do ano pela cor cinza, que lembrava a aridez do solo. Uvas e mangas de qualidade brotando do chão sertanejo, nem pensar.

Se, em vez de usar a prosaica canoa da época, mister Burton aterrissasse hoje em dia no aeroporto internacional da cidade pernambucana de Petrolina, do outro lado da Ponte Presidente Dutra, sobre o importante curso de água que divide os estados da Bahia e Pernambuco, iria surpreender-se com a paisagem vista do alto. Milhares de hectares com vários tons de verde de diversas culturas agrícolas – onde predominam a uva, estigmatizada pelo palpite infeliz, e a manga –, recortados pelo azul dos canais de irrigação de onde saem as águas que fertilizam essa parte do sertão encravada no Polígono das Secas.

Outras surpresas aguardariam o incrédulo pesquisador. Atualmente, considerando apenas os preços pagos aos produtores, a agricultura irrigada do polo Petrolina-Juazeiro – área do semiárido sertanejo no vale do Submédio São Francisco, situada a cerca de 800 quilômetros de Recife e 500 de Salvador – responde por mais de R$ 1 bilhão por ano em valor bruto de produção. Mais de 300 mil empregos diretos foram criados no entorno dos municípios da região beneficiados pela agricultura irrigada, o que contribuiu para reduzir, em média, 13% os índices de pobreza numa área historicamente afligida pela fome, seca e miséria.

Contudo, a realidade que hoje em dia causa surpresa e admiração não passava, em meados do século passado, de sonho de alguns visionários, como o espanhol José Molina Membrado. Em 1958, com o apoio técnico da antiga Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), atual Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), ele importou da Europa algumas variedades de uva – a itália, entre elas –, que cultivou numa gleba de 7 hectares, no município pernambucano de Santa Maria da Boa Vista, às margens do São Francisco.

A iniciativa foi um sucesso. A videira de Membrado entrou para a história como a primeira plantação de uva em escala comercial introduzida no semiárido brasileiro, feito que o jornal “New York Times”, anos mais tarde, na edição de 15 de maio de 2007, saudou como “improvável”. O espanto do importante jornal americano se justifica. Afinal, até então vigorava o dogma de que somente as regiões de clima temperado, localizadas entre os paralelos 30º e 45º de latitude norte (França e Estados Unidos) e 30º e 45º de latitude sul (Chile, Argentina, Austrália e África do Sul), poderiam cultivar o fruto para a produção de vinhos. As videiras sertanejas contrariam essa regra. Elas brotam entre os paralelos 8º e 9º de latitude sul, único semiárido do mundo capaz de produzir vinhos aprovados por enólogos exigentes.

O vale do São Francisco tem cerca de 12 horas de sol diárias durante o ano todo, em contraste com Bordeaux, na França (região grande produtora de vinho), onde o período ensolarado, por dia, chega a ser de menos de 9 horas no inverno. “Os vinicultores nordestinos podem colher o ano todo, reduzindo consideravelmente seus custos e garantindo melhor qualidade a seus produtos”, destacou o “NYT” na reportagem, ao citar, como vantagem comparativa, o astro-rei que brilha praticamente o ano todo no vale da irrigação.

“Sem dúvida, o sol, que sempre foi visto como um problema para o sertão, por ser associado à seca, representa enorme vantagem para o polo Petrolina-Juazeiro, pois a constância do calor, a alta luminosidade e a baixa umidade relativa do ar, juntamente com a irrigação, criam condições favoráveis para uma agricultura eficiente”, ressalta o jornalista e publicitário Carlos Laerte. “Esses fatores, somados ao fato de o nordeste ter, como característica original, o único clima semiárido tropical do mundo, permitem a colheita de duas safras e meia por ano, com produtividade acima da média nacional”, diz Laerte, que há anos acompanha o desenvolvimento da fruticultura na região.

