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Eles já fazem parte da família

Foto: Elder Cristiano/ABC Digipress/Folhapress
Foto: Elder Cristiano/ABC Digipress/Folhapress

Por: SILVIA KOCHEN

Os lares brasileiros estão mudando de perfil e adotando novos membros, que geram despesas com alimentos, brinquedos, guloseimas, joias, produtos de higiene, roupas etc. São os animais de estimação, que, apenas em 2012, proporcionaram às empresas que atuam no atendimento ao setor um faturamento da ordem de R$ 14,2 bilhões em produtos e serviços, valor só superado nos Estados Unidos e equivalente ao que os japoneses gastam com seus pets no mesmo período. Os americanos lideram o mercado mundial do ramo, com 30% do faturamento, seguidos por Brasil e Japão (8%), Reino Unido (7%), França (6%) e Alemanha (6%).

A cada momento, novos produtos e serviços dirigidos essencialmente ao mercado pet chegam ao mercado, tais como sorvetes e chocolates, redes de descanso, perfumes e xampus, banheiros, padaria especializada, brinquedos para hamsters e aves, itens diversos para decoração de aquários, franquia de adestramento, hotéis e spas, fotógrafos e cemitérios e crematórios. O mercado representado pelos 106,2 milhões de animais de estimação existentes no Brasil gera cerca de 25 mil empregos nas indústrias que atuam na área e mais 200 mil postos de trabalho no comércio e em serviços especializados, como abrigos, casas de ração e de medicamentos, clínicas veterinárias e profissionais de banho e tosa.

O vigor desse ramo empresarial levou o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) a instalar, em novembro de 2012, uma câmara setorial específica para a Cadeia Produtiva de Animais de Estimação, que reúne representantes do comércio, criadores e indústria. “O setor está se consolidando por sua importância, respondendo por 0,39% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, à frente, por exemplo, do segmento de linha branca (fogões, geladeiras e lavadoras de roupa)”, afirma José Edson Galvão de França, presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet) e presidente da câmara setorial. Ele estima que o segmento crescerá mais de 5% ao ano no próximo quinquênio. “O Brasil é o segundo país do mundo em quantidade de cães e gatos e o quarto em número absoluto de animais de estimação”, observa.

Os cães reinam soberanos como os queridinhos dos lares brasileiros: havia 34,3 milhões deles em 2010 – número que subiu para 35,7 milhões em 2011 e para 37,1 milhões em 2012. Os gatos, porém, vêm ganhando terreno. Eram 18,3 milhões em 2010, perto de 20 milhões em 2011 e pouco mais de 21 milhões no ano passado. A Abinpet estima ainda uma população de 26,5 milhões de peixes ornamentais, 19,1 milhões de pássaros e 2,17 milhões de outros animais (como iguanas, porcos em miniatura, porquinhos-da-índia, hamsters e outros).

De modo geral, os pets estão cada vez mais presentes na vida moderna, pois – segundo ensinam os entendidos – sua convivência com o homem ajuda a aliviar o estresse. “Quando você está no trânsito, preocupado, e passa um cachorrinho fofo no carro ao lado, você ri e todas as preocupações vão embora”, exemplifica o psicólogo Jayro Motta. Ele revela que estudos científicos realizados nas últimas quatro décadas mostram que a convivência com um bicho dócil tranquiliza o ritmo cardíaco e as ondas cerebrais. Há mais de uma década, no Brasil, cães terapeutas “visitam” pessoas internadas em hospitais ou asilos para melhorar o humor e incentivar uma recuperação mais rápida. Em São Paulo, por exemplo, o Hospital Albert Einstein acaba de anunciar que os pets podem visitar seus donos em tratamento – desde, é claro, que o médico consinta e que sejam observados procedimentos rígidos para evitar tumultos ou contaminações. A medida faz parte de um programa de humanização do ambiente hospitalar implementado pela instituição.

“Cofapinha”

Os bichos de estimação são capazes de provocar agradáveis surpresas, e Motta – o primeiro “psicólogo especializado em animais” do país – sabe bem disso. Ele conta que fazia doutorado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), em 1982, quando foi procurado por um grupo de publicitários que buscavam alguém que pudesse treinar um peru para um comercial. Em cinco dias, Motta treinou 3 perus para fazer um anúncio em que um deles aparecia andando sobre a mesa para, no final, dar um salto e se aninhar dentro de uma tigela de porcelana.

Em pouco tempo, a notícia de que havia um “doutor Dolittle” no Instituto de Psicologia (referência ao filme em que Eddie Murphy, na pele do veterinário John Dolittle, tem o dom de falar com os animais) se espalhou e, empurrado pela fama inesperada, Jayro Motta acabaria ingressando em uma nova carreira. Desde então, fez mais de mil trabalhos para publicidade, cinema, teatro e televisão, com a participação de mais de 1,5 mil bichos de 120 diferentes espécies, incluindo insetos.

