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Ousadia e irreverência




Fundador do grupo Secos & Molhados, João Ricardo revela que a mudança para o Brasil definiu a sua escolha para a música



Difícil pensar na formação do rock brasileiro sem a banda Secos & Molhados, em cuja formação clássica estavam presentes João Ricardo (vocais, violão e harmônica), Ney Matogrosso (vocais) e Gérson Conrad (vocais e violão). Criada nos anos 1970, a banda tornou-se referência para diversos estilos e manifestações artísticas, justamente pela junção de elementos teatrais e cênicos à música. E em agosto deste ano completaram-se 40 anos do lançamento do LP homônimo (Secos & Molhados), o primeiro com Ney Matogrosso no vocal. O disco está no imaginário do pop-rock brasileiro, tanto pela musicalidade quanto pelo impacto da capa, na qual os músicos aparecem com as cabeças pintadas e inertes sobre a mesa.


O criador dessa inovação sonora e comportamental nasceu em Portugal e veio para o Brasil no ano de 1964. João Ricardo refere-se a esse momento de mudança como “Cair no paraíso musical”. Conheça os detalhes dessa história em depoimento do músico à Revista E.



Resolvendo indecisões



Não faço ideia de algum instrumento que um parente longínquo tocava e que poderia me ligar à aptidão que desde cedo eu teria para a música. Na verdade ninguém sentiu nenhum pendor musical na família, a não ser eu. Com a vinda para o Brasil, em 1964, a coisa ficou séria. Eu tinha caído no paraíso musical. A essência do brasileiro sempre foi a música, que o mundo todo já conhecia – na época o gênero musical por excelência era a Bossa Nova. Além disso, eu veria o nascimento de outros rumos musicais, como a Jovem Guarda e o Tropicalismo. Isso tudo acontecendo na minha adolescência, num quadro em branco ou numa fita cassete em que ficariam gravadas todas as influências determinantes para minha formação musical.


Ao chegar ao país, meu pai começou a trabalhar no jornal Última Hora, no qual acabei por trabalhar antes de me decidir para a música. Ele era crítico e já em Portugal tinha um grupo chamado Grupo de Teatro Moderno – GTM. Sempre vivi rodeado de cultura, em especial a teatral. Olhando em perspectiva, faz todo o sentido a necessidade da composição de minha banda ter como base soluções estéticas que só podiam ter relação com a engenharia teatral.



Fazendo a diferença



Era preciso achar um sentido para sobreviver entre tanta gente boa que a música despejava continuamente no mercado. O que nos faria diferentes, já que não éramos virtuoses? Maquiar o rosto foi levado ao extremo, mas naquele tempo já se avizinhava o que seria chamado de Glam Rock. Apenas radicalizamos e passamos a usar roupas que compusessem o figurino de maneira harmônica. Repare-se que tudo isso tinha o intuito de acharmos a originalidade necessária para concorrermos em condições minimamente iguais.


Nunca imaginei nem de longe o que seria a indústria do disco, e por isso mesmo tal ingenuidade me permitiu atitudes que ninguém faria em sã consciência, como exigir em uma proposta de gravação a total e absoluta liberdade. Deram e cumpriram. Hoje, vejo que fui petulante. Contudo, sem isso, nada teria funcionado tão bem. Mentem sobre mim, apontando a minha intransigência ou a falta de jogo de cintura, porém, curiosamente, foi essa maneira de ser que levou minha banda a fazer aquilo a que ninguém se atrevia.



Reflexos do que passou



Hoje vejo o rock não como uma reação de rebeldia, e sim um clichê pasteurizado do mais do mesmo o tempo todo. Ah, sim, o Secos & Molhados sempre foi um grupo de rock. Brasileiro. Criativo. Original. E possivelmente único, como dizem. Pode ser que todos os adjetivos enumerados resultaram em nosso sucesso comercial, mas quem é que sabe?


Fazer shows para mim era cantar as canções de sucesso e reinventá-las. Hoje, tantos anos depois, volto ao palco com um garoto trinta anos mais jovem do que eu, o guitarrista Daniel Iasbeck, que tem me acompanhado nos shows. Sinto o prazer de oferecer aquilo que deve ser: a integridade artística e, se possível, com algum talento evidente. As canções, eu já tenho.



“O que nos faria diferentes, já que não éramos virtuoses? Maquiar o rosto foi levado ao extremo,
mas naquele tempo já se avizinhava o que seria chamado de Glam Rock”