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Novo ativismo




As formas de engajamento político atuais divergem das configurações do passado. O militante vinculado a um partido ou instituição que dedicava a vida a uma causa deu lugar ao ativista que se organiza pela internet e defende várias questões políticas ao mesmo tempo. O professor de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Marco Aurélio Nogueira e o psicanalista e professor de Filosofia da Psicanálise na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Tales Ab’Sáber discutem o assunto.



Militantes e ativistas de novo tipo
por Marco Aurélio Nogueira


Em uma época de transformações profundas e aceleradas como a nossa, em que a política perde algumas de suas referências tradicionais e adquire outras novas, em que grupos, classes e instituições parecem não mais estruturar e agregar os indivíduos, ainda é possível falar em militância política?


O militante, entendido como alguém que se dispõe ao engajamento disciplinado em causas de longo prazo, ou, ainda mais, ao estabelecimento de vínculos estáveis com partidos e associações, já não se mostra mais como personagem plausível nos dias atuais. A época não é propriamente favorável à focalização ou à concentração de energias. No entanto, a exigência de militância permanece, a impulsionar ética e politicamente os cidadãos. Ela acompanha os sinais do tempo: investe mais naquilo que se costuma chamar de “política-vida”, concentrada em agendas mais coladas em questões não materiais (direitos, valores, temas éticos e morais) do que na “política-poder”, faz-se sem entregas incondicionais e sem invadir espaços individuais, privilegia agendas amplas e usa intensivamente as tecnologias de informação e comunicação. Precisamos assimilar esse novo patamar da militância e ativismo político, que revela muito das sociedades em que vivemos e do modo como passamos a fazer política.


Quanto mais se observa o mundo, a América Latina e o Brasil, mais se percebe que a nossa é uma época com pouca “cabeça” política, pouca direção, ou seja, sem lideranças individuais ou coletivas (organizadas) que se mostrem capazes de comandar e direcionar massas de pessoas. As mudanças em curso abalam a vida cotidiana, as relações sociais e o Estado, mas não têm um autor que se possa reconhecer. Apesar de haver uma revolução em marcha, nenhuma revolução política ocorre. A revolução é passiva.


Impulsionadas por essa dinâmica, as sociedades se fragmentam, se individualizam e perdem instituições. Tornam--se cada vez mais parecidas entre si, mas dentro delas a diferença se reproduz incessantemente. Sem centros claros de coordenação, as partes (grupos, indivíduos, regiões) se afastam umas das outras e seguem lógicas próprias – ainda que, paradoxalmente, tudo fique mais conectado. Uma multidão de novos sujeitos gera novos conflitos e contradições, embora não consiga interferir de fato no jogo político e redirecioná-lo em termos emancipadores. A hiperatividade da sociedade civil ocorre mais em função da necessidade de autoexpressão do que da disposição para organizar consensos ou lutar pelo poder em sentido estrito. O risco de fragmentação corporativista da representação política aumenta, com efeitos deletérios sobre o processo político: partidos, parlamentares e governos se tornam mais “dependentes” dos interesses que vicejam em seu interior, perdem potência como representantes e ficam menos ágeis para tomar decisões.


Com isso, cai a confiança das pessoas nas instituições políticas. Os próprios políticos enredam-se sempre mais nos meios específicos da política, sejam eles a disputa eleitoral ou a distribuição de verbas e favores. A relação com os negócios agiganta-se. Cresce o risco de corrupção, diminui a densidade ética da política. Todos se tornam mais preocupados em gerir recursos de poder e maximizar interesses eleitorais, deixando de agir para organizar novos consensos e consentimentos. Desajustada pelos novos termos da vida social, a política passa a produzir mais problemas que soluções. Deixa de ser o principal fator de composição social e estabelecimento de equilíbrios e consensos. Sociedades, indivíduos, grupos, nações e Estados tornam-se partes soltas de um conjunto sem muita articulação sistêmica.


Como militar politicamente se o ambiente geral tende à desinstitucionalização? As fórmulas antigas já não funcionam mais. Mantém-se ativa, no entanto, uma expectativa social de “proteção” e operosidade estatal, vocalizada, sobretudo, por setores marginalizados e por uma classe média que, em parte expandida pela incorporação de contingentes populacionais beneficiados por programas governamentais e em parte empobrecida pelo desemprego e por políticas de ajuste, afirma seus direitos perante o Estado. Trata-se de uma expectativa que se liga à exigência de que os governantes “decidam e façam” (o que incentiva tendências populistas e de hipertrofia do Executivo), mas que se combina com uma crescente dificuldade para que se aceitem “ordens” que não nasçam de alguma modalidade de consulta ou interação. Pouco importa que os mecanismos deliberativos adotados produzam resultados precários, desde que eles sirvam para que se manifestem indignação, carências, desejos e opiniões.


Institui-se assim uma nova zona de ação política, menos organizada e mais individualizada, de movimentação contínua, de pressões antissistêmicas erráticas, viabilizadas pelas maiores facilidades de comunicação e contato. Desponta uma politicidade de outro tipo, cujo teor e formato institucional ainda estão por ser estabelecidos. Deriva daí um novo padrão de militância.