Novas variedades

Muitos erros foram cometidos até que os produtores do semiárido acertassem o passo e transformassem a caatinga numa bênção do sol bem no meio do sertão. Os primeiros perímetros irrigados não escaparam da salinização em algumas áreas, e a deficiência dos sistemas de drenagem, além do despreparo (especialmente dos pequenos agricultores) para lidar com a técnica de irrigação também causaram transtornos. Aos poucos, as dificuldades naturais foram sendo contornadas. Hoje, calcula-se que, dos 230 mil hectares potencialmente irrigáveis da região, entre 13% e 15% disponham de projetos de irrigação. Porém, apesar de acreditarem que ainda há muito espaço para crescer, os produtores vislumbram algumas dificuldades, como os altos impostos que incidem sobre a fruticultura nacional e a falta de infraestrutura portuária, por exemplo. “Em determinados períodos do ano, alguns países impõem taxas brutais às frutas do vale do São Francisco, podendo torná-las mais caras que as importadas de outros mercados produtores, como o Chile”, esclarece Carlos Laerte.

Todavia, é bom deixar claro, nem só de manga e uva de mesa vive a fruticultura da região. A citricultura ensaia os primeiros passos e tem tudo para se expandir com êxito no vale do São Francisco, já que as condições climáticas são altamente favoráveis. Segundo a Embrapa Semiárido, experimentos com variedades comerciais de laranja, lima ácida, limão, tangerina e pomelo (fruta semelhante à laranja, mas maior e com polpa ácida), especialmente, apontam o polo Petrolina-Juazeiro como área promissora. Técnicos da instituição avaliaram as potencialidades de frutas cítricas em alguns porta-enxertos e ficaram entusiasmados com os resultados. As perspectivas são boas, aliás, não só no que diz respeito ao cultivo quanto no que se relaciona ao consumo in natura e industrial.

E tem mais. A busca por novas opções de cultura para o vale motivou o desenvolvimento do projeto Introdução e Avaliação de Cultivos Alternativos para as Áreas Irrigadas do Semiárido Brasileiro, uma parceria da Codevasf com a Embrapa Semiárido e outras instituições – e os resultados são alentadores. “As pesquisas apontam a pera, o caqui e a maçã como frutos capazes de alcançar excelente produtividade na região”, garante Paulo Roberto Lopes, pesquisador da Embrapa. “As culturas escolhidas para os experimentos foram desenvolvidas sob irrigação, de modo a oferecer retorno econômico”, ele explica. Segundo o técnico, o plantio é feito nas estações experimentais da Embrapa e em áreas de produtores (nos perímetros irrigados) que manifestam interesse em participar da pesquisa. “O acompanhamento das atividades é realizado semanalmente”, diz Lopes. “Visito as áreas experimentais e faço as recomendações técnicas necessárias para promover a produção de frutas nas condições climáticas do vale. Os resultados são animadores.”

Para que os estudos com as novas culturas produzam resultados práticos, foi elaborado um projeto de pesquisa previsto para contar com o apoio financeiro do Ministério da Integração Nacional, por meio do programa Mais Irrigação, lançado em novembro do ano passado. De acordo com Lopes, no plano de trabalho estão relacionados todos os passos de pesquisa e desenvolvimento, bem como as atividades previstas para os próximos cinco anos. “As variedades de pereira e macieira pesquisadas necessitam de, no mínimo, 400 horas de frio, com temperatura inferior a 7,2 ºC. Aqui no vale do São Francisco não temos nem um minuto sequer com essa temperatura e, no entanto, estamos produzindo maçãs, peras e caquis”, informa, com entusiasmo, o especialista da Embrapa.

