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Hidrelétrica movida a desafios

Foto: Rafael Mosna/Folhapress
Foto: Rafael Mosna/Folhapress

Por: MILU LEITE

Em março deste ano, a hidrelétrica de Itaipu foi palco de um evento curioso. O famoso lutador de MMA (artes marciais mistas, modalidade popularmente identificada com o vale-tudo) Wanderlei Silva, conhecido também como Cachorro Louco, gravou ali o comercial de um energético. A segunda maior usina do planeta (atualmente a primeira é a de Três Gargantas, na China) ainda não exibia em sua história a ocorrência de fato tão extraordinário e, por que não dizer, bizarro. Quarenta anos atrás, quando Brasil e Paraguai assinaram o Tratado de Itaipu, depois de sucessivos lances diplomáticos para pôr fim a uma disputa territorial de quase cem anos na área do salto de Sete Quedas, ninguém, em sã consciência, poderia imaginar que a empresa binacional chegasse às telas da televisão como coadjuvante da campanha de uma bebida estimulante. Se, ao optar por aquele cenário, a ideia do fabricante foi realçar as qualidades de seu produto, escolheu bem, considerando que a gigantesca hidrelétrica é sinônimo de energia e grandeza.

Para quem não sabe, Itaipu tem potência instalada de 14 mil MW e supre cerca de 17% do consumo brasileiro (regiões sul e sudeste) e 72% do paraguaio. Esse potencial hidrelétrico do rio Paraná sempre esteve na mira dos governos de Brasil e Paraguai, e a região de Sete Quedas era encarada como a menina dos olhos pelos dois lados da fronteira. O problema é que o Tratado de Paz, assinado entre os governos dois anos depois da Guerra do Paraguai (que durou de 1865 a 1870), não estipulava com clareza os limites de territorialidade naquela área, reivindicada ora por um dos países, ora pelo outro. E isso porque o acordo reproduz uma imprecisão já presente em um documento assinado por Espanha e Portugal em 1750. Ou seja, desde tempos remotos aquele lugar foi alvo de controvérsias, com litígios que recrudesciam e eram contornados pelas chancelarias. O momento mais dramático da disputa aconteceu em 1965, quando o governo brasileiro deslocou militares para a área, desgastando o já esgarçado diálogo entre os dois países.

Àquela altura os militares daqui, então no poder e duros com as pretensões do país vizinho, baixaram o tom porque não viam vantagem em um novo conflito com os paraguaios. Preferiram buscar uma saída para o impasse, e a Ata do Iguaçu, firmada em 1966, deu o primeiro passo nessa direção, anunciando a disposição de ambos os governos de aproveitar os recursos hídricos da região, incluindo o salto de Sete Quedas. Foram quase dez anos de negociações diplomáticas até a assinatura do tratado de 1973, fato histórico que determinou, entre outros pontos, o trabalho conjunto em torno de uma sociedade de caráter binacional que seria comandada em partes iguais pelos dois Estados. O acordo veio em boa hora, coincidindo com a crise mundial do petróleo desencadeada pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep).

As dimensões do projeto também foram instituídas no mesmo entendimento, com o estabelecimento da área a ser abarcada pela usina: de Guaíra a Foz do Iguaçu, no lado brasileiro, e de Salto del Guairá a Ciudad del Este, no Paraguai. Segundo o documento, cada país teria direito a 50% da energia produzida, e aquele que não utilizasse toda a sua parte deveria vender o excedente ao parceiro a preço de custo.

A parcela do Brasil é integralmente utilizada internamente, contrastando com a condição do Paraguai, que satisfaz sua demanda com apenas 10% da eletricidade gerada em Itaipu. O resto acaba no Brasil, que paga por essa energia excedente.

Alguns tópicos do acordo são alvo de críticas ainda hoje, tanto de um lado quanto do outro, seja porque, depois de sucessivas pressões, o Brasil entenda que esteja pagando uma exorbitância pela energia comprada, seja porque (na óptica dos paraguaios) os brasileiros aproveitam sua supremacia para explorar indefinidamente o Paraguai, não permitindo que ele comercialize seu excedente de energia elétrica com outros mercados. Isso sem falar que, ainda bem antes de a usina começar a ganhar vida, os argentinos também chiaram contra Itaipu. Em abril de 1973 a revista “Veja” publicou que “há cerca de cinco anos, a disposição brasileira de construir uma usina hidrelétrica em Sete Quedas e, mais recentemente, sua localização alguns quilômetros abaixo dos saltos, na região de Itaipu, tornaram-se um fator de desentendimento com setores políticos argentinos”. O então embaixador Julio Barberis, representante da Argentina no Comitê da Bacia do Prata, afirmou, na oportunidade, que “a atividade de enchimento de uma represa num rio internacional de curso sucessivo é um fato que pode ter consequências no meio ambiente de áreas vizinhas, além das fronteiras de um Estado”.

