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Arquitetura como expressão da cultura

Em 2007, ao completar seu centenário, Oscar Niemeyer foi alvo, no Brasil e no exterior, de uma infinidade de homenagens à sua obra, veiculadas em livros, reportagens e documentários. Nelas foram destacadas a inventividade de sua criação arquitetônica e a revolução que suas formas curvilíneas provocaram no panorama da arquitetura modernista mundial. Sua  opção pelas linhas livres estaria arraigada na própria condição de ser um brasileiro, experiência marcada, poética e plasticamente, pela “curva que encontro
nas montanhas do meu País, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, nas nuvens do céu, no corpo da mulher preferida”.

Essas célebres palavras de Niemeyer ressaltavam sua condição de intérprete do Brasil, numa ânsia de tradução que marcava os modernistas de sua geração, cuja maior ambição era criar uma arquitetura essencialmente nacional. Essa celebração nacional e internacional da arquitetura modernista brasileira, da qual Niemeyer é o grande emblema, e Brasília, capital do País, o maior símbolo, tem um paralelo igualmente incensado no passado brasileiro. A arquitetura do período colonial, ou luso-brasileiro, praticada ao longo de três séculos, foi homogeneizada a partir da década de 1920 em torno de um “apelido” abrangente, o barroco, que aqui passava a incluir também as formas maneiristas e rococós.

Estudado por modernistas como Mário de Andrade e Lucio Costa, o barroco teria culminado nas igrejas mineiras da segunda metade do século 18, quando teria se consolidado a raiz de uma cultura arquitetônica nativa, nossa, brasileira. A obra de
Aleijadinho foi eleita como evidência de nascimento de uma arquitetura com caráter nacional, cujas formas curvilíneas seriam retomadas por Niemeyer, o outro “gênio” nacional. Esses dois nomes são,  genericamente, aqueles únicos que permanecem
na memória dos brasileiros quando pensam na arquitetura do País.

Tal glorificação, ao mesmo tempo em que dificulta a consciência das imensas variações regionais e temporais da fase colonial, cujas heranças portuguesas eram adaptadas e relidas nos confins da América portuguesa, igualmente ofusca a imensa produção
arquitetônica brasileira ao longo dos séculos 19, 20 e 21. Nossas cidades e espaços rurais abrigaram muitas outras expressões arquitetônicas que, sem tanto alarde quanto aquelas adoradas pelos modernistas, documentam a incrível diversidade cultural do Brasil.

A Primeira República, por exemplo, foi um período fértil para a arquitetura urbana, pois muitas cidades foram reformadas visando aproximá-las de padrões parisienses. Rotulados pelos modernistas de meras “cópias” de modelos europeus, edifícios como estações de trem, palacetes, vilas operárias e palácios eram certamente neles inspirados, mas jamais foram réplicas servis. Os teatros municipais de São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, foram traduções locais do modelo universal constituído pela Ópera Garnier de Paris. E assim também eram as edificações neoclássicas brasileiras do período imperial, que, a despeito de serem referenciadas
nos prédios esbranquiçados da França Napoleônica, aqui foram quase sempre despojadas das colunas e frontões triangulares, e ainda coloridas em azul, rosa ou amarelo.

A gigantesca expansão urbana brasileira efetivada ao longo do século 20 ofereceu inúmeras oportunidades de criação e recriação
arquitetônica, numa era em que os modelos constituídos pelas diversas correntes da arquitetura moderna provenientes do  Hemisfério Norte eram também, aqui, reelaborados. Fachadas de vidro, volumes prismáticos e plantas livres foram sinais do
impacto das formas modernistas norte-americanas e europeias, assim como da chamada art déco que marcava, com suas geometrizações e escalonamentos, a paisagem de arranha-céus de Nova Iorque. Nesse sentido, é importante perceber que, se as formas arrojadas de Niemeyer foram uma revolução radical, outras tantas mais sutis, e bem menos cultuadas, se insinuaram pela paisagem das cidades brasileiras antes mesmo das experiências do célebre arquiteto.

É um desafio descobri-las, assim como as criações de nossa multifacetada arquitetura contemporânea. Em um país formado por tantos povos e heranças diferentes, construções como casas, templos, edifícios governamentais, escolas, bibliotecas, espaços  cênicos, fábricas, mercados ou equipamentos esportivos são a evidência de que não é possível falar em uma única cultura brasileira, coesa e uniforme. Nossas expressões arquitetônicas, tão múltiplas e criativas quanto os sujeitos sociais que construíram o Brasil, aguardam nossos olhares inquietos e nossa reflexão sem preconceitos.

Paulo César Garcez Marins é historiador, docente do Museu Paulista da Universidade de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação da FAU/USP.