A agricultura irrigada no vale do São Francisco ganhou destaque na sessão “Como Melhorar o Acesso de Pequenos Produtores aos Mercados”, do Fórum de Sustentabilidade Empresarial da Rio+20, conferência das Nações Unidas sobre desenvolvimento sustentável realizada no Rio de Janeiro, em junho de 2012. Na ocasião, os engenheiros agrônomos Rodrigo Vieira e Frederico Calazans e o engenheiro eletricista Juan Ramon Fleischmann, da Codevasf, mostraram os resultados de uma mudança no sistema de irrigação utilizado por pequenos produtores do perímetro de Mandacaru, em Juazeiro. “O trabalho é inovador e baseia-se na teoria da eficiência de aplicação da água e do consumo de energia a partir da alteração realizada na técnica de irrigação, que trocou a gravidade por sistemas pressurizados”, explicam os técnicos da Codevasf. De acordo com os especialistas envolvidos, a medida permitiu uma economia de aproximadamente 50% do total de água utilizado na irrigação e um aumento da área plantada da ordem de 23%. “Com isso, é possível obter maior produtividade e lucratividade, além da melhoria da qualidade dos frutos e da redução de custos”, garantem.

As deficiências

Há o outro lado da moeda, porém. O Projeto Bebedouro, na zona rural de Petrolina – mais antigo perímetro de irrigação do vale, em atividade desde 1968 – até pouco tempo atrás abrigava o maior percentual de pequenos produtores em situação de inadimplência na região: 70,09%. É comum entre os agricultores a ocorrência de falências por dívidas bancárias, bem como de reclamações devido à carência de apoio ao setor. O fato é que, hoje, muitas das propriedades pioneiras não conseguem se sustentar e são passadas adiante. Mesmo com a mudança no sistema de irrigação em alguns lotes, a água ainda é cara para o produtor, que enfrenta problemas de manutenção dos canais e com o baixo conhecimento técnico.

Bebedouro possui boa variedade de produção, com destaque para culturas permanentes (uva, goiaba, coco, mamão e pinha) e temporárias (melancia, milho e feijão). O perímetro atende com relativa eficiência o mercado interno, bem menos exigente, mas não tem condições para competir no âmbito internacional. A rede de atravessadores e as centrais de abastecimento, em geral mal estruturadas no tocante ao transporte, ao acondicionamento e ao armazenamento e manejo das frutas, também dificultam a vida dos pequenos produtores. De certa forma, Bebedouro está provando o gosto amargo do vinagre vaticinado pelo explorador inglês Richard Francis Burton.

Apesar dessas dificuldades, Sebastião Lima da Silva, um agricultor de pequeno porte, tem obtido bons resultados e pode ser considerado uma referência em Bebedouro. Dá gosto ver a videira de uva itália, principalmente, que ele e sua família cultivam no lote de 16 hectares no perímetro irrigado a 40 quilômetros do centro de Petrolina. A água que dá vida à plantação vem do São Francisco, ali pertinho, e o bombeamento, segundo o agricultor, de 75 anos, não sai muito caro, pois é feito à noite, quando o preço da energia elétrica chega a cair até 90%.

O caráter quase artesanal do trabalho se evidencia na habilidade e no carinho do agricultor com algumas das atividades fundamentais, tais como o desbaste e a poda. “Numa videira os custos com a mão de obra são altos, não dá para ter muitos empregados. Por isso, toda a família trabalha junto”, conta Sebastião. Natural de Afogados de Ingazeira, cidade do sertão do Pajeú, em Pernambuco, Sebastião desde sempre labutou na agricultura. Tangido pela seca, ainda jovem e na companhia da mulher e de três filhos ele tentou a sorte, anos seguidos, na agricultura no interior de São Paulo. Foi quando ouviu falar dos “projetos de irrigação” que estavam sendo instalados pelos lados de Petrolina e Juazeiro. “Voltei, e como tinha experiência no campo ganhei um lote de 6 hectares em Bebedouro.” Mesmo com o suporte da Codevasf e da associação de agricultores do perímetro, as dificuldades foram muitas (Sebastião viu vizinhos se desfazerem de seus lotes). Então, resolveu “socializar” sua propriedade entre os nove filhos. Deu certo, tanto que pôde comprar um lote maior, de 16 hectares. Já os filhos moram em boas casas no perímetro, com motos e carros rurais nas garagens.

