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Estamos vivos, câmbio...

Por: SILVIA KOCHEN

Em junho de 2010, um raro fenômeno meteorológico provocou uma tragédia em Alagoas. As chuvas vieram com uma intensidade inédita, causando uma enxurrada que deixou mais de 20 municípios ilhados e um número superior a 50 mil pessoas desabrigadas, além de vários mortos. As cidades mais atingidas ficaram sem comunicação com o mundo, uma vez que toda a rede de telefonia fixa e móvel foi atingida pelas águas.

Nos dias seguintes, algumas pessoas se aventuraram nas estradas lamacentas até alcançar os morros mais altos da região. Eram radioamadores. Eles montaram torres de difusão de sinal de rádio nos pontos mais elevados das cidades isoladas, pois assim a transmissão ficaria melhor. Em seguida, instalaram equipamentos em vários prédios das cidades atingidas pela calamidade. Passaram, então, a transmitir informações para uma central de operações da defesa civil em Maceió, para orientar as ações de socorro e inteirar outros radioamadores da situação, a fim de que pudessem passar adiante notícias aos familiares das pessoas ilhadas.

Os radioamadores fizeram uma escala de revezamento para manter as transmissões 24 horas ininterruptas nos dias subsequentes, enquanto as redes de telefonia fixa e celular ainda não tinham sido restabelecidas, o que só aconteceu bem mais tarde. Eles eram voluntários da Rede Nacional de Emergência de Radioamadores (conhecida como Rener), que é ativada em casos de emergência ou de calamidade pública pela Secretaria Nacional de Defesa Civil, do Ministério da Integração Nacional. Em conjunto com entidades locais e nacionais de defesa civil, os radioamadores auxiliam os trabalhos de busca de informação sobre pessoas que estão nas áreas atingidas, orientam equipes de socorro e fazem inúmeras outras tarefas essenciais nesse momento.

A rede Rener permanece atuante praticamente o tempo todo, como quando ocorreram enchentes em Santa Catarina em 2008, as chuvas que praticamente destruíram o centro histórico de São Luiz do Paraitinga, no interior de São Paulo, em 2010, as enxurradas que deixaram a Região dos Lagos fluminense isolada nos últimos verões e em Xerém, no município de Duque de Caxias (RJ), no início de 2013.

Fernando Luiz Gonçalo é um dos voluntários da Rener. Radioamador desde 1990 e participante da rede desde 2000 (ela foi reformulada em 2003, quando ganhou sua atual configuração), ele conta que, por causa de seu trabalho, não pôde ir até São Luiz do Paraitinga em 2010, mas ficava em São Paulo, onde mora, recebendo as informações passadas pelos radioamadores que transmitiam da cidade ilhada. Ele anotava recados de que algumas pessoas foram encontradas e estavam bem, e os repassava aos familiares. O mesmo aconteceu em 2012, com quatro famílias isoladas na Região dos Lagos, quando lhe deram a missão de avisar aos parentes que todos estavam sãos e salvos. “A emoção de transmitir uma boa notícia como essa toma conta da gente”, diz Gonçalo.

A rede Rener tem cerca de 380 radioamadores cadastrados apenas no município de São Paulo. Com frequência, eles são convocados a fazer exercícios relativos a sua atuação em casos de enchentes, apagões e campanhas de doação de órgãos ou de sangue. É uma prova da importância dos radioamadores, mesmo na era da internet. Em qualquer canto do mundo onde haja uma tragédia – como terremotos, furacões, enchentes, incêndios florestais etc. –, os radioamadores estarão atuando. Isso porque muitas vezes essas catástrofes interrompem a rede de telefonia, fixa e móvel, ou ocorrem em regiões onde nem sequer há infraestrutura para esses sistemas, como em áreas remotas de florestas ou desertos.

