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A realidade na ficção




O diretor e dramaturgo Leonardo Moreira está à frente da Companhia Hiato há cinco anos. Estreou como autor e diretor com a peça Cachorro Morto (2008) e já com o segundo trabalho, Escuro, recebeu o Prêmio Shell 2011 de Melhor Autor. Com O Jardim levou, em 2012, mais um Shell de Melhor Autor, entre outros prêmios, como o da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) de Melhor Direção e o da Cooperativa Paulista de Teatro por Melhor Autor e Melhor Espetáculo. No final de 2012, o mestre em dramaturgia pela Universidade de São Paulo estreou, no Sesc Pompeia, o espetáculo Ficção, no qual dois monólogos eram exibidos por sessão, totalizando três dias de apresentação. Em encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, o convidado desta edição falou sobre a última peça, explicou como se dá a autoria dos textos para teatro e fez um balanço sobre a cobrança pelos próximos trabalhos. “Nós temos que ter a sinceridade de revelar para o ator qual é a imagem que ele está passando, além de extrair muitas outras coisas que o ator não queria contar”, afirma. A seguir, trechos.



Ficção



O espetáculo Ficção é composto de seis monólogos que chamamos de seis museus biográficos, em que cada ator conta um episódio da sua vida real. Buscamos sempre trazer a realidade considerando que qualquer experiência teatral tem sempre um choque entre o que é real e o que é ficcional. Isso é específico do teatro. No cinema, estou vendo um material morto, e o teatro é um material vivo. Então, esse choque da realidade é sempre muito presente, porque, por mais que o ator esteja na sua frente interpretando Hamlet, você está vendo um ator ali. Você pode ver o suor dele, pode ver se alguma coisa está dando errado, é uma experiência compartilhada. Em nenhum momento é possível esquecer que se está assistindo aquilo e que o ator está fazendo aquilo de forma inédita.


Existem alguns encenadores que colocam a ficção em primeiro plano. Já o Romeo Castellucci [diretor de teatro italiano], por exemplo, coloca em cena um ator que não tem os dois braços na sua adaptação de Hamlet (1992). Quando ele entra, a nossa primeira percepção é real. Não importa se ele está falando que é o Hamlet. A primeira coisa que passa pela minha cabeça é que ele não tem os dois braços. Esse momento de realidade é que é interessante para ele. Era esse momento de realidade que a gente queria entender, sem simular. Nós não queríamos colocar o espectador no lugar confortável da certeza, mas queríamos lembrar o espectador todo o tempo de que estamos aqui compartilhando essa experiência e o ator também está. Por isso, usamos pais dos atores em cena, irmã de uma atriz, o filho de outra atriz. Começamos a trazer realidade, então isso foi fazendo com que limpássemos a cena, mas acabamos vendo que era impossível fugir da ficção. O Slavoj Žižek [filósofo e teórico crítico esloveno] diz que a “ficção é o que determina a nossa realidade”. Agora, por exemplo, estou dizendo para vocês textos que falei, de outros lugares, ou que estou falando agora, de pessoas que conheço e outras que não conheço – portanto, existe uma mediação ficcional aqui.



Autoria



O processo de autoria é totalmente desprovido de hierarquização. Claro que existem as funções. Normalmente sou eu que sento e escrevo o texto a partir da criação dos autores. Sempre há um conceito ou um tema do espetáculo que levo para os atores e digo: “esse é o questionamento que esse espetáculo me deixou”. A partir disso, com discussões, conversas, vamos criando uma linguagem em comum para agenciar essas pessoalidades. No Ficção houve um problema muito claro para nós: o ator estava contando uma coisa achando que passava uma imagem, mas a imagem que ele estava passando era outra. Isso é bem comum na vida, né? A gente acha que está transpondo uma coisa e, na verdade, as pessoas nos estão lendo de outro jeito. Nós temos que ter a sinceridade de revelar para o ator qual é a imagem que ele está passando além de extrair muitas outras coisas que o ator não queria contar. Existe um limite entre o privado e o público, mas tenho que dizer que sou muito grato aos atores porque eles são muito disponíveis, eles realmente se entregam. Temos uma confiança muito grande uns nos outros e vamos trabalhando juntos. Mudamos o Ficção até hoje! As mudanças são em carne viva mesmo. Não tem esse dramaturgo de gabinete, que senta e escreve um texto. É sempre um processo colaborativo, que envolve muita discussão. Temos uma linguagem em comum.



Expectativa



A primeira vez que dei uma entrevista sobre Cachorro Morto [primeiro espetáculo da Cia. Hiato], a jornalista me perguntou: “É muito difícil acertar assim de primeira. Você não tem medo do próximo espetáculo?”. Eu entrei em pânico! Pensei: “Nossa, claro que tenho!”. Mas aí fui baixando a bola, pensando na minha insignificância, senão a gente começa a achar que é uma coisa e que precisamos suprir uma expectativa. Sou só um cara que está tentando fazer isso da forma mais real e honesta possível. Quando a gente saiu de O Jardim [terceiro espetáculo criado pela companhia] – que foi um espetáculo bem teatral, de impacto –, pensei: “Para que vou ficar correndo atrás de outro impacto? Vamos fazer o que queremos fazer!”. Por isso jogamos a expectativa lá embaixo. O Ficção quase não é um espetáculo.


Quando começaram a sair críticas dizendo que um ator é melhor que o outro, fazendo comparações, eles sofreram muito com isso. Cada solo representa muito o processo de cada ator. Às vezes, o público gosta menos dos momentos em que os atores estão mais expostos, pois querem ver uma boa cena. Eles não querem ver o rudimentar e a gente quer mostrar o precário. O Ficção inteiro é trabalhado em cima da precariedade. Seja pelo som que fingimos dar errado, seja pelo texto atrapalhado, seja pela luz estática ao longo da peça – claro que é tudo proposital, mas quisemos trabalhar a precariedade, porque isso dá uma sensação de realidade.


Então, quando assisto Ficção, para mim não importa que sejam bons os monólogos. Importa, sim, que se veja aquela pessoa e o que há por trás daquilo. Isso gera comparação, mas estamos bem resolvidos em relação a isso. A gente sabe que uma crítica diz muito mais sobre quem critica do que sobre quem está sendo criticado.



“Não tem esse dramaturgo de gabinete, que senta e escreve um texto. É sempre um processo colaborativo, que envolve muita discussão.”