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O ritual da música

A música sempre esteve presente em espaços religiosos. Nas catedrais medievais europeias, por exemplo, o canto gregoriano era elemento de apoio artístico aos cultos por conta da natureza litúrgica que era capaz de instaurar nos ambientes já carregados de simbolismos. Influenciadas por esse universo, algumas unidades do Sesc ultrapassaram seus muros com projetos para levar música erudita a igrejas, paróquias e capelas de relevância histórica para São Paulo.

Desde março de 2012, o Sons das Igrejas do Centro passou a fazer parte da programação permanente do Sesc Carmo. Diversos conjuntos de música de câmara [música erudita composta para um pequeno grupo de instrumentos ou vozes] já foram convidados a se apresentar em um dos cinco espaços religiosos tombados pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) de São Paulo na região central da cidade. A Igreja Nossa Senhora da Boa Morte (veja boxe No itinerário), a Capela Santa Luzia, a Igreja de São Gonçalo, a Paróquia São Francisco de Assis e a Igreja Santo Antônio despertam o olhar do público pela riqueza histórico-cultural e acabam reunindo de 50 a 110 pessoas por concerto.

A técnica de programação musical do Sesc Carmo Priscila Rahal Gutierrez afirma que, apesar de o centro de São Paulo ser “riquíssimo” em construções que carregam a  memória da cidade, acabou sofrendo certo abandono, sendo pouco procurado por pessoas interessadas em arte e subvalorizado pelos frequentadores da região. Por conta disso, ela explica que o projeto tem a dupla missão de evidenciar o patrimônio histórico paulistano e de promover o acesso à música erudita. “Nossa programação procura explorar a acústica das igrejas, principalmente de construção barroca, para apresentar ao público o repertório que era composto para espaços semelhantes a esses”, firma.

Com uma média de dois concertos mensais, o Sons das Igrejas do Centro conta com públicos variados. Há os passantes; os frequentadores assíduos, que são, em geral, trabalhadores da região; além de um público cativo de aposentadose de pessoas que acompanham a cena erudita paulistana. “No início, grande parte do público era de não iniciados. Hoje, todos sabem que não se aplaude entre os movimentos de uma mesma peça, reconhecem instrumentos, repertórios etc.”, observa Gutierrez.

Democracia musical

O Sesc Santana também mantém uma parceria com a Paróquia de Santana, onde já se apresentaram conjuntos como Trio Choratta, Quarteto Wolfgang e instrumentistas solo como Dimos Goudaroulis. As apresentações integram o Projeto Santana, conjunto de ações realizadas em parceria com diferentes instituições e organizações da região, compostas por ocupações artísticas em ambientes públicos e atividades de formação de públicos para diversas linguagens artísticas.

De acordo com a técnica de programação do Sesc Santana Vera Marisa Rodrigues, a música erudita é pensada como parte integrante da programação da unidade. O objetivo é democratizar o acesso e cada apresentação atrai cerca de 80 pessoas. “A ideia de uma programação na paróquia surgiu a partir de demandas de atuação no entorno, junto com a necessidade de termos espaços adequados para as apresentações”, informa. “Sem dúvida as apresentações cumprem um papel de formação de público. Além disso, o próprio formato ‘concerto comentado’ [além de tocar, músicos conversam e explicam sua arte aos espectadores] contribui nesse sentido.”

Para o flautista do Quarteto Wolfgang, Paulo da Mata, muitas pessoas não apreciam música clássica por falta de oportunidade. “Sem dúvida, as duas apresentações que fizemos na Paróquia de Santana contribuíram significativamente para a divulgação (popularização) da música de concerto”, diz. Após executar composições de grandes nomes como Haydn, Bach e Mozart, o conjunto avaliou a reação do público como excelente. “Tivemos um público variável em idade e nível social, cultural etc., que apreciou  bastante, sobretudo a parte musical, mas também as explanações sobre as músicas e instrumentos”, acrescenta o músico.

O violoncelista solista e pesquisador de música do século 18 Dimos Goudaroulis acredita que a música erudita deve ser levada ao grande público, mas atenta para o perigo na utilização do termo “popularização”. “Os produtores e gravadores de hoje em dia se comportam com a música erudita exatamente como se comportam com qualquer coisa comercial”, explica. “Se popularizar significa baixar o nível para todo mundo comprar, não precisa popularizar a música erudita.”

Para Goudaroulis, a experiência de tocar na Paróquia de Santana foi única. “A reação foi muito calorosa e o público estava extremamente concentrado. Eles não acompanham a cena erudita, não frequentam várias salas de concerto. Eram pessoas do bairro mesmo, pessoas simples, que costumam ir à paróquia. Acho que elas receberam a música de um jeito muito bonito”, conclui.

No itinerário - Igreja Nossa Senhora da Boa Morte tem importância histórica, social e cultural

Ao longo do ano, as apresentações de música erudita da programação do Sesc Carmo são organizadas em ciclos de três meses. Cada um deles inclui seis apresentações, passando por cinco igrejas tombadas pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), sempre começando e terminando na Igreja da Boa Morte (Rua do Carmo).

Inaugurada em agosto de 1810, seu nome remete aos escravos que, uma vez condenados à forca, no largo da Liberdade, pediam na igreja uma “boa morte” a Nossa Senhora.

Mas além desses fatos tristes e históricos, um em particular chamou a atenção do Sesc Carmo. “Ela foi a primeira Igreja da cidade em que brancos e negros puderam sentar-se lado a lado”, diz a técnica de programação musical Priscila Rahal Gutierrez. De acordo com o historiador Paulo de Assunção, autor do livro São Paulo Imperial: A Cidade em Transformação, a Igreja Nossa Senhora da Boa Morte é a mais preservada de São Paulo. “A escada de entrada está praticamente como a original, feita de taipa de pilão. Logo na entrada há o símbolo dos jesuítas; do outro lado, perto do altar, há o símbolo dos carmelitas. O que isso significa? Que a irmandade surgiu com os jesuítas e depois passou para os carmelitas”, explica. “Quando a antiga igreja da Sé foi demolida para se construir essa catedral que se tem hoje, a Igreja Nossa Senhora da Boa Morte passou a ser local de batismo da área central da cidade.”