Novas modalidades de engajamento seduzem antes de tudo os jovens, mas não se resumem a eles, pois tendem a crescer como uma espécie de paradigma da ação política. Sua característica essencial é o questionamento do ativismo tradicional, sustentado por organizações hierarquizadas, classes sociais e causas gerais. O novo ativista luta por direitos e reconhecimento, não por poder. Não sacrifica a vida pessoal em nome de uma causa coletiva ou da glória de uma organização. Não se referencia por líderes ou ideologias. Age festivamente e sem rotinas fixas, valendo-se muitas vezes da sátira e do deboche. É multifocal, abraça várias causas simultaneamente. Sua mobilização é intermitente. Muitos atuam de modo pragmático, profissionalizam-se como voluntários, buscam resultados mais do que confrontação sistêmica. Seu ambiente são as redes sociais, sua maior ferramenta é a conectividade.


Não há, porém, muralhas intransponíveis separando velhas e novas formas de ativismo, que se cruzam e podem se combinar de diferentes maneiras, beneficiando-se reciprocamente. Se suas agendas contêm distintas ênfases e questões, também estão repletas de temas que somente podem ser enfrentados com sucesso se se interpenetrarem e forem articulados em uma plataforma de síntese política.


O novo ativismo pode ser uma importante alavanca de construção do futuro. Será isso, no entanto, na medida em que considerar o conjunto da experiência social e convergir para a reforma democrática da sociedade, do Estado e da política. Se tentar evoluir solitariamente, fechado em suas causas específicas e na busca de autoexpressão, só produzirá ruído e efervescência, perdendo em termos de efetividade.


A necessidade dessa articulação está posta pela vida. Afinal, o social que se fragmenta não desaparece como social. A dimensão coletiva da existência não se dissolve só porque a individualização se expande. Ainda continua a ser fundamental combinar ações e promover convergências. Além disso, os conflitos de classe permanecem mesmo que as classes não estejam podendo ser atores políticos no sentido próprio do termo. As estruturas de poder, ainda que possam ter enfraquecidos alguns de seus fluxos, preservam sua capacidade de emitir ordens, pressionar e coagir. Os novos ativistas mostrarão a que vieram se conseguirem pensar a realidade como um todo, fazendo as conexões e articulações necessárias para traduzi-la em termos políticos.


“O novo ativista luta por direitos e reconhecimento, não por poder. (...) Não se referencia por líderes ou ideologias. Age festivamente e sem rotinas fixas, valendo-se muitas vezes da sátira e do deboche. É multifocal, abraça várias causas simultaneamente. Sua mobilização é intermitente”


Marco Aurélio Nogueira é professor de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista (Unesp), do Programa de ¿Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP – e Universidade Estadual de Campinas – Unicamp) e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp




Internet e formação na nova política
por Tales Ab’Sáber



A grande rede mundial de computadores e todos os novos produtos construídos para a vida virtual com os computadores, como portais de notícias, games, acesso a filmes e documentos, redes sociais etc., podem ser utilizados de modo conservador e empobrecido, para o isolamento humano e para a excitação da circulação de imagens ligadas ao espetáculo e à mercadoria. Ou, na outra direção, podem ser usados para a constituição de debates, circulação de informação não controlada pela grande mídia e pelo mercado, e para a organização e coordenação de uma nova política.



Durante muito tempo, nos seus primeiros quinze anos, a rede mundial de computadores foi utilizada, no Brasil, na sua maior parte, para a circulação da imagem e dos produtos do mercado, para o contato superficial e cotidiano entre as pessoas, para muita autoexibição e autopropaganda nas redes sociais, para o agendamento de encontros no mundo da diversão e para a compra massiva de produtos pela net. Podemos dizer que esse uso, embora facilitasse e agilizasse a vida, estava amplamente circunscrito à esfera da vida voltada para o mercado, tanto para a compra e a circulação das mercadorias quanto para a circulação do imaginário fetichista da imagem das mercadorias, sobre o espírito e o corpo dos cidadãos plenamente dispostos para o consumo.


Esse uso confirmava o espetáculo da propaganda onipresente e produzia uma cultura muito baixa de grande circulação de fofocas, do império das subcelebridades e de imagens infantilizantes, que celebravam, com baixa densidade estética ou crítica, o mundo como ele simplesmente era. E, neste panorama, o campo potente da rede mundial de computadores era vivido como algo que significava apenas um pouco mais do que uma televisão, tendo acoplada nela uma telefonia e um grande mercado. Esse uso infantil propagandístico da internet, de “política” conservadora, coincidiu com o grande império mundial da cultura do dinheiro, universalmente sustentada como espetáculo pelo neoliberalismo dos anos 1990 e 2000.


