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Plataformas de linguagem

Solange Farkas é curadora da exposição Isaac Julien: Geopoéticas, que faz, no Sesc Pompeia, em São Paulo, uma retrospectiva da produção audiovisual do artista britânico. A exposição também tem a televisão como plataforma de exibição.

Como o documentário se insere na produção audiovisual contemporânea?

Ele tem uma presença significativa na arte contemporânea. Isso muito diz respeito à necessidade de entendimento da sociedade, de olhar para o outro e trazer questões ligadas a grandes temas da contemporaneidade.

É uma tendência não apenas no audiovisual, mas também em outras manifestações artísticas, como a fotografia e a pintura. O audiovisual é um suporte mais adequado, mais ágil para capturar essas questões. No caso específico dos documentários do [artista britânico] Isaac Julien, existe um maior rigor formal, uma fotografia e uma dramaturgia muito pensadas. Eles se desdobram pelo espaço em instalações, gerando um composto de trabalhos que dialogam entre si, uma multiplicidade de visões e de abordagens a partir da qual se constrói uma narrativa – e não apenas texturas e sensações.

As obras do Isaac têm uma acentuada visão política e histórica, tratam da questão da sexualidade com um viés pós-colonialista. Nos sete filmes que vamos mostrar no SescTV estão as principais questões que norteiam a sua produção, como o diálogo com o espaço expositivo.

Isaac Julien diz que não separa o documentário da ficção, uma vez que ambos são construções. Esse parecer é consequência da linguagem que adotou?

O documentário sempre parte do ponto de vista de alguém. Traz o olhar e a compreensão não só de quem dirige, mas na forma pela qual o espectador absorve a informação através da interpretação. Há modos de ver distintos, particulares, que afetam a obra. A compreensão desse aspecto é uma das virtudes do cinema contemporâneo, que não tem a prepotência de achar que existe uma verdade única. É um cinema muito mais generoso, muito mais aberto, que permite várias leituras.

Esse tipo de produção documental é facilitado pela democratização dos meios para fazer obras audiovisuais, caso de câmeras e softwares mais acessíveis?

É claro que isso tem sua importância. Há a questão do instante, de conseguir capturar mais facilmente determinadas situações, em que a presença da câmera [mais compacta] não inibe tanto. Mas não quer dizer que todo mundo possa fazer uma produção. Para o
artista desenvolver uma produção conceitualmente consistente, é necessário um olhar poético, uma visão resolvida, e, para tanto, conta o rigor técnico que vem de equipamentos mais sofisticados. Isaac Julien, por exemplo, traz todo o aprendizado do cinema clássico em sua excelência na qualidade da imagem. Ele carrega uma maturidade que também funciona em equipamentos pequenos de menor compromisso formal. A grande vantagem dessas novas tecnologias é permitir que em seu cotidiano as
pessoas exercitem naturalmente a intimidade com a produção de imagens. O grande benefício é poder aprender com menos recursos, sem depender de grandes aparatos. Com suportes acessíveis, há muito mais possibilidades de erros e acertos. E, à medida que se experimenta mais, cresce a capacidade de extrapolar os padrões e quebrar paradigmas da imagem e da linguagem documental.

A inovação da linguagem audiovisual empreendida por Isaac Julien também se deve a sua formação em artes plásticas?

Ele é um artista híbrido, por isso é tão excepcional. Tem domínio formal e técnico ao fazer a integração entre linguagens. A grande diferença e a grande novidade nas artes é essa quebra das barreiras, das fronteiras entre linguagens, que caracteriza a produção contemporânea. Isso nos liberta da escravidão, das caixinhas que aprendemos ao longo da história da arte, em que cada disciplina
tinha suas regras e não havia lugar entre elas. A cena de arte contemporânea tem ocupado lugar de destaque nas discussões mundiais, o que diz respeito a um momento importantíssimo de quebra de gavetas, de trânsito entre linguagens. Várias
disciplinas passam a dialogar em termos não só de técnica, mas também de conteúdo. A produção artística está muito mais integrada com a política, a economia, a filosofia. Os artistas não estão mais fechados no escuro, observando a paisagem. O que dizem está muito mais relacionado ao real.

E o público, está preparado para esse rompimento de fronteiras?

Na minha experiência como curadora de arte contemporânea com trânsito entre audiovisual e artes plásticas, a reação do público é surpreendente. A fruição é perfeita; percebo um interesse muito maior do que antes. Nós temos uma capacidade cognitiva não só para ler linearmente, mas para compreender randomicamente. Quando se tem um estranhamento, e não se consegue a comunicação, a reação é de rejeição.

Que papel a televisão pode ocupar entre as plataformas que sustentam essa arte mais integrada?

A TV no mundo teve historicamente um papel importante em relação ao cinema experimental. Na Europa, foi estimuladora da videoarte – o Canal + [francês] é um bom exemplo disso. No Brasil, a estrutura é diferente. Aqui houve compromissos históricos
ligados ao modo de concessão na ditadura militar, que não permitiram que a TV olhasse para essa questão da complementação da linguagem artística.

Essa história mudou com as TVs segmentadas, por assinatura, mas isso se deu tardiamente, não o suficiente para fazer com que a televisão tenha a clareza da responsabilidade de ser um espaço de experimentação da linguagem. Alguns canais abrem em suas grades espaço para uma produção independente que discute o formato da televisão dentro da própria televisão. A exposição Isaac Julien: Geopoéticas foi construída em duas plataformas, o Sesc Pompeia e o SescTV.

Como ampliar a atuação da TV na condição de veículo de experiências de linguagem?

O país tem caminhado aceleradamente em sua ascensão econômica, mas, na área de cultura, há um retardamento, como se  estivéssemos com os dois pés plantados no chamado Terceiro Mundo. São necessárias políticas mais abertas que contemplem a produção contemporânea, que incentivem laboratórios de pesquisa de novos formatos. O que está por trás de uma aparente simplicidade são aparatos tecnológicos muito sofisticados – e caros. Há toda uma estrutura de sincronismo de imagem, com softwares desenvolvidos em laboratório, em parcerias com universidades.