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José Arthur Giannotti




Filósofo critica o sistema educacional e questiona o papel da intelectualidade



Professor Emérito do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), José Arthur Giannotti é especialista em filosofia da lógica, particularmente nos temas da ética, artes e política. Também escreveu sobre a universidade. Foi coordenador da Área de Filosofia e do Programa de Formação de Quadros Profissionais do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), é autor de Notícias do Espelho (Publifolha, 2011), Certa Herança Marxista (Companhia das Letras, 2000), Universidade em Ritmo de Barbárie (Brasiliense, 1986), entre outros.


Em entrevista para a Revista E, Giannotti analisa a situação política brasileira, a crise do papel do intelectual e os efeitos da massificação na sociedade. “O pensamento ocidental está estilhaçado. (...) Vivemos um fenômeno de esgotamento de um tipo de liderança intelectual, de um tipo de política”, afirma. A seguir, os principais trechos.



Qual o papel de um intelectual hoje?


Como sempre, durante um processo de democratização, o intelectual participa mais ativamente; depois, quando as coisas entram em sua rotina, mesmo que ela seja perversa, ele vai para o seu canto e volta a ruminar suas coisas – e a ruminação não é bem uma atividade pública. Há outro fenômeno, mais importante: entramos em uma sociedade de massa e a massificação bloqueia a intervenção dos intelectuais. Isso é bem claro no meu próprio caso, tenho participado bastante da discussão política. Minha geração visava modernizar o país, mas agora com a massificação, em especial a massificação da mídia, o intelectual não tem muito espaço para refletir. Em vez da modernização muitas vezes veio a ossificação do antigo.


O último livro que publiquei, Notícias do Espelho, é uma reunião de artigos, em que, diante de uma situação qualquer, trato de refletir sobre ela de tal modo que possa trazer os fatos do cotidiano para o lado da reflexão, da filosofia, da arte. Esse é o papel do intelectual a meu ver. Isso é quase impossível de se repetir porque o espaço que a mídia nos dá foi reduzido. A sociedade de massa faz com que os intelectuais fiquem mais isolados, mais restritos aos grupos que eles mesmos formam. Isso é um fenômeno mundial, mas no caso do Brasil o movimento ainda é mais perverso: é a massificação das ideias, em particular a massificação da universidade; cada um trata apenas de seu tijolo.


Com a massificação veio a democratização, que era inevitável e é bom, mas que não foi compensada com a formação de uma rede universitária de elite. A inclusão social se torna uma farsa se a universidade inibe o novo. No caso da França, por exemplo, desde a Revolução Francesa, começou a democratização, mas as grandes escolas formam os intelectuais de ponta. Nos Estados Unidos também há Yale, Harvard, MIT [Massachusetts Institute of Technology].


No entanto, a despeito do império das ideias feitas, existem ainda no Brasil pontos de reflexão muito importantes tanto no nível da filosofia, da ciência ou da tecnologia. Noto apenas que não está havendo para o intelectual uma boa atmosfera para reflexão, porque em geral, quando você emite uma opinião, os outros a tomam como se fosse peça de um tratado morto.



A qualidade da discussão política pública diminuiu?


Enormemente. Sempre houve no Congresso Nacional alguns grupos que realmente eram capazes de fazer política pensante. Hoje onde estão esses grupos? Não sei. Em primeiro lugar, a crise deste presidencialismo de coalizão levou todo mundo a ser cooptado pelo sistema, transformando o Legislativo num mercado de trocas. Um vice-governador de um governo tucano vira ministro do governo Dilma – as diferenças ideológicas não importam. Todas as cartas estão embaralhadas. Muitas pessoas estão circulando no poder, mas só algumas têm acesso à presidência.


No Judiciário está acontecendo a mesma coisa, embora o Judiciário seja o poder onde mais explicitamente se juntam o moderno e o novo. No final das contas o julgamento do mensalão não foi brincadeira: pontos essenciais da jurisprudência foram alterados para melhor. Mas assusta a lentidão kafkiana da Justiça, estamos agora julgando casos de 17 anos atrás, do PC Farias [em 1996, o tesoureiro da campanha do então presidente Fernando Collor de Mello, Paulo César Farias, e a namorada foram encontrados mortos] e da invasão do Carandiru [em 1992, 111 detentos foram mortos pela Polícia Militar de São Paulo em uma ação para conter uma rebelião].