No entanto, subterraneamente, uma série de organizações sociais e de questionamento político real circulavam nos horizontes mais amplos da rede de computadores, o que permitia alguma esfera de discussão democrática dos problemas comuns e a manutenção de um constante contato, mesmo no nível abstrato da troca de informações, entre os novos militantes. No mundo da literatura, por exemplo, a explosão dos blogs literários criou todo um verdadeiro movimento, uma verdadeira vida literária, como se dizia antigamente, inteiramente movida pelo trabalho dos escritores disposto na internet. Sites e blogs de política, realizados por jornalistas autônomos e pelos próprios movimentos sociais, mantinham a quem quisesse saber das coisas, e de coisas incomuns de saber no pacto dos grandes poderes próprio da grande imprensa, permanentemente informados. E, aos poucos, com a crise avançada da centralidade mundial da cultura do dinheiro, com a quebra de Wall Street em 2008, começamos a receber informações sobre movimentos sociais de multidões que abalavam velhas realidades sociais e políticas nacionais e que tinham, em seu fundo, o fundamento de uma organização coletiva e política que não passava mais pelas velhas figuras modernas de organização popular, os partidos, os sindicatos, mas que vinha da auto-organização direta, comunicação ampla e ligeira e convocação pela internet.


O novo militante social é munido não de armas, pedras ou coquetéis-molotovs, mas de um computador, da rede mundial e de telefones celulares, carregados com câmeras. É a informação veloz, que ultrapassa insolentemente as forças repressivas, o autorregistro e a autopublicação, que fazem a força social desconhecida da nova política. Como o mundo virtual universal da net, uma espécie de alef borgeano com imagens rápidas e superficiais, que é ligado e desligado de acordo com as necessidades de cada um, a nova política também é um contato constante entre os militantes, ágil e flexível, para a intervenção, a reorientação e a retirada estratégica do movimento, em tempo real dos acontecimentos. Computadores e celulares, que são computadores com telefones e câmeras, são as armas vitais da nova política flexível do novo ativismo e da nova militância.


No entanto, se os instrumentos, os meios de produção da política são esses, o trabalho de julgamento e convocação humana para a militância social não é feito inteiramente nem na sua dimensão mais profunda, pela internet. A internet não forma o sujeito da política. Ela possibilita alguma ação eficaz, para ao presente, mas, de fato, a formação para a política precisa ser feita no contato humano, no debate real e na circulação viva de sonhos entre as pessoas de corpo e alma.


O Movimento Passe Livre brasileiro é um bom exemplo. Os militantes são, em sua maioria, estudantes universitários que, descontentes com os rumos da política oficial da esquerda no país, mantiveram-se em contato, visando a uma ação política real em suas próprias universidades. Nessas universidades, onde também dou minhas aulas, muitos professores exercitam cotidianamente a análise e o trabalho crítico a respeito das coisas sociais e políticas brasileiras. A partir dos encontros do Fórum Social Mundial, desde 2001, esse grupo, também flexível, de jovens ativistas, fundou o Movimento Passe Livre, no ano de 2005. O movimento é uma federação de núcleos regionais de análise e de ação, autônomos, e é independente de partidos, ONGs e empresas financiadoras. Suas decisões são amplamente democráticas e horizontais, e tenta-se, na medida do possível, agir sempre por consenso. Sua ação política é esta: a do exercício democrático cotidiano entre os membros, sem pendor autoritário ou centralizador, e a decisão de intervir diretamente, nas ruas, por uma demanda crítica de caráter universal – no caso o transporte público gratuito – que, na medida em que o movimento trabalhasse e obtivesse sucesso, atrairia o interesse e a força das classes trabalhadoras urbanas que sofrem as violências cotidianas do sistema de transporte público.


Há, nessa configuração, elementos que se parecem com a circulação universal e direta de informação pelas redes da net. Mas, também, há uma formação e uma avaliação políticas e sociais aprofundadas, sustentadas no contato humano e no trabalho crítico no tempo, por muitos anos, uma verdadeira formação crítica para o presente, que envolve conhecimento qualificado e histórico, vida intelectual e pública, e experiência humana, para a democracia e para a ação social. Esse movimento, qualificado, humanista, pela busca do contato, do compromisso e da força política real nas ruas, de base crítica e intelectual, foi um movimento estabelecido entre os jovens, seus corpos, seus corações e mentes reais. Ele é sustentado ao longo de muitos anos, até, finalmente, atingir com força, como razão pública, a vida do presente. Aqui estratégia e compromisso têm profundidade e se expressam em práticas sociais de encontro real.


Esse trabalho é e não é movido ou articulado pela rede de computadores. O que há de essencial nele é um julgamento poderoso e preciso das condições de violência e da realização de uma força política para o presente, o que é um amplo esforço social coletivo, realizado pela vanguarda jovem dos ativistas, o que, como trabalho constante e elevado da formação, não pode ser dado diretamente pela rede de computadores. O espírito crítico não pode ser comprado. Essa formação profunda e eficaz implica necessariamente longos, sérios, mas também eróticos, encontros humanos, de que não temos garantias de que possam ser realizados pela internet.


“O novo militante social é munido não de armas, pedras ou coquetéis molotovs, mas de um computador, da rede mundial e de telefones celulares, carregados com câmeras”


Tales Ab’Sáber é psicanalista, professor de Filosofia da Psicanálise na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), autor de Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica (Hedra, 2011) e A Música do Tempo Infinito (Cosac Naify, 2012).