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O vestido amarelo

Se eu não tivesse aberto aquela porta, nada daquilo teria acontecido. Uma porta que se abre e todas as outras possibilidades estão perdidas para sempre. Assim que entrei, Paco estava lá, sorridente, esperando por mim. Se não tivesse ido encontrá-lo, eu hoje estaria atravessando qualquer outra porta com serenidade, o olhar brando com as coisas da vida que não podemos explicar e a aceitação unívoca que torna a existência viável.

Mas naquele dia não pensei em nada disso, não pensei se a vida era simples ou complicada, não me perguntei se deveria ir ou ficar. Eu simplesmente abri a porta e entrei. Entrei no quarto do hotel e o vi. Depois de anos. Como um bumerangue arremessado, Paco sempre reaparecia. E igual a todas as outras vezes, não foi necessário nada mais do que um beijo e um abraço de corpo inteiro para estarmos de novo em sintonia e começarmos a conversar como se estivéssemos separados há apenas um dia. Nem sei de onde saiu tamanha intimidade.

Desde o primeiro instante em que o vi, era como se o conhecesse há muito, uma sensação de familiaridade que só se acentuou com o passar dos anos.  Nunca tivemos nenhum relacionamento amoroso, nós bem que tentamos, mas nada aconteceu, e tudo o que fizemos na ocasião foi rir exaustivamente até cairmos de cansaço, um nos braços do outro, antes de fecharmos os olhos. Desde
então, nos habituamos a dormir assim, um nos braços do outro, sempre que possível. Apenas isso. Ele me falava de seus envolvimentos amorosos, eu lhe contava dos meus, e nenhum dos dois dava palpite na vida do outro, a aceitação era nossa moeda de troca. Assim nos relacionávamos. Tão próximos e tão distanciados como dois irmãos gêmeos.

Foi com essa simplicidade íntima que viajamos à praia no fim de semana após o nosso reencontro. Paramos no restaurante da estrada para a caipirinha e o almoço e lá ficamos a tarde inteira, sem que nos déssemos conta do tempo que passava, esse tempo subjetivo e silencioso, o relógio que avança pé ante pé e, num repente, como uma ventania súbita, nos arrasta sabe-se lá aonde. As pequenas mortes que vão mordendo nossa vida aos bocados.

Nesse momento eu nem me lembrava mais da porta, do dia em que Paco chegara, e tampouco me preocupava com o dia depois de sua partida. Porque Paco sempre ia e voltava, assim como o sol que se põe e se levanta, ou uma porta que se abre e se fecha.
Ao terminar o almoço, olhando a paisagem marítima, nos lembramos de uma outra viagem, quando nos aventuramos mar adentro a bordo de um barquinho a motor e seguimos até o oceano, a imensidão de água e nós, uma ervilha boiando. A água fria, o azul profundo, Paco quis mergulhar, o barulho do mar diferente de tudo o que eu já tinha ouvido, um repique crestado dentro dos ouvidos, era assustador, quisemos voltar para o barco, mas não conseguíamos, eu era nadadora e coube a mim fazer o esforço descomunal para subir naquele barco e içar Paco, encharcado de temor. Depois disso ele nunca mais quis entrar no mar. Quando eu nadava, ele me acompanhava desde a orla, era assim que fazíamos a partir de então. E isso era natural como tudo o que
dizia respeito à nossa relação, a intimidade nos protegendo de qualquer dissabor. Rimos de nossa desventura passada e, antes de sairmos do restaurante, ele me presenteou com um vestido amarelo dizendo que, sempre que eu o vestisse, ele me veria, não importa onde estivesse, minha presença chegaria até ele através das ondas cromáticas.

Ao chegarmos à praia, coloquei o vestido e fomos caminhar. Era hora do pôr do sol e tudo estava tingido por aquela tonalidade esmaecida e difusa. Um instante preciso ficou gravado na memória feito um amuleto dependurado no pescoço, eu andando de frente, Paco de costas, e a coloração dourada da areia onde nossos pés ficaram marcados. Uma imagem efêmera. Como o momento de atravessar uma porta e mudar para sempre uma existência.

Se eu não tivesse ido encontrar Paco quando de seu regresso, não teríamos ido à praia. Não teríamos caminhado na beira-mar e nem ido jantar com os caiçaras que nos convidaram para o passeio do dia seguinte. Eu fiquei ressabiada. Paco tinha medo do mar, mas os caiçaras disseram que seria uma rota interessante, eles iriam num pequeno barco, nós em outro, um passeio curto mas seguro, chegaríamos perto das pedras que não tinham acesso por terra e poderíamos ver corais, cardumes e também, se tivéssemos sorte, os golfinhos que nadavam por lá. Nesse instante ainda existia a possibilidade de uma porta que se abrisse para expressar a recusa diante da insistência dos caiçaras, eles que nos desculpem, Paco diria, eu não irei, já disse que não volto ao mar, prefiro dormir abraçado e de manhã sair para andar com você na beira-mar, te ver nadar ou ficar olhando nossas pegadas na
areia, mas essa porta não se abriu e Paco, sorridente e alheio, concordou com o passeio.

Acordamos cedo, o dia estava cinzento, o mar encapelado, mas os pescadores garantiram que era condição passageira, as águas logo se alisariam e poderíamos ir sem receio. Já não havia mais porta alguma para atravessar, nenhuma hesitação, era tudo aurora, mar aberto, destino que se cumpre, nós num barco, os caiçaras em outro bem próximo, a água e a cachaça, as frutas, o boné que um deles me passou, a alegria aquosa de Paco diante da imensa onda que nos elevou acima do horizonte e descerrou uma porta sem volta, ao baixar já não tínhamos noção de onde estava o outro barco, a paisagem às avessas, o céu escuro, o mar se encrespando mais e mais, eu olhei para os lados, não tinha referência alguma, tudo um azul negro e circundante, segurei firme na borda do barco e no momento seguinte eu estava no meio do mar, o temporal, a vista turva como num sonho, Paco, Paco, eu gritava, e o avistei ainda próximo do barco, tratei de nadar em direção a ele, e fui nadando e chamando-o, sem noção de mais nada que não fosse estar com ele, Paco no barco, Paco sorrindo, Paco me olhando, Paco caminhado na areia, eu de frente, ele de costas, seu sorriso ao me dar o vestido amarelo, seus braços ao redor do meu corpo enquanto dormíamos, e eu nadando e ouvindo sua
voz dizendo que eu nadava como um peixe, e ele rindo para mim, e quanto mais ele ria, mais rápido eu nadava, as braçadasvigorosas, Paco me olhando da praia, Paco me acalmando, não tenha medo, eu te vejo onde você estiver, as ondas, a espuma amarelada, eu fico te olhando desde a orla, não se preocupe, eu não entrarei no mar de novo, e eu nadando e nadando, até sentir a areia da praia roçando meus dedos e então eu soube que não haveria mais nenhuma outra possibilidade entre o que foi e o que poderia ter sido, nenhuma porta para eu abrir e me deparar com Paco, não importa quantos dias mais o sol nasça e morra, quantas vezes eu durma e acorde, apenas esse sonho renitente, a perplexidade diante das coisas da vida que não podemos  explicar, e um vestido já amarelado, liquefazendo a lembrança de Paco.

Suzana Montoro é escritora, autora de Os Hungareses (Ofício das Palavras, 2011), eleito Melhor Livro do Ano – Autor Estreante no Prêmio São Paulo de Literatura 2012.