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Ai Weiwei critica o governo de seu país e denuncia a destruição das cidades. Ao Lado, June (1994).
Ai Weiwei critica o governo de seu país e denuncia a destruição das cidades. Ao Lado, June (1994).




Menos partidária e pouco articulada com os centros de poder, a arte política de hoje aposta nas relações do cotidiano, nos conflitos sociais e na luta pelos direitos civis

 

Na história, quando arte e política se cruzam, podem ocorrer grandes alianças. Dessa união rica e fértil, surgiram movimentos e obras de grande poder expressivo – como é o caso da obra-prima Guernica – quadro no qual Pablo Picasso retrata toda a dor e o sofrimento imputados à Guerra Civil espanhola –, de 1937, ou então do realismo socialista, que se desenvolveu na União Soviética entre 1930 e 1960, baseado no experimentalismo estético e usado como instrumento de política de Estado.


No entanto, a relação estabelecida entre essas duas esferas autônomas foi ganhando novos matizes, de acordo com o momento histórico. Assim, a arte política contemporânea não tem mais o idealismo utópico das vanguardas modernas, nem como objetivo principal as inovações técnicas e de suportes.


“A arte contemporânea não é necessariamente política no sentido de filiação a um partido ou Estado, ela é muito mais micropolítica, espalhando-se por entre movimentos e ideias que pertencem a múltiplos e pequenos poderes cotidianos e desejos sociais polifônicos”, afirma a crítica de arte, professora e curadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) Katia Canton.



As obras políticas atuais representam uma mudança em relação à arte moderna, em que a política é partidária e articulada por aqueles poucos que detêm o poder. Segundo Katia, esse novo rumo é influenciado pelos realinhamentos sociopolíticos do final da Guerra Fria, com a desestruturação do comunismo soviético e a hegemonia do liberalismo capitalista, cujo símbolo é a queda do Muro de Berlim.


Para o pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Miguel Chaia, quando a economia capitalista, que tem por base o espetáculo e o consumismo desenfreado, torna-se globalizada, a política perde a narrativa da transformação global e estrutural da sociedade. A possibilidade da revolução desaparece e, com isso, a grande utopia deixa de ser a referência de ação.


“Assim como a esfera política se fragmenta, a arte também passa a se politizar em função de preocupações como questões de gênero, de etnias, ambientais, urbanas e de crítica às instituições e equipamentos culturais”, diz Chaia. Como consequência, os focos da crítica radical da arte contemporânea situam-se entre o enfrentamento ao sistema capitalista, de forma geral, e o mercado de arte, de forma específica.



Historicamente, várias gerações e movimentos artísticos criaram estratégias para combater ou ao menos problematizar o mercado. Para Katia, hoje temos os coletivos, a arte urbana, o grafite e os crowdfundings, como são conhecidas as formas colaborativas de obtenção de recursos para realizar exposições, espetáculos e filmes.


“Muitos artistas buscam escapar do círculo vicioso do mercado, recriando seu modo de fazer e de ser no mundo, mas muitas vezes acabam encampando inclusive essas formas inovadoras, apropriando-se delas. É um jogo difícil”, explica. Os coletivos têm papel importante na arte política, com ocupações, atuações autônomas em relação ao mercado e ações de intervenção na cidade e nas instituições culturais. Um a ser destacado, segundo Chaia, é o Projeto Jamac (Jardim Miriam Arte Clube), associação cultural criada pela artista plástica Mônica Nador, em 2004, que atua no bairro Jardim Miriam, na zona sul de São Paulo.


Após várias experiências em pintar casas junto com os moradores da região, Mônica fundou o Jamac e mudou-se para lá. No local, são realizadas atividades de experimentação artística, oficinas e palestras. Os trabalhos elaborados em conjunto com os moradores já participaram de várias exposições e da Bienal de São Paulo de 2006, cujo tema, Como Viver Junto, propunha uma reflexão sobre as relações entre arte e vida, além de promover a inclusão social no universo da arte contemporânea.



Para Chaia, um grande exemplo da arte política na atualidade é o artista e ativista chinês Ai Weiwei, que critica o governo de seu país e denuncia a destruição das cidades, utilizando as ferramentas eletrônicas do blog e do twitter (twitter.com/aiww). Criado em 2006, seu blog, que continha críticas ácidas à corrupção oficial, foi retirado do ar e teve todo seu conteúdo apagado pelo governo chinês em 2009, quando o artista iniciou uma mobilização online para coletar o nome de mais de 5 mil crianças mortas num terremoto na província de Sichuan. A maioria delas foi soterrada em escolas malconstruídas por causa de desvio de dinheiro público.


Esses textos estão disponíveis no livro O Blogue de Ai Weiwei (Martins Fontes, 2013). “O seu discurso, a forma como se apropria das novas tecnologias e sua contribuição na construção de projetos do governo faz parte da sua obra e indicam paradoxos na sua postura política”, analisa o pesquisador. Considerando essa nova faceta da relação entre arte e política, Ai Weiwei avança na pesquisa de linguagem, apontando novas possibilidades para o fazer artístico.