Fiquemos por enquanto com os fatos históricos: foi em 1973 que os técnicos percorreram de balsa o rio Paraná à procura do melhor ponto para erguer a gigantesca usina, e o local escolhido ficava a poucos quilômetros da confluência com o rio Iguaçu. No ano seguinte, começou a ser estruturada a entidade binacional que viria a gerir Itaipu e que passou a cuidar da construção da usina até seu funcionamento, em 1984, ano em que a primeira unidade, de um total de 20 geradoras, entrou em atividade – a última delas começou a operar em 2007. Passadas quatro décadas desde a assinatura do Tratado de Itaipu, não existe mais o Salto de Sete Quedas, considerado a maior cachoeira do mundo, que desapareceu com a formação do lago de Itaipu.

“Um trabalho de Hércules”

Os espinhos plantados no caminho da construção da usina não se limitaram à esfera jurídico-política. Foi preciso muito dinheiro para colocar em prática um plano operacional orçado em US$ 12 bilhões, sem contar empréstimos da ordem de US$ 27 bilhões, segundo dados publicados na imprensa. Os US$ 50 milhões da metade paraguaia do capital social da empresa foram oriundos de empréstimos feitos pelo Banco do Brasil. Como se costuma dizer por aqui: o Brasil entrou com a verba, a infraestrutura e todo o resto, enquanto o Paraguai entrou com a água. Obviamente, os paraguaios discordam desse ponto de vista. De todo modo, o Brasil estava mais bem preparado para investir, e fazer uso da área pesquisada e definida como “de rendimento elétrico excepcional” exigiu a participação de milhares de operários, tecnologia avançada e um sem-fim de medidas excepcionais para o transporte de peças gigantescas pelas estradas e ferrovias de ambos os lados. Esse transporte alavancou o setor de caminhões, mobilizando mais de 20 mil veículos só durante a década de 1980. E ajudou a fomentar no país o setor de bens de capital.

O primeiro desafio começou com a construção do acampamento para abrigar os trabalhadores, na verdade uma espécie de minicidade com moradia para 9 mil pessoas e um hospital, às margens do rio, nas proximidades da cidade de Foz do Iguaçu, que viu sua população crescer de 20 mil para mais de 100 mil habitantes no curto espaço de dez anos. O objetivo era fazer o impensável: mudar o curso de um trecho de 2 quilômetros do rio Paraná, removendo 55 milhões de metros cúbicos de terra e rocha para que ele ficasse com 150 metros de largura e 90 de profundidade. Na área do desvio, o leito do Paraná foi seco para que pudesse ser erguida a monumental barragem principal da usina, feita de concreto. Na realidade, era muito concreto. E também muito dinheiro, porque a barragem é apenas uma das partes da usina. Depois dela, viriam as unidades geradoras e, com elas, inacreditáveis episódios de peças que levaram três meses de viagem entre a fábrica, em São Paulo, e a usina.

O fato é que no dia 5 de novembro de 1982, quando os presidentes João Figueiredo, do Brasil, e Alfredo Stroessner, do Paraguai, abriram festivamente as comportas de Itaipu, liberando a água represada do rio Paraná, sedimentou-se para sempre a imagem de um país que começava a pensar grande no campo energético. Era finalmente inaugurada a maior hidrelétrica do mundo, graças, entre outras coisas, ao esforço de mais de 100 mil operários ao longo de quase uma década, “um trabalho de Hércules”, como frisou na oportunidade a revista “Popular Mechanics”, dos Estados Unidos.

A barragem de Itaipu tem quase 8 mil metros de extensão, e os seus 196 metros de altura equivalem a um prédio de 65 andares. Nem é preciso dizer o que isso acarretou e continua acarretando, em termos de danos ao meio ambiente. No entanto, o projeto de construção da usina não virou as costas para a natureza. Assim, foram arquitetados e postos para funcionar planos com o objetivo de minimizar o desaparecimento da flora e da fauna, além de monitorar o novo ecossistema da região.

Tendo isso em vista, a usina tem um programa de sustentabilidade que vem sendo aprimorado ao longo dos anos. A operação Mymba Kuera foi uma das primeiras a ser colocadas em prática, tendo promovido o resgate de animais silvestres durante o enchimento do lago. Ainda assim, muitas perdas ocorreram, sobretudo porque o tempo dispensado a essa operação foi demasiadamente curto. Em apenas 14 dias a área de 1,35 mil quilômetros quadrados do lago foi inundada.