Sebastião, em verdade, descobriu por intuição o que os técnicos já sabiam: as maiores dificuldades enfrentadas pelos pequenos produtores irrigantes não dizem respeito ao cultivo, mas à falta de conhecimento sobre a gestão do negócio. Ou, como dizem os especialistas, ao tal “controle do processo produtivo”. Agora, que ninguém pergunte a Sebastião quanto a atividade rende em sua conta bancária. Ele disfarça, dá uma boa risada e muda de assunto.

Uma história singular

A irrigação da agricultura sertaneja não é um fenômeno novo. A captação à beira do São Francisco, com o uso de toscas rodas d’água, já era observada na década de 1940 em pequenas propriedades rurais nos municípios pernambucanos de Belém do São Francisco, Cabrobó e Orocó. Novo é o caráter moderno que foi assumido por ela a partir da instalação no eixo Petrolina-Juazeiro, nos anos 1960, dos grandes perímetros públicos destinados às culturas irrigadas sob a responsabilidade da Codevasf. “O surgimento de uma produção agrícola integrada à indústria no semiárido nordestino decorreu fundamentalmente da intervenção estatal sobre o meio rural da região, mediante a implantação dos projetos públicos de irrigação”, afirmam os economistas e professores João Policarpo Rodrigues Lima, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e Érico Alberto Miranda, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

O Estado, segundo os dois especialistas, “estruturou todo um aparato que incluiu fornecimento de crédito rural, promoção de pesquisas agropecuárias, construção de estradas e de redes de energia elétrica, instalação de escolas técnicas e de ensino superior, e modificação da vazão do rio São Francisco mediante a construção da Barragem de Sobradinho, mudando radicalmente o modo de fazer agricultura na região”. E o cultivo daquela terra seca, fustigada pelo sol – que antes da expansão da agricultura irrigada quase não tinha valor comercial, sendo majoritariamente ocupada por posseiros –, passou a ser feito com o emprego de métodos mais avançados, como motobombas e bombas elétricas, microaspersão e fertirrigação, além do uso de fertilizantes e sementes selecionadas.

Resultado: enquanto a área irrigada no país registrou crescimento de 266% no período de 1970 a 1990, em igual espaço de tempo seu crescimento no nordeste saltou 530%. “Com o advento da irrigação, a agricultura assumiu o papel de principal atividade econômica da região, levando ao aumento da população, inclusive no meio rural. Paralelamente, registrou-se um vertiginoso incremento das atividades comerciais, de serviços e industriais. Isso é algo singular na política da grande irrigação, algo que não se verificou nos demais programas de desenvolvimento regional”, enfatizam os professores Miranda e Rodrigues Lima. Eles afirmam que “a expansão da atividade agrícola irrigada levou, também, à substituição de produtos tradicionalmente cultivados no sertão, principalmente a cebola, por itens de maior valor comercial destinados ao mercado externo, com destaque para a uva e a manga”. E relatam que, para atender aos novos parâmetros de consumo, os produtores se articulam com entidades de pesquisa, universidades, órgãos de assistência técnica e instituições de financiamento à pesquisa com vistas ao desenvolvimento de novas variedades, mais produtivas e adequadas ao padrão de consumo internacional.

Miranda e Rodrigues Lima destacam ainda a criação, em 1988, da Associação dos Produtores e Exportadores de Hortigranjeiros e Derivados do Vale do São Francisco (Valexport) como um marco na organização dos produtores empenhados em abrir mercados no exterior. Na prática, porém, a participação dos pequenos produtores na entidade ainda é reduzida. Na opinião de muitos desses ruralistas, cujas principais demandas dizem respeito a crédito, problemas de inadimplência e informações sobre o mercado, a Valexport é “um clube ainda fechado, restrito aos grandes agroempresários”.