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A mulher e a comida

Por: Xico Sá

I –Na cidade

Você, amigo, sai com a pequena e ela só belisca, qual um passarinho, uns saudáveis farelos ou engole umas folhinhas sem graça. Que desgosto. Você caprichou na escolha do restaurante, acordou com água na boca por um prato que só você sabe onde encontrá-lo, quer fazer uma presença, fazer bonito com a cria da sua costela.

Que desgosto, a gazela mira o ambiente com “nojinho”, de tão fresca. Uma estraga-prazeres, eclipse de um belo sabadão ensolarado.

Ah, nada mais bonito do que uma mulher que come bem, com gosto, paladar nas alturas, lindamente derramada sobre um prato de comida, comida com sustança. Os olhinhos brilham, a prosa desliza entre a língua, os dentes, sonhos,o céu da boca. Ela toma uma caipirinha, a gente desce mais uma, sábado à tarde, nossa doce vida, nossos planos, mesmo na velha medida do possível.

Pior é que não é mais tão fácil assim encontrar esse tipo de criatura. Como ficou chato esse mundo em que a maioria das mulheres não come mais com gosto, talher firme entre os dedos finos, mãos feitas sob medida para um banquete nada platônico.

Época chata essa. As mulheres não comem mais, ou, no mínimo, dão um trabalho desgraçado para engolir, na nossa companhia, alguma folhinha pálida de alface. E haja saladinha sem gosto, e dá-lhe rúcula!

A gente não sabe mais o que vem a ser o prazer de observar a amada degustando, quase de forma desesperada, um cozido, uma moqueca, uma feijoada completa, uma galinha à cabidela, massa, um chambaril, um sarapatel, um cuscuz marroquino/nordestino, um cabrito, um ossobuco, um bife à milanesa, um tutu na decência, mocotó, um baião de dois, uma costela no bafo, abafa o caso!

Foi embora aquela felicidade demonstrada por Clark Gable no filme “Os Desajustados’’, quando ele observa, morto de feliz, Marilyn Monroe devorando um prato de operário. E elogia a atitude da moça, loa bem merecida.

Além do prazer de vê-las comendo, pesquisas recentes mostram que as mulheres com taxas baixíssimas de colesterol costumam ser mais nervosas, dão mais trabalho em casa ou na rua, barraco à vista, intermináveis discussões de relação... Nada mais oportuno para convencê-las a voltar a comer, reiniciá-las nesse crime perfeito.

Moças de todas as geografias afetivas e gastronômicas, aos acarajés, às fogazzas, aos pastéis, aos cabritos assados e cozidos, ao sanduíche de mortadela, à dobradinha à moda do Porto, ao lombo – de lamber os lábios! –, ao churrasco de domingo para orgulho do cunhado que capricha na carne e sabe a arte de gelar uma cerva. E aquela fava, meu Deus, com charque, enquanto derrete a manteiga de garrafa, último tango do agreste.

O importante é reabrir o apetite das moças, pois, repito, senhoras e senhores, o velhíssimo mantra: homem que é homem não sabe sequer – nem procura saber – a diferença entre estria e celulite.

Até a próxima e desejo a todas as mulheres um final de semana com muita gula e todos os pecados capitais possíveis. Sem culpa, meninas!

II –No sertão

No terreiro de casa, passa o rio São Francisco, meio acabrunhado depois da construção da vizinha hidrelétrica de Xingó. No quintal, tem a grota de Angicos, onde Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros foram chacinados no ano-calibre de 38, 1938. No cardápio, dona Gilda Correia Nunes, 58 anos, mãe de 12 criaturas, transforma a memória de necessidades e secas brabas em gastronomia alternativa.

Da cabeça-de-frade, aquele cacto redondinho com o cocuruto vermelho, faz um doce de lamber os beiços; do talo da urtiga faz uma salada sob medida para acompanhar o surubim, peixe que já escasseia no velho Chico cansado de guerra. Do facheiro, também nascida na teimosa flora semi-árida, sai uma geléia de primeira.

“A gente tem que aprender a tirar desse deserto tudo que é sustança”, dá o exemplo. “E isso vem de longe, eu já aprendi com a minha mãe, que aprendeu com a dela, que aprendeu mais atrás ainda e as minhas filhas já fazem tudo melhor do que eu.”

Luíza, novinha cheirando a leite, é uma dessas criaturas. Faca amolada, tira os espinhos dos cactos com a habilidade de um japonês cortando peixe para fazer sushi – comida típica lá deles. Um mar de água, o cacto desmancha-se na bacia.

“Muita gente já matou a sede, em tempo ruim de verdade, com essas plantas”, repete a narrativa que ouviu dos mais velhos. “Os bodes tiram os espinhos espezinhando a cabeça-de-frade, depois enchem o bucho d ´água, felizes. Deus sabe o que faz.”

O doce do cacto é de botar abaixo qualquer regime ou cuidado de mulher com a silhueta. Lembra doce de mamão verde, mas é muito melhor. Embora algumas mais jovens já sigam os padrões estéticos importados na parabólica da TV, sertanejo que é sertanejo aprecia mesmo é uma moça roliça, cheinha. A modelo Gisele Bündchen teria sérias dificuldades para arrumar marido na nação semi-árida de verdade. Não casaria por aqui.

Macho considerado também é o que apresenta sinais de fartura para encobrir o esqueleto. Homem fornido, redondo na cintura e nas bochechas, pança que dá o ritmo em qualquer forró.

“Hoje em dia, na capital, tem essa moda de graveto, coisa sequinha, só o osso, as moças parecem aquelas vaquinhas da seca, andam tudo desconjuntadas, pernas destrambelhadas, vixe!, que diabo de tempo é esse?”, pergunta dona Gilda. “Tem moça que é só o fiapinho de gente. E moça rica, com condição de comer direitinho.”

De certa forma, o pendor pelos mais cheinhos e cheinhas, sinais de bonança, não deixa de ser uma vingança estética contra a memória da fome, sertão dos flagelos. A busca da fartura até nas carnes de casamentos e pecados, cercas tantas do amor.

Mas no restaurante familiar de dona Gilda, de nome Angicos, batismo que nem carece de placa, as moças sequinhas das metrópoles escapariam com peixes e saladas da caatinga.

“Mas aviso logo: comer pouco aqui é uma desfeita”, diz. “Gosto de quem come como se o mundo fosse acabar logo um tempinho depois.” Para a sobremesa, além dos doces, redes estendidas debaixo de mangueiras garantem uma sesta de rei.