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O registro das tradições

Tatiana Toffoli é documentarista, produtora, roteirista e diretora de projetos audiovisuais. Formada em Jornalismo pela Pontifícia  Universidade Católica do Rio Grande do Sul, iniciou sua carreira na televisão à frente das câmeras, como atriz, mas em seguida migrou para a área de produção. É diretora do documentário Louceiras, sobre as mulheres da etnia indígena Kariri Xocó, que o SescTV exibe no dia 21 deste mês, às 23h.

Como o audiovisual surgiu na sua vida?

Eu me formei em Jornalismo, mas minha ligação com o pessoal de Cinema sempre foi muito grande. Muitos dos meus colegas  migraram para essa área. Sou do sul e acabei me aproximando da turma da Casa de Cinema de Porto Alegre. Na verdade, eu  queria mesmo era ser fotojornalista, sempre gostei da parte visual. Mas a relação com o audiovisual é anterior até: meu tio-avô tinha um cinema, chamava Cine Ideal. Já não existe mais, fechou quando eu ainda era criança. Certa ocasião, consegui permissão para entrar no antigo espaço, ainda estavam lá o palco de madeira, as cadeiras.

Além disso, eu também costumava viajar com a família para Gramado, na época do Festival de Cinema. Uma tia morava lá e conseguia ingressos. Isso foi super importante, porque desde cedo eu via que o Brasil fazia Cinema e que havia coisas boas. Eu e minha irmã [a cineasta Dainara Toffoli] acompanhávamos os debates, víamos como os diretores defendiam seus filmes. Tudo isso contribuiu para minha formação e para o trabalho que desenvolvo hoje.

Você também tem uma carreira como atriz e chegou a trabalhar para televisão. Como foi essa experiência?

Na época da faculdade, eu me envolvia em várias atividades. Como gostava de fotografia, comecei a registrar os espetáculos de conhecidos e, não demorou muito, eu também estava nos palcos. Fazia dança, ensaiava espetáculos, fotografava... eu contava nos dedos as horas que dormia! Nesse período, trabalhei para a RBS Vídeo, que lançou vários profissionais para a TV.

Em 1990, decidi me mudar para o Rio de Janeiro, onde participei de testes para a minissérie Riacho Doce [TV Globo], mas acabei não ficando no elenco por causa do meu sotaque. Continuei fazendo aulas de voz e de corpo, fiz até um curso para perder o sotaque. Em 1991, fiz um teste para participar da novela A História de Ana Raio e Zé Trovão, da TV Manchete. Deu certo e fiz a personagem Lina. Minha mãe ajudava financeiramente, mas a vida era difícil no Rio. Ser ator não é fácil, tem de se expor muito, precisa gostar e não querer fazer outra coisa.

E como se deu a migração para o outro lado das câmeras?

Depois desse trabalho na novela, minha irmã estava se mudando para São Paulo e decidi me juntar a ela. Com essa mudança,  resolvi trabalhar como jornalista. A MTV estava contratando e não exigia experiência. Fui selecionada para fazer o jornal, foi uma grande escola: fazia pauta, produção, entrevista, roteiro, montagem. Aprendi sobre equipamentos, tipos de microfone. Havia uma liberdade criativa muito grande, o canal não tinha tanta pressão em dar lucro. Cada um dos meus colegas vinha de uma área, era uma troca muito rica.

Qual foi sua estreia como diretora?

Foi com o programa Mochilão, da MTV. Eu já trabalhava na emissora havia um tempo e encanei que queria fazer um programa de viagem, porque juntava duas coisas de que eu gosto muito: TV e viajar. Depois dessa experiência, saí do canal para trabalhar num projeto chamado Expedição Caiçara. Estava interessada em estudo de meio, pesquisa, viagem. Fiquei quatro anos nesse trabalho,
o que ampliou meu interesse pelo tema da ecologia.

Meu contato com o Cinema veio sendo construído. Digo que não sou cineasta, minha irmã é. Eu faço televisão. Primeiro, foi com o média-metragem Dona Helena [sobre a violeira Helena Meirelles], que minha irmã dirigiu e eu fiz o roteiro. Depois, trabalhei na
captação de Lembranças de Baden Powell, lançado pela Trama junto do último disco do músico. E então, o curta-metragem Chapa, que retrata o universo dos caminhoneiros.

Que diferenças você percebe no trabalho para Cinema e para televisão?

Percebo que o Cinema se aproximou do vídeo e vice-versa. Acho que a diferença essencial entre TV e Cinema está na narrativa. A de um filme não pode ser plana, tem de ter ritmos, altos e baixos, para não cansar o espectador. Tem de ser algo construído. Não  dá para ficar repetindo uma mesma imagem. Nada é aleatório num filme. E em Cinema você tem mais tempo para fazer, para finalizar. A ideia do filme é que ele fique, é uma obra mesmo. A intenção é criar um documento, um acervo. Na TV, o que vale é ser
ágil, tem de servir para o momento.

Como surgiu o projeto do documentário Louceiras?

Conheci a Marina Herrero [pesquisadora do programa de Diversidade Cultural do Sesc], que me falou sobre o projeto. Havia a  intenção de registrar o trabalho de produção de peças de barro feito por essas indígenas, usando técnicas tradicionais, sendo um traço da cultura desse grupo. Organizamos essas informações e, em maio do ano passado, viajamos para Alagoas. Passamos 12 dias gravando, num grupo de cinco profissionais. Fomos sendo guiadas por elas, que nos levaram para buscar o barro. Fomos no ritmo delas, tentando interferir o mínimo possível, para fazer um registro autêntico.

Que relação você faz entre o trabalho dessas mulheres, na produção de utensílios de barro, e a preservação da identidade de seu povo?

É curioso, porque num primeiro contato você não diz que aquele grupo de mulheres pertence a uma etnia indígena. É preciso  observar com atenção, perceber as tradições contidas em suas atividades rotineiras: a produção dessas peças de barro; o cultivo de ervas usadas para a cura de doenças; a prática do toré; o educar as crianças pelo “fazer”.

A identidade Kariri Xocó vai se revelando e cabe a mim, como documentarista, apenas colocar o olhar no lugar certo. É só o diretor não ficar ansioso e dar espaço para o filme acontecer. Fiquei muito feliz por fazer esse trabalho, as mulheres ficaram muito à vontade, sentiram-se valorizadas. Foi importante para elas também.

Louceiras participou do festival É Tudo Verdade.

Sim, o filme foi selecionado para a mostra não competitiva O Estado das Coisas, nessa última edição do festival É Tudo Verdade,  em abril. É uma experiência muito boa, porque a gente sabe que representa passar por um funilzinho. Há muitos filmes bons, o festival é uma escola para todos nós, porque há uma diversidade de linguagens. É importante para ver o que estão produzindo. As produções brasileiras precisam ampliar seu alcance, para que o acesso seja cada vez mais democratizado. Nesse sentido, as TVs
também podem contribuir, abrindo espaço para a produção independente.