Houve um enorme avanço no país, isso é inegável, mas, com o esmorecimento do “lulopetismo” e a perda de sua mensagem, até mesmo a força transformadora da ascensão social perde força, de um lado por exaustão interna, de outro por causa da crise internacional. Além do mais, não temos oposição, nem projeto alternativo. O Brasil é um país sem projeto, somos hoje uma sociedade que pensa exclusivamente no consumo. A infraestrutura intelectual e material do país está indo para o brejo.



O fato de o mercado invadir a política não constitui um fenômeno mundial?


Não. Os Estados Unidos estão saindo da crise através de alguma renovação política, uma política monetária keynesiana muito forte, mas, sobretudo, graças a uma revolução tecnológica tenaz, da qual participamos só na periferia. Estamos virando o pior país do BRICS [atribuição dada a países, segundo economistas internacionais, formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], o país que se contenta em ser pequeno para virar um enorme shopping center. 



Qual sua opinião a respeito do marketing político?


As pesquisas são importantíssimas porque, afinal, você ganha eleição com o auxílio das pesquisas, mas às vezes vale a pena perder a eleição para ganhar um rumo. Ganhar por ganhar pode resultar em nada, além de dar vantagens para os políticos e seus amigos.  Uma democracia é mais do que ter eleições democráticas, é uma forma de vida.



Estamos sem uma agenda de futuro. O que levou a isso?


A democracia se instalou no país, até o Francis Fukuyama andou falando no fim da história; só que esse fim da história se tornou muito curto. A questão da representação foi abafada pela mecânica das eleições, perdendo assim o alvo que visava: tonar os cidadãos mais livres.


Como as pessoas hoje em dia se representam nos órgãos executivos, legislativos e judiciários? É bem verdade que atualmente os grandes países recuperam o poder de fazer história, mas o Brics perdem terreno e o Brasil está se tornando o lanterninha deles. E todos sabemos que, numa sociedade do conhecimento, a educação é o núcleo de transformação. Como está o Brasil nessa corrida? Não temos um grande projeto educacional e não basta injetar dinheiro nela, é preciso formar os professores, mudar comportamentos e currículos. Nós não temos conseguido estimular a nossa juventude para grandes projetos.




De que forma a burocracia atrapalha as mudanças educacionais?


Este país é extremamente burocrático. Lembro de amigos que, chegados a ministérios, diziam que perdiam a maior parte do tempo tirando obstáculos para fazer as coisas. Não é o caso de ser tucano ou petista. O Estado é o mesmo, ele piorou na verdade, foi contaminado com a burocracia partidarizada.


Não há dúvida de que temos burocracia competente, mas ela é lenta. E hoje vige uma concepção totalmente errada da política educacional, centralizadora, e tudo vem de Brasília e das cabeças iluminadas dos pedagogos. Isso é um desastre. Imaginar que vamos ter uma matriz universitária que valha do Oiapoque ao Chuí é uma enorme besteira, porque se a universidade, que é universal e tem uma longa tradição na cultura ocidental, não mergulhar os pés no cotidiano da cidade, ela não será uma universidade.




Esse problema é exclusivo do Brasil?


Temos uma formação muito diferente da dos americanos, por exemplo. A história dos Estados Unidos começa com uma diáspora religiosa, que lhes confere uma ideia de comunidade muito forte. Dez anos, 15 anos depois de que os foundingfathers chegaram a Massachusetts, eles já tinham fundado Harvard, dois anos mais tarde foi a vez de Yale, e assim por diante. Mas esse lado religioso e ético, muito importante, logo se combina com um espírito capitalista violento, cuja base foi Nova York – por sinal, fundada por judeus que saíram do Brasil.