Atritos com o Paraguai

Quando o projeto de Itaipu foi colocado no papel, a área ao redor era bastante degradada. Atualmente, o ecossistema do entorno é considerado rico, de grande diversidade biológica. Segundo dados fornecidos pela usina, “um ousado programa de reflorestamento das margens protege atualmente mais de 98% do reservatório”, mudando radicalmente o panorama de anos atrás, quando estudos demonstravam que as florestas remanescentes sofriam com a exploração agrícola cada vez mais intensa.

Como já se viu, porém, a hidrelétrica está longe de ser uma unanimidade, e não são apenas os ecologistas que criticam a megalômana obra. Do ponto de vista econômico, o acordo feito para Itaipu legou ao Paraguai uma dívida que só será quitada em 2023. Ao Brasil, cabe o direito de comprar o excedente da energia paraguaia, com base numa estranha matemática que permitiu, por exemplo, que em 2008 adquiríssemos a sobra de eletricidade a um custo médio de US$ 36,10 por MWh, ao passo que o da energia vendida ao Paraguai, no período, não foi além de US$ 23,14 por MWh. As bases do acordo são, portanto, apontadas como esdrúxulas. Hoje, o pagamento de royalties em Itaipu é duas vezes e meia superior à média verificada em outras hidrelétricas brasileiras.

Os meandros desse acordo incomum permitem queixas de parte a parte, mas é o governo paraguaio que, vira e mexe, exige compensações, ainda que outrora o então presidente da nação, Alfredo Stroessner, tenha negociado com os militares brasileiros como um exímio enxadrista e obtido vantagens inquestionáveis para seu país. Entretanto, não coube a Stroessner o mérito pela última crise com o Brasil, em janeiro de 2009, e que resultou no aumento da quantia paga pela energia paraguaia.

O presidente do Paraguai na época era Fernando Lugo, que, recém-chegado ao poder, pôs em prática um dos pilares de sua campanha eleitoral: renegociar os valores recebidos de Itaipu. Com o endurecimento do Itamaraty, que não sinalizava com nenhuma flexibilização, a crise se acentuou. O Brasil enfrentava dificuldades no Congresso e não queria se expor a um novo desgaste, propondo mudanças para o acordo de Itaipu. De seu lado, o governo paraguaio não aceitava nenhuma proposta que não passasse pela renegociação do valor da energia paraguaia. Somente em outubro daquele ano é que, por decisão do então presidente Lula, o Brasil aceitou triplicar o valor pago como compensação pela cessão de energia paraguaia, indo de algo em torno de US$ 120 milhões para os cerca de US$ 360 milhões anuais.

A novela, porém, parece nunca ter fim. Em agosto do ano passado, novo mal-estar surgiu com as declarações do presidente paraguaio, Federico Franco, de que seu país não estaria disposto a manter o Brasil como comprador exclusivo da eletricidade excedente. Como de costume, as chancelarias foram acionadas e não tardaram as explicações do governo paraguaio para o incidente. De acordo com o chanceler José Félix Fernández, a afirmação do presidente foi mal interpretada, pois a intenção do país é aumentar o consumo interno. “Aqui há um preço que não é o mesmo para o resto do mundo. Será um melhor negócio usar a energia em nosso território do que continuar vendendo [ao Brasil]”, afirmou Fernández à imprensa. Tudo acertado nas esferas competentes, ecoam as perguntas: Itaipu construída a quatro mãos valeu a pena? Que chances teria hoje uma usina erguida com o mesmo figurino?

Sem eclusas

De acordo com especialistas, usinas menores, espalhadas por diferentes regiões do país, trariam maior benefício aos brasileiros, a um custo menor. A verdade é que esse tipo de discussão já não faz mais sentido. A usina existe e ponto final. A melhor opção é, então, olhar para o presente. “Cada geração tem diante de si seus próprios desafios. O debate na atualidade se dá em torno do conceito de sustentabilidade. Esse é o critério pelo qual a viabilidade do projeto Itaipu deve ser avaliada”, afirma Paulino Motter, consultor do diretor-geral brasileiro da hidrelétrica, Jorge Samek.

Ele salienta que Itaipu foi precursora na adoção de medidas mitigadoras dos impactos socioambientais causados por sua implantação e operação. “O Brasil detém 10% da água doce do mundo. Essa disponibilidade oferece ao país a possibilidade de utilizar esse precioso recurso natural para múltiplos fins. A construção de novas hidrelétricas é indispensável para assegurar a soberania energética do Brasil”, considera Motter, ressalvando que as fontes alternativas não devem ser jamais desprezadas. “A energia eólica e a produção hidrelétrica, por exemplo, são complementares, visto que os ciclos dos ventos e das águas são negativamente correlacionados”, afirma.