Preconceito e descaso

O radioamadorismo teve início com as primeiras transmissões de rádio, na última década do século 19. Um padre brasileiro foi o pioneiro na transmissão de voz humana sem o uso de fios. Suas primeiras experiências com esse objetivo datam de 1892, mas só foram documentadas para a posteridade em junho de 1900, quando o “Jornal do Commercio” noticiou que no dia 7 daquele mês “no alto de Santana, na cidade de São Paulo, o padre Landell de Moura fez uma experiência particular com vários aparelhos de sua invenção, no intuito de demonstrar algumas leis por ele descobertas no estudo da propagação do som, da luz e da eletricidade através do espaço, as quais foram coroadas [sic] de brilhante êxito”. Assim foi descrita a primeira emissão radiofônica da história.

Apesar de reconhecido hoje como o patrono do radioamadorismo no Brasil, Landell teve de enfrentar muito preconceito e descaso em relação às suas invenções. Nessa mesma época, o italiano Guglielmo Marconi obtinha reconhecimento internacional pela invenção do telégrafo sem fio, surgido em 1896, e que usava o código Morse.

Ainda se passaria algum tempo até que surgissem as primeiras fábricas de aparelhos de rádio, e muitas pessoas começaram a montar seus próprios equipamentos, dando origem ao hobby que hoje é conhecido como radioamadorismo. Nos Estados Unidos, onde isso mais se desenvolveu, foi criado o primeiro clube de radioamadores em 1909. O passatempo tornou-se tão popular que, em 1912, surgiu a primeira lei para regulamentar a atividade, exigindo que seus participantes requisitassem licenças de operação. No Brasil, o radioamadorismo também começou a se difundir nessa época e teve sua primeira regulamentação legal em 1924.

O crescimento do setor teve um impacto fundamental para o desenvolvimento de muitas tecnologias, como o radar, a telefonia celular, a transmissão de dados por meio de micro-ondas e mesmo o princípio de funcionamento dos fornos de micro-ondas. Também foi graças aos radioamadores que ficamos sabendo que as ondas de rádio se refletem na superfície lunar, fenômeno que pode ajudar a melhorar as telecomunicações. As experiências do próprio Landell de Moura, com o uso de feixes de luz para transmitir dados, também resultaram em tecnologias como o controle remoto de aparelhos eletrônicos e as fibras ópticas.

O sistema de telefonia celular de hoje, por exemplo, utiliza o mesmo esquema de funcionamento usado há quase um século por radioamadores. Como as transmissões dos rádios mais populares têm alcance pequeno, uma mensagem costuma ser transmitida de um radioamador a outro até que alcance seu destino. Da mesma forma, as operadoras de celular instalam torres de alcance limitado em vários pontos, que vão transmitindo sinais de uma para outra até chegar ao destinatário. Porém, ao contrário de uma torre de celular, uma estação de radioamador pode ser portátil e transmitir sinal de qualquer lugar do globo.

Identificação própria

Marcelo Hideo Motoyama é radioamador desde 1983, quando tinha 15 anos. “O radioamadorismo causava no jovem de 30 anos atrás o mesmo impacto provocado pelo Facebook no de hoje”, diz ele, que é vice-presidente da sessão paulista da Liga de Amadores Brasileiros de Rádio Emissão (Labre). Ele teve o primeiro contato com a atividade influenciado pelo pai, que também era radioamador. Quando começou, diz Motoyama, havia entre 70 mil e 80 mil radioamadores registrados no Brasil. Hoje eles são 30 mil, dos quais cerca de 10 mil estão em São Paulo. Estima-se que no mundo existam cerca de 2,5 milhões, a maioria deles nos Estados Unidos e no Japão.

Para virar radioamador, é preciso primeiro fazer uma prova, ministrada pela Labre. Aprovado, o candidato ganha sua licença para a classe C e habilitação para falar no rádio em certas faixas. Ao passar para a classe B, é preciso dominar a telegrafia, pois boa parte das comunicações ainda são feitas em código Morse. A classe A é a mais completa, que habilita o radioamador a falar em todas as faixas de frequência.

O vice-presidente da Labre explica que, em qualquer lugar do mundo, cada radioamador tem uma identificação própria, que é dada por uma combinação alfanumérica de caracteres, fornecida a partir da localização de sua base. A identificação de Motoyama é PY2FN, sendo que o PY2 corresponde ao estado de São Paulo. O Brasil, no caso, está dividido em dez regiões – uma para as ilhas oceânicas (PY0) e as outras nove para diferentes partes do território continental.