O artista chinês tem sua obra e rotina como tema do documentário Ai Weiwei: Sem Perdão, que esteve em cartaz, em agosto, no CineSesc. Para Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo, “a arte abre-se, em sua essência, a uma dimensão política. Na medida em que o trabalho artístico coloca-se em embate com as questões caras ao seu tempo, a criação oferece um horizonte fértil para a compreensão dos contornos, das escolhas que se apresentam à sociedade”. E completa: “Voltada ao diálogo, ao encontro entre diferenças e à experimentação, a produção artística estimula esse debate de novas ideias e experiências que constroem referências efetivas ao espaço social, ao espaço coletivo”.



CINEMA ENGAJADO



O professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma instituição, André Brasil, aponta, entre os coletivos de cinema, a produção dos núcleos indígenas, vários deles vinculados ao projeto Vídeo nas Aldeias, centro de realização audiovisual e escola de formação para povos indígenas, criado em 1986. “Essa produção, em que as culturas indígenas passam a se performar e citar reflexivamente, em um movimento voltado para dentro da própria cultura e para as outras culturas, endereça questões não apenas ao cinema stricto sensu, mas também ao nosso pensamento e às nossas formas de vida”, afirma. “Além disso, ela sugere outras maneiras de pensar e conceber o que costumamos chamar de ‘imagem’”, completa.


No contexto do que se considera o “novíssimo cinema brasileiro”, geração de realizadores independentes que propõem formas estéticas renovadas, Brasil destaca a obra do cineasta pernambucano Gabriel Mascaro, que inclui os longas Um Lugar ao Sol (2009), Avenida Brasília Formosa (2010), entre outros. Seu último lançamento, Doméstica (2013), causou impacto no meio cinematográfico devido à criativa abordagem para o tradicional tema do conflito de classes, muito trabalhado pelo cinema moderno brasileiro.


O dispositivo desenvolvido pelo cineasta se organiza da seguinte forma: ele entregou uma câmera digital, um tripé e um microfone para adolescentes de sete capitais brasileiras e pediu que eles, por uma semana, registrassem o cotidiano de suas relações com as empregadas domésticas que trabalham em suas casas. Depois, junto com o montador Eduardo Serrano, Mascaro transformou 120 horas de gravação em 75 minutos.


“É neste momento que deixo escapar a minha leitura subjetiva na ‘organização’ das imagens. O desafio da direção, neste filme, diferentemente de gritar ‘ação’ e ‘corta’, foi partilhar as subjetividades, agendar os encontros, elaborar os procedimentos de forma que esse risco da imagem filmada pelo outro me trouxesse surpresas, inquietações”, analisa Mascaro. “E não tem como negar que o filme é também este meu encontro afetivo e político com o resultado dessas imagens brutas”, completa. O resultado é um filme que trata de maneira complexa o conflito de classes por problematizar os limites entre público e privado, trabalho e afeto.



Para Brasil, a classe média retorna como questão em Pacific (filme de Marcelo Pedroso, 2009, realizado com base na montagem de vídeos amadores produzidos sem nenhuma finalidade cinematográfica por passageiros de um cruzeiro de navio a Fernando de Noronha), mas não apenas por meio de outra classe social, mas de suas próprias formas de vida, preconceitos, relação com o trabalho, com o consumo e com o lazer.


“Vale notar como a questão social e econômica retorna nesses filmes, mas atravessada por processos afetivos e subjetivos que transbordam qualquer moldura ou determinação unívocas”, diz. Cada qual a sua maneira, os filmes agenciam imagens amadoras produzidas por uma infinidade de câmeras portáteis, em um trabalho com “arquivos” que nos são contemporâneos. “Trata-se de uma inclusão não apenas da voz, mas do olhar do outro”, explica Brasil utilizando a formulação da pesquisadora Ilana Feldman.



Arte política não é exclusivamente aquela cujo tema trata de aspectos políticos. Na visão de Brasil, o cinema é político quando contribui para sugerir formas de constituição do “comum” que não eram sequer imagináveis. Ele cita novamente a produção indígena, que encena e figura formas de vida e perspectivas que, em sua diferença, estimulam a invenção de formas renovadas de nos relacionarmos com aquelas imagens. “Exige também a reinvenção dos modos de fazer cinema, reinvenção que o mercado está longe de conseguir acompanhar e que a burocracia estatal precisa entender e saber fomentar”, analisa.

passeio estético

Apesar de arte e política estarem desde sempre imbricadas, as configurações desta relação variam historicamente. Acompanhe alguns artistas, obras e movimentos de destaque

Desde sua origem, a arte é acompanhada pela dimensão política, considerando a última de forma abrangente. “As pinturas pré-históricas nas cavernas da Espanha e da França e os antigos rituais de dança e magia já trazem conotações da sociabilidade do lugar e da estruturação do grupo social”, afirma o pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Miguel Chaia.