O trabalho mais famoso de Motta foi feito para um anúncio da Cofap, em que um cachorro da raça Dachshund, o famoso “salsicha” – que no filme fugia de um enorme cão Sheepdog –, passou a representar o amortecedor da marca. O resultado da peça publicitária extrapolou o esperado, tanto que os Dachshunds de pelo curto – como o astro principal do filme – são hoje conhecidos também como “cofapinhas”. Atualmente existem não apenas vários “doutores Dolittle” no mercado, como agências especializadas em petmodels. Os donos dos modelos acabam recebendo cachês, que em alguns casos são razoavelmente polpudos, pela participação dos pets em desfiles de moda, peças de teatro, filmes e novelas. Quando o bicho estampa a embalagem de alguma marca de ração, ele entra para o time dos top petmodels.

José Carlos Julianelli, do Grupo Cipa Fiera Milano, empresa de feiras de negócios que organiza a Pet Show, entre outros eventos voltados ao setor, destaca que 90% das petshops têm como dono um veterinário que, por razões óbvias, acaba sendo a referência e o formador de opinião para os clientes. Por isso, a empresa realiza algumas feiras voltadas exclusivamente para esses profissionais e outras que, apesar de também visar o veterinário, estão abertas à participação do público.

Julianelli tem um mapeamento do que ocorre no mercado pet, algo imprescindível para realizar um evento na área. Segundo ele, há o segmento de petfood (alimentos), dominado por grandes indústrias, e o de produtos e acessórios – como camas, roupas, brinquedos, sanitários –, que já começa a congregar fabricantes com razoável poder de fogo, mas ainda é comandado por pequenos empreendimentos. O mesmo acontece com as petshops ou, em sua versão mais popular, casas de ração. Já os criadouros surgem, em sua maior parte, pelas mãos de pessoas que acalentam grande afeto por seus animais, mas dificilmente essas iniciativas ganham escala comercial.

Um exemplo dessa modalidade de empreendedorismo é dado pelo engenheiro José Ricardo Ribeiro, de Peruíbe, no litoral sul do estado de São Paulo. Ele conta que tinha dez cães em casa, mas um cruzamento ruim gerou uma ninhada com problemas: cinco filhotes nasceram com fraturas. Ribeiro criou então uma tala adequada aos bichinhos, peça feita com alumínio moldável revestido em ambos os lados por poliacetato de etileno vinil (material plástico mais conhecido por EVA). A veterinária que cuidava dos animaizinhos aprovou a novidade e fez a encomenda de um jogo com vários tamanhos, estímulo que levou Ribeiro a patentear o produto e, posteriormente, abrir uma microempresa individual para comercializá-lo.

Ribeiro patenteou também um cambão (enforcador com cabo para manejo de animais ferozes), revelando sua aptidão para essa área de negócios. Todavia, ele revela, não tem sido fácil fazer disso seu ganha-pão. “Não tenho empregados e, a cada mês, fico 15 dias fabricando os produtos e 15 dias vendendo.” Por se tratar de produtos diferenciados, Ribeiro diz que não imagina outras pessoas cuidando de sua comercialização. Por essa razão, revela, tem como projeto montar uma loja virtual.

Apaixonados por cães

Apesar dos poréns, é possível crescer nesse mercado. Esse é o caso, por exemplo, do empresário Elias Santos Almeida, que, em parceria com Viviane, sua esposa, começou a criar poodles por puro hobby em 1991. Contador por profissão, Elias logo enxergou uma oportunidade de transformar o passatempo num negócio lucrativo investindo na construção de um canil o dinheiro obtido com a venda da primeira ninhada.

Em 1998, ele conta, o casal adquiriu uma petshop em Higienópolis, bairro nobre da capital paulistana, posteriormente batizada Encrenquinhas. As necessidades do mercado foram abrindo novas frentes ao estabelecimento comercial dos Almeida, que, no ano seguinte, inauguraram um hotel para cães em Atibaia, a 70 quilômetros da capital paulista.

Hoje, o casal é dono de três petshops, um canil com 150 exemplares de 20 diferentes raças, uma clínica veterinária e um laboratório de exames clínicos. Elias explica que os planos futuros incluem a oferta de um amplo espaço no interior de um hotel para as atividades de agility, um esporte muito em voga no exterior, cujas regras são inspiradas no hipismo e que está virando febre entre os brasileiros apaixonados por cães. Trata-se de uma competição de agilidade em que o dono do animal conduz o cão apenas com gestos ou comandos verbais, enquanto este tenta vencer obstáculos em saltos e passar por túneis ou gangorras, tudo cronometrado.

O dono da Encrenquinhas acredita que sua empresa tem muito espaço ainda para crescer, graças, entre outras coisas, ao fortalecimento da relação afetiva entre homens e pets. Ele observa que há três ou quatro décadas, a ração industrializada não entrava nos lares mais modestos, onde, naquele tempo, os pets eram alimentados em geral com restos de comida. Hoje, com raras exceções, pode-se dizer, os animais caseiros no Brasil são tratados com alimentação balanceada. Tem mais: vestem calcinha higiênica, usam roupas (em especial nos períodos mais frios), ganham festa no dia do aniversário, passeiam pela cidade conduzidos por profissionais habilitados (dog walkers) e são medicados em hospitais veterinários.