A geração de energia, porém, não é tudo, já que tão importante quanto produzir eletricidade é garantir sua transmissão mediante sistemas confiáveis de distribuição. O país tem sofrido alguns reveses nesse aspecto. Bicho-papão que volta e meia atrapalha a vida dos brasileiros, o “apagão” (queda no fornecimento de eletricidade) se converteu no grande vilão de Itaipu, apesar de suas causas não estarem relacionadas com a usina. Ocorre, no entanto, que toda vez que a transmissão de energia entra em colapso, o fenômeno é imediatamente atribuído à hidrelétrica. A imprensa coleciona uma infinidade de depoimentos de técnicos e diretores de Itaipu desmentindo qualquer pane na geração de energia. Via de regra, os “apagões” são causados por falhas de transmissão e distribuição, que, no caso de Itaipu, são de responsabilidade do sistema de Furnas Centrais Elétricas.

A hidrelétrica binacional tem exibido com orgulho bons resultados na geração de energia (a usina bateu seu próprio recorde de produção em 2012, com 98,2 milhões de MWh) e, a julgar pelos frutos colhidos até aqui, os números de 2013 suplantarão os do ano passado. “Algumas medidas adotadas ao longo de 2012 estão permitindo um desempenho superior no corrente exercício, possibilitando melhorar os índices de manutenção, produção e transmissão”, esclarece Celso Torino, superintendente de Operação de Itaipu. Um exemplo disso, segundo ele, é a otimização do plano de manutenção das unidades geradoras, com a consequente redução do tempo de parada das máquinas. Outra providência diz respeito ao limite de transmissão no setor de 60 Hz, que é de 7 mil MW e, em situação de mau tempo, era reduzido para 3 mil MW. “Graças a novos esquemas de operação, foi possível aumentar esse limite para 4,5 mil MW. A esses, somam-se outros procedimentos que vêm permitindo diversos pequenos ganhos de produção, que, somados, têm colaborado para uma operação cada vez mais eficiente da usina.”

Torino diz também que essas medidas permitem que se tire o máximo proveito da água, tornando a condição hidrológica praticamente a única variante para a produção. “Em outras palavras, é uma busca incessante pelo desperdício zero de água, uma meta quase impossível de alcançar, mas que será sempre nosso objetivo”, explicou.

Diante de tantas notícias boas, afirma Jorge Samek, a usina prosseguirá trabalhando para romper a barreira anual dos 100 milhões de MWh: “A meta é continuar buscando o aperfeiçoamento constante, estender ao máximo os limites da produção e seguir contribuindo para a geração de energia de qualidade para o Brasil e o Paraguai”.

Tendo em vista que a qualidade das águas é fundamental para o melhor aproveitamento de sua capacidade energética, Itaipu pretende também recuperar rios e implantar o manejo sustentável das microbacias vinculadas à hidrelétrica. Há uma infinidade de outros programas, todos destinados a atenuar ou mesmo erradicar problemas da região. Um deles, entretanto, que desperta grande interesse, diz respeito a estudos sobre a viabilidade da construção de eclusas no rio Paraná. De acordo com Motter, ao contrário do que a maior parte das pessoas pensa, o Tratado de Itaipu previu essa possibilidade. Especificamente no item III.11 do anexo B, sobre obras de navegação, estabelece-se que o projeto incluirá “as obras que forem necessárias para atender aos requisitos do tráfego de navegação fluvial, tais como terminais e conexões terrestres, eclusas, canais, elevadores, e seus similares”.

Porém, se esse tipo de uso está no projeto e se, posto em prática, poderia beneficiar muitos setores da economia, onde é que a questão emperra? “Uma coisa é a viabilidade técnica, outra é a econômica”, sustenta Motter. O estudo mais recente sobre o tema concluiu “pela inviabilidade da transposição e conexão intermodal das hidrovias Tietê-Paraná e Paraná-Prata através da barragem de Itaipu”. Segundo o consultor, o custo seria astronômico e resolveria apenas a transposição de uma barragem, permanecendo como um severo obstáculo à integração das hidrovias as formações rochosas de Sete Quedas, submersas no lago. O mesmo trabalho informa que, dentre as alternativas analisadas, a construção de um corredor formado por um sistema de quatro eclusas na margem direita paraguaia, de 30 metros de altura cada uma, e um canal de aproximadamente 5,4 quilômetros oferece menos restrições socioambientais e menor inviabilidade econômica. Mas isso é lá com o Paraguai! Ou não?