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O povo é o negro brasileiro

O século XX foi o da luta dos negros. No Brasil, nos Estados Unidos e na África do Sul, o combate foi o mesmo: contra a  invisibilidade gerada pelo preconceito. Aqui, reivindicou-se uma “verdadeira abolição”, já que a de 13 de maio de 1888 não se efetivara. Lutou-se pela integração do negro na sociedade, uma vez que o racismo marginalizara milhares de trabalhadores negros, e combateu-se a crença que apregoava não haver racismo no Brasil.

Em várias frentes dessas lutas, quando o saldo foi positivo para os negros, também o foi para a sociedade. A razão é muito simples: suas reivindicações se fundem à luta da maioria da população por cidadania. Nos períodos democráticos, a agenda dos movimentos
negros caminhou paralela às demandas dos partidos populares, sindicatos e organizações de classe.

O negro é um forte índice da nacionalidade. O que, aliás, os intelectuais mais sensíveis ao âmago do país entenderam rapidamente. Nos anos 40, o historiador Sérgio Buarque de Holanda criticou os estudos culturalistas sobre o negro que, segundo ele, reduziam sua contribuição na formação da nacionalidade1. Mais incisivo, o sociólogo Guerreiro Ramos escreveu: “(...) carece de significação falar em problema do negro puramente econômico, destacado do problema geral das classes desfavorecidas ou do pauperismo. O negro é povo, no Brasil.”2

Os golpes contra a democracia foram muito duros com essa parcela da população, duplamente violentada, como cidadãos  brasileiros e como negros. A ideologia autoritária e conservadora, sabemos, anda de braços dados com o racismo. Os estados  policiais sempre foram mais vigilantes e intolerantes com as minorias étnicas, o que explica a adesão incondicional das entidades negras aos valores democráticos.

A ditadura varguista fechou a Frente Negra, que congregava milhares de militantes em suas fileiras. Com o final do Estado Novo, os artistas do Teatro Experimental do Negro (TEN) aderiram às forças democráticas e ao pacto populista. Organizaram-se  politicamente nos partidos de esquerda e nos populistas, realizaram congressos para discutir sua condição, pautaram as pesquisas nos principais centros acadêmicos do país e construíram uma agenda que denunciava o racismo e reivindicava sua integração na sociedade.

O novo retrocesso veio com o golpe militar em 1964 e o menu de barbárie que se seguiu. Os anos 1970 foram de lenta e  subterrânea reorganização. No final da década, a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU) somou-se às centenas de entidades que lutavam por democracia, porém com agenda que ia além da política tradicional e exigia para o negro reparação simbólica, reavaliação de seu papel na história, valorização da sua cultura e combate sistemático à folclorização da sua imagem.

Em 1988, nos 100 anos da Abolição, reivindicações históricas dos movimentos negros ganharam a agenda nacional: o Estado  reconheceu as desigualdades raciais, assegurou a posse das terras para os remanescentes de quilombos, criou a Fundação Cultural Palmares e a lei que pune a prática do racismo. A capa da Veja de 11 de maio de 1988, revista de maior circulação da época,  estampava fotos de personalidades e anônimos negros com a palavra “Negros”. Um artigo do historiador Luiz Felipe de Alencastro colocava para o público o que os ativistas vinham denunciando nos últimos 100 anos: a existência do preconceito racial na base da desigualdade social.3

Atualmente o movimento negro combate os estereótipos raciais na literatura, cinema e TV na perspectiva de construir uma  educação que valorize a diversidade étnica. Este é o objetivo da Lei 10.639, que obriga o ensino da cultura afro-brasileira e africana
nas escolas. Há o entendimento de que os produtores de audiovisual podem ser aliados dos educadores se capazes de construir  narrativas que valorizem a autoestima de um povo sem renunciar à crítica e à arte.

É sabido o quanto os estereótipos ofensivos pesam na autoimagem das crianças e afetam sua formação. A história do século XX mostrou que as conquistas do povo negro irradiaram-se em direitos para outros grupos. O debate sobre cotas raciais levou à inclusão de indígenas e egressos da escola pública nas universidades. A luta contra os estereótipos na literatura e no audiovisual deve construir uma nova narrativa para o Brasil. Hoje há o consenso de que o combate a todas as formas de preconceito é a condição para a civilidade e a democracia entre nós.

Noel dos Santos Carvalho é sociólogo, professor de cinema no curso de Audiovisual da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e pesquisador colaborador do Departamento de Multimeios da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

1- Ver: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Cobra de Vidro. São Paulo: Perspectiva, 1978.

2- RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995, p. 200.

3- ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Centenário de um Mau Século: o Deprimente Brazil dos Escravos de 1888 Tem Razões para Inquietar o País de Hoje. Veja. São Paulo, ano 20, n. 19, p. 20-40, maio 1988.