Embora o radioamadorismo seja praticado de forma anônima, são famosas as identificações de algumas celebridades, a exemplo de EA0JC, do rei Juan Carlos da Espanha; CN8MH, do rei Hussein, do Marrocos; LU1SM, do ex-presidente argentino Carlos Menem... Entre os falecidos, há a indicação de silent key (ou chave silenciosa) e estão nessa lista o ex-presidente brasileiro Juscelino Kubitschek (PY1JKO), a escritora Rachel de Queiroz (PT7ARQ), o rei Hussein da Jordânia (JY1) e o cosmonauta russo Yuri Gagarin (UA1LO), o primeiro homem a viajar pelo espaço sideral.

O que de fato motiva os usuários desse sistema de comunicação é fazer o maior número de contatos possível, e para comprová-los eles trocam cartões QSL, uma espécie de postal com a identificação do radioamador. Motoyama estima que já tenha reunido cerca de 40 mil QSLs. Para ter validade, o QSL precisa ser certificado por uma entidade local de radioamadorismo, que no caso do Brasil é a Labre. Assim, a associação reúne centenas de cartões e os manda em pacotes para as entidades dos países correspondentes. Atualmente, porém, com o surgimento do QSL eletrônico, houve uma grande redução no número de associados da Labre.

Os radioamadores costumam fazer competições que visam premiar quem cumprir determinadas tarefas. Por exemplo, juntar o maior número de QSLs, reunir QSLs do maior número de regiões de certo país ou do mundo, fazer mais contatos em períodos predeterminados, realizar mais comunicações com radio-amadoras, e por aí vai. Aliás, as mulheres são muito valorizadas nessa atividade, pois em escala global apenas entre 15% e 20% dos radioamadores são do sexo feminino, relata Vanderley Cabral, presidente da Labre-SP.

Lugares remotos Contudo, não é só a competição que desperta o interesse dos radioamadores. Cabral conta que se tornou radioamador em 1980, quando foi apresentado à atividade por um tio de sua primeira esposa. Técnico em eletrônica, ele logo se apaixonou pela possibilidade de montar seu próprio rádio. Na década de 1980, participou de vários eventos importantes como radioamador voluntário usando uma base móvel, instalada em seu carro. “Havia uma campanha de vacinação contra a poliomielite, cuja central funcionava no Hospital Emílio Ribas, na capital paulista. Os radioamadores informavam sobre os locais aos quais era preciso mandar novos lotes de vacinas para garantir o abastecimento”, lembra.

Quando ocorrem acidentes, o auxílio de um radioamador é com muita frequência fundamental. Por exemplo, em 2007, quando um avião da Gol caiu em uma fazenda mato-grossense após o choque com um jato Legacy, o dono das terras avisou um radioamador, que transmitiu a informação às autoridades a fim de que tomassem as providências cabíveis.

Vigilantes das comunicações, os radioamadores costumam captar transmissões trocadas entre aviões ou trens e seus centros de controle. Foi a partir de uma conversa ouvida da cabina do avião da Air France que caiu no mar em junho de 2009 que um radioamador ajudou a localizar os destroços da nave. Outro radioamador contribuiu para esclarecer, em 2000, as circunstâncias de um choque de trens em Perus, na região metropolitana de São Paulo, pois havia gravado a transmissão partida do centro de controle para um dos maquinistas de uma composição apinhada de passageiros, que parecia não ouvir os alertas de que um trem desgovernado corria em sua direção.

Além disso, o rádio às vezes é utilizado para facilitar a vida dos próprios usuários do sistema. Cabral lembra que, quando sua primeira esposa faleceu, teve de recorrer ao rádio para avisar um parente que se achava em excursão em Mato Grosso. Motoyama conta também que foi procurado por uma pessoa que queria saber notícias de um parente por ocasião do terremoto seguido de tsunami, em 2012, no Japão. Acabou contatando por e-mail um radioamador naquele país, que, solícito, transmitiu o recado.