Todavia, conforme depoimento de França, da Abinpet, o setor enfrenta vários problemas que inibem sua expansão. Um deles é a dificuldade de achar no mercado profissionais qualificados para desempenhar algumas funções nos mais de 100 mil pontos de venda, seja na comercialização de produtos seja na prestação de serviços (banhistas, tosadores, adestradores, dog walkers, recreacionistas e veterinários).

Elias Almeida, da Encrenquinhas, diz que só tem conseguido preencher cada uma das vagas abertas por suas lojas após entrevistar de 15 a 20 pessoas. Por conta disso, ele desistiu de oferecer certos serviços, como os de dog walking e de adestramento, que na maioria das vezes são feitos longe da vista do dono do negócio. O empresário optou então por firmar parcerias com outros empreendedores que oferecem esses serviços, como a franquia Cão Cidadão, de Alexandre Rossi, o Dr. Pet da TV, que leva profissionais de adestramento até os clientes. Visando dar fim a esses problemas, a Abinpet celebrou um convênio com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) com o objetivo de oferecer um programa de capacitação maciça ao setor.

As fábricas de Descalvado

A inexistência de um marco regulatório nacional que incentive a criação de pets também integra o rosário de queixas dos empresários do ramo. Eles reclamam que Curitiba simplesmente proibiu a instalação de criadouros de animais na cidade. E lembram que as aves canoras estão sujeitas à fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), “que não fomenta a atividade”. Talvez por isso a maior parte dos criadores considere seu trabalho como um simples passatempo.

Esse é o caso de Florice Mattos Malaquias, dona do canil Vanquisher Thiene, que ficou famoso nos anos 1990 porque era seu o salsicha que estrelou a propaganda da Cofap. Cebolinha, esse era seu nome, chegou a ter 300 filhos. Como tudo começou? Ela conta que em 1981 ganhou um casal de cães da raça Braco alemão e começou seu negócio, a princípio sem pretensões. Depois, como cada membro da família apreciava uma raça, foram comprados casais de Dachshunds, Fox Terriers, Pinschers e Basset Hounds, que acabaram sendo incorporados à criação. O tempo passou e atualmente o plantel de Florice, composto por quatro raças, soma apenas 15 cães e o faturamento do canil cobre somente as despesas de manutenção. Para voltar a ganhar dinheiro, ela diz, seria preciso investir na compra de matrizes e numa série de cuidados para gerar exemplares de boa qualidade.

Em São Paulo, onde, segundo o Datafolha, as pessoas gastam em média R$ 135 por mês com seus pets, o comércio de animais é regido por uma legislação bastante severa. De acordo com a lei, desde 2008, os filhotes devem ser castrados antes de ser colocados à venda, a não ser que se esteja negociando com outros criadores legalizados. Da mesma forma, os anúncios precisam trazer os dados do vendedor e, caso os criadores sejam paulistanos, estes devem dispor de registro nos cadastros municipais de comércio de animais e de vigilância sanitária. Consta que a Editora Forix, mesmo não sendo dona de canil, arrumou as malas e saiu da capital porque se sentiu prejudicada com a decisão. Há 35 anos publicando a revista “Cães & Cia”, especializada em animais de estimação, a Forix transferiu suas instalações para Osasco, conta Marcos Pennacchi, proprietário da editora.

O setor tem uma reclamação que é comum a praticamente todos os ramos empresariais: a elevada carga tributária que incide sobre a alimentação industrializada. De acordo com França, da Abinpet, cerca de 50% do preço do produto final são impostos e, como parte da clientela se concentra nas classes C e D (de menor poder aquisitivo), os negócios não avançam na medida esperada. Ele também reclama da burocracia excessiva para o registro de novos produtos, que tem levado muitas empresas a perder um tempo precioso. A despeito dessas pedras no caminho, a “capital nacional da indústria pet”, como é conhecida Descalvado, cidade paulista a 250 quilômetros da capital, está otimista. E não é para menos: parte significativa da mão de obra local está empregada na indústria de petfood, calculando-se que o município seja responsável por 10% da produção nacional do setor.

Descalvado recebeu uma fábrica da ração Royal Canin há tempos; depois, novas indústrias do ramo se instalaram na cidade, atraindo outros produtores de petfood, como a SPF, a Evialis, a Vansil e, mais recentemente, a Pet Club, empresa especializada em alimentos para pássaros, peixes e roedores (como os hamsters). Dada a importância econômica da indústria de produtos para animais de estimação, a prefeitura de Descalvado estabeleceu um programa de incentivos fiscais para os empreendimentos do setor que mostraram disposição de se estabelecer no município.