Além disso, o banditismo convive na vida pública e na política americana. Enquanto as Guerras Napoleônicas faziam dos Estados Unidos um grande país, no Brasil D. João deu um golpe genial: transferiu a capital do império para o Rio de Janeiro, abriu a possibilidade para que não nos desintegrássemos como o resto da América Latina, mas implantou a burocracia reinol e o hábito das ideias feitas. As pessoas sempre vieram para cá para ganhar dinheiro e ir embora.


Foi a partir da vinda de D. João VI que o Brasil passou a ter algum sentido. Esse não era um país de imigração, era de passagem. Aos poucos é que fomos nos tornando brasileiros. Tanto é assim que sempre demos pouca importância à educação. Quando se fundou a primeira Universidade? E agora, depois do lulopetismo, a passagem virou consumo, hoje o Brasil é um país de consumistas.




O PT, que tem uma origem ligada à esquerda, chegou ao poder. Quais as diferenças políticas que os governos federais do PT apresentam em relação aos de outros partidos?


A esquerda em geral, e em particular a brasileira, nunca pensou em um projeto político democrático, sempre pensou que a revolução viria, e a partir dela as coisas começariam a andar, nunca refletimos que seria o lado cotidiano da Revolução. Iríamos imitar a União Soviética, Cuba, mas pouco sabíamos sobre como esses governos burocráticos nasceram da opressão dos movimentos libertários. A questão da democracia não foi pensada pela esquerda, apenas reafirmada. Ou seja, a esquerda não pensou a política, a não ser nos anos 1980, com os gramscianos.


Temos uma longa tradição de não pensar a política como um jogo de ganhar aqui, perder ali, e construir um país-espelho das nossas diversidades. O pensamento ocidental está estilhaçado. Até 1960 tivemos grandes filósofos. Hoje é a época dos grandes cientistas. E a ciência, ou as ciências, não pensa o que devemos ser. Vivemos um fenômeno de esgotamento de um tipo de liderança intelectual, de um tipo de política. Pense na política getulista, Getúlio tinha projeto e a oposição também. Ainda que se queresse falar bem ou mal da UDN [União Democrática Nacional], mas havia um projeto, que passava pelos quartéis, claro. Hoje em dia o único projeto é se manter no poder.




Essa falta de oposição que temos hoje no Brasil tem que reflexos políticos?


Estabeleceu-se uma convivência do toma lá dá cá, todo mundo está interessado em assaltar o poder ou colocar as mãos nos cofres públicos. Há uma exploração e uma apropriação do Estado nada democráticas que destroem a política. Hoje os políticos mais efetivos, como perfis públicos, são Romário, Tiririca, e assim por diante. Você acredita realmente que um Sarney, um Renan Calheiros, um Henrique Alves estejam fazendo política duradoura? Qual o projeto modernizador dessas pessoas?



E os novos intelectuais, nesse contexto, como ficam?


O que se publica hoje no Brasil é de uma banalidade enorme. É muito difícil para o jovem escolher um caminho produtivo, o que não implica que não haja jovens muito inteligentes trabalhando muito bem, mas não formam uma geração. O trabalho pelo trabalho é um processo de autoconsumo. A ideia de fazer uma obra aberta, de algo que fique e se ligue a outras, está perdida, mesmo em filosofia. As pessoas escrevem mil livros, querem se projetar, serem aplaudidas por elas mesmas. O que perdemos não é apenas o projeto, mas a noção de transcendência da vida, de seu ir além, o que nos deixa muito pobres.



“(...) não temos oposição, nem projeto alternativo. O Brasil é um país sem projeto, somos hoje uma sociedade que pensa exclusivamente no consumo”


“E todos sabemos que numa sociedade do conhecimento, a educação é o núcleo de transformação. (...) Não temos um grande projeto educacional e não basta injetar dinheiro nela, é preciso formar os professores, mudar comportamentos e currículos”


“A ideia de fazer uma obra aberta, de algo que fique e se ligue a outras, está perdida (...). As pessoas escrevem mil livros, querem se projetar (...). O que perdemos não é apenas o projeto, mas a noção de transcendência da vida, de seu ir além, o que nos deixa muito pobres”


“A esquerda em geral, e em particular a brasileira, nunca pensou em um projeto político democrático, sempre pensou que a revolução viria, e a partir dela as coisas começariam a andar”