Entretanto, uma das mais antigas e explícitas manifestações dessa relação está no século VIII a.C., em Ilíada e Odisseia, de Homero e, em seguida, com o teatro grego, do século V a.C., segundo o pesquisador. A partir de então essa aproximação se aprofunda na pintura, literatura, teatro, música e cinema e as relações entre arte e política ganham diferentes contornos no decorrer do tempo em função de inúmeros fatores, como as particularidades das formações sociais, os períodos de valorização do coletivo ou do individual, os contextos de guerras e revoluções, a importância de ações artísticas de grupos, vanguardas ou movimentos e os domínios de gêneros, escolas ou tendências artísticas.


“Assim, sob diferentes condições, o artista alcança a capacidade de expressar poeticamente a sua sociedade, de maneira que a obra passa a conter – de forma mais ou menos explícita – o conjunto de fatores sociais circundantes a ela”, analisa Chaia em artigo do livro Arte e Política (Azougue, 2007).


Para o especialista, pode-se destacar neste trajeto histórico o poeta e dramaturgo William Shakespeare (1564-1616), que desnuda as relações de poder que permeiam a vida; a obra do pintor Francisco de Goya (1746-1828), por denunciar os horrores da guerra e a farsa do poder; Guernica (1937), de Pablo Picasso, um símbolo contra a violência e a guerra, no caso específico, a Guerra Civil Espanhola.


Além dos movimentos de vanguarda artística do início do século 20, como dadaísmo, surrealismo, construtivismo russo e, mais tarde, na década de 1950, os situacionistas, que, sob a influência marxista, trazem à tona a dimensão política em suas obras. Nesse período, artistas engajavam-se em projetos políticos de transformação da sociedade e lutavam pela formação de uma nova consciência sensível através da arte, como é o caso de Bertolt Brecht (1898-1956) e sua proposta de um teatro com função social e pedagógica, de caráter demonstrativo e com personagens que representam forças sociais vivas.


Cabe ainda destacar o poeta Vladimir Maiakóvski (1893-1930), que estabelece um tipo de correlação essencial entre forma e conteúdo e, consequentemente, entre “forma revolucionária” e “arte revolucionária”. “Arte e política envolvem-se intensamente – suprimir a sociedade e a arte, construir uma nova sociedade e superar a arte são as ideias tônicas desses grupos de vanguarda que querem, simultaneamente, a revolução social e a revolução da linguagem”, diz Chaia.


No Brasil, Chaia aponta a importância das pinturas e murais de Cândido Portinari ligados ao Estado Novo [regime ditatorial de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945], a franca dimensão política presente no Teatro de Arena e no Teatro Oficina, o cinema de Glauber Rocha [no contexto da ditadura militar brasileira, de 1964 a 1985], com alegorias que expõem os impedimentos da sociedade e as impossibilidades da política brasileira, as resistências artísticas que se identificam com resistências políticas de Hélio Oiticica e Lygia Clark e as canções de protesto contra a ditadura de Chico Buarque, entre outros.


IMAGENS DA TRADIÇÃO


Mostra fotográfica de Sebastião Salgado traz retratos exuberantes da natureza e de comunidades que preservam culturas em vias de desaparecimento
 

O Sesc Belenzinho recebe, entre 5 de setembro e 1º de dezembro, a nova exposição de Sebastião Salgado, autor dos fotodocumentários antológicos Trabalhadores e Êxodos. Seu mais recente trabalho, Gênesis, é uma pesquisa fotográfica de longa duração, realizada pelo fotógrafo entre os anos de 2004 e 2012, com foco no estado de preservação do planeta, na natureza e na beleza que ainda existe, apesar da destruição causada pelas atividades humanas. As centenas de imagens revelam lugares recônditos, suas paisagens e a vida animal, bem como as comunidades humanas que ainda vivem segundo antigas culturas e tradições, como índios na Amazônia, pescadores na Sibéria e povos anciãos da África.


Salgado e sua equipe percorreram os cinco continentes, registrando a memória da diversidade social e a resistência empreendida por algumas comunidades humanas. Segundo a assistente técnica de artes visuais da Gerência de Ação Cultural do Sesc Juliana Braga, é com alegria que o Sesc celebra, mais uma vez, a oportunidade de exibir a obra única de Sebastião Salgado. “Artista que compartilha, como poucos, seu olhar privilegiado sobre a contradição entre beleza e injustiça presentes na sociedade humana”, diz.


Para Juliana, embora não se possa imputar à arte uma função específica, como veículo para a difusão de discursos políticos ou sociais, há enredamentos possíveis entre a expressão dos artistas, sujeitos ativos e atuantes em seus contextos sociais, e as urgências da própria sociedade em que vivem. “O Sesc, em sua busca por disseminar e difundir as inquietudes presentes na produção artística, pretende configurar a programação de suas unidades como plataforma permanente de reverberação das interpretações que a arte pode oferecer para uma melhor compreensão do mundo”, afirma. 

 

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