Uma modalidade de radioamadorismo que atrai a atenção é a expedicionária. Como é possível levar uma estação portátil para qualquer ponto do globo, muitas vezes organizam-se expedições para instalar uma base em lugares remotos. O objetivo é ampliar as possibilidades de locais com que os usuários podem fazer contatos. As estações também contam com um localizador formado por uma sequência de três pares de letras. O primeiro, em que são usadas as letras “A” a “R”, representa uma região que engloba 20º de latitude por 10º de longitude, dividindo a superfície do planeta em 324 campos. Cada um desses campos é subdividido em cem (dez em latitude por dez em longitude), que recebem um segundo par de caracteres, que é numérico. O terceiro par de caracteres, em que aparecem as letras “A” a “X”, dá origem a quadrículos menores para indicar a posição. Para uma localização mais precisa, é possível ampliar a codificação com novos pares de caracteres, alternando pares de algarismos com pares de letras.

Jamboree no ar

Entre os locais alvos de expedições estão bases na Antártida, o recife de Scarboroug (que só aparece em maré baixa e é alvo de disputa territorial entre a China e as Filipinas) e o arquipélago de São Pedro e São Paulo, no Brasil. Um grupo de radioamadores se dirige ao local da expedição, monta uma estação de rádio e transmite a partir de lá por alguns dias. Como só em ocasiões especiais (quando há uma expedição) é possível fazer contato com esses locais, seus QSLs são considerados preciosidades entre os que praticam esse hobby. Essas expedições são caras e seu financiamento costuma ser feito de duas maneiras: com o dinheiro dos próprios participantes ou com contribuições de outros radioamadores, que fazem uma “vaquinha” para ter a chance de aumentar sua coleção de QSLs.

Embora pareça que o radioamadorismo é coisa do passado – afinal, vivemos a era da internet –, os jovens continuam a tirar licença de radioamador, que pode ser obtida a partir dos 10 anos de idade com a autorização dos pais. Lenice Hisatugo, de 13 anos, tirou sua licença no final de 2012 e tem o identificador PU2YLV (a classe C começa com PU, e não PY). “Meu pai é radioamador e sempre fala com os amigos dele pelo rádio, e isso despertou meu interesse”, justifica-se.

O empurrão adicional veio com o escotismo, um movimento mundial fundado na Inglaterra, em 1907, que visa incutir nos jovens valores como lealdade, altruísmo, responsabilidade e disciplina por meio de atividades como acampamentos e competições. Lenice é escoteira há três anos e, no final de 2011, a regional paulista da União dos Escoteiros do Brasil lançou a campanha “Um Radioamador em Cada Grupo Escoteiro”. Ubiratan Castanha, relações-públicas da equipe de radioescotismo de São Paulo, diz: “Ainda estamos fazendo um levantamento para saber quantos radioamadores existem entre os cerca de 430 grupos escoteiros do estado de São Paulo, que reúnem 23 mil jovens”. O coordenador do projeto, João Ribeiro, ressalta a importância da empreitada, lembrando que há pouco tempo, em um acampamento de escoteiros na ilha Comprida, no litoral sul de São Paulo, foi realizada uma competição de barcos que percorria um trajeto de 22 quilômetros. No meio do percurso, uma escoteira passou mal e o pedido de socorro foi feito pelo rádio. Ribeiro lembra que o radioamadorismo permite que escoteiros de todo o mundo se conheçam e troquem experiências através do evento “Jamboree no ar”, realizado anualmente no terceiro final de semana do mês de outubro, quando todos ficam a postos para fazer contatos.

Lenice conta que o pai usava o rádio do grupo escoteiro, mas depois que ela passou na prova, os dois montaram uma pequena estação em casa. Ela costuma ligar o rádio todo dia por cerca de meia hora, a não ser quando acampa com os escoteiros, ocasião em que fica o dia todo “no ar”. A escoteira conta que gosta de ouvir histórias de como as pessoas lutaram para se tornar radioamadoras, de expedições de rádio, de conhecer gente nova e de treinar o inglês, entre outras coisas. Ela acredita que o rádio vai continuar presente mesmo com a popularização da internet, pois a qualidade dos contatos é diferente. “É certo que a rede mundial de computadores e a tecnologia envolvida tornam tudo muito rápido, mas o radioamador tem uma história e muitas vezes se sente como parte de uma família.”