Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Orquestra de um homem só

 

Naná Vasconcelos mostrou sua batida perfeita para o mundo e alçou a percussão a outro patamar na música


No registro de nascimento está Juvenal de Holanda Vasconcelos, mas foi com o apelido de Naná carimbado no passaporte que o músico pernambucano levou aos quatro cantos do mundo a sua batida perfeita. Nascido em 1944, desde muito jovem estreitou os laços com a música, em especial com os instrumentos de percussão.

Tocou com Milton Nascimento e, nos anos 1970, no grupo do saxofonista argentino Gato Barbieri, com o qual se apresentou no elegante festival de jazz de Montreux, na Suíça, arrebatando público e crítica. O talento também foi recompensado com o reconhecimento: foi eleito por oito vezes o melhor percussionista pela revista norte-americana Down Beat e ganhou o Grammy (o Oscar da música) outras oito.

Todavia, Naná não dá bola para o glamour, mesmo tendo gravado com nomes reluzentes da música, como o guitarrista norte-americano B. B. King, o violinista francês Jean-Luc Ponty e a banda de rock Talking Heads. Versátil, reafirma o poder visual de sua música, trabalhando em trilhas sonoras diversas, como a do filme Procura-se Susan Desesperadamente (1985), e voltando à cena no instrumental do documentário Revelando Salgado (2013), sobre o fotógrafo brasileiro. Com muita história para contar, Naná conversou com a Revista E sobre momentos importantes de sua vida.


Na origem, o batuque

Comecei a tocar com uns 10 anos de idade. Nunca fui à escola de música e hoje vou como convidado, para dar workshops. Jamais quis ser outra coisa, sabe? Meu pai tocava em uma casa noturna e aos 12 anos passei a acompanhá-lo, porque eu batucava em tudo que encontrava, nas caçarolas, panelas, pinicos. Precisei de autorização do juizado de menores do Recife para estar nesse lugar e não tinha direito de descer do palco durante os intervalos, quando a banda parava de tocar para os casais namorarem. Sim, naquela época criança era criança.

A única coisa que sempre fiz na vida foi música. A vida me levou a aprender a ouvir – isso foi bom –, mas tudo é baseado na intuição, que é forte para mim. Por exemplo, a primeira vez que fui para o Rio de Janeiro, já adolescente, era para passar uma semana, mas não voltei mais. Fui participar nos anos 1960 do festival “O Brasil canta no Rio”. Lá conheci o Milton Nascimento e disse que tinha vindo do Recife para tocar com ele, que não acreditou e me olhou estranho. Lembro bem: era uma sexta-feira e ele estava dando uma festa em casa. Logo na segunda-feira o Milton iria começar a gravar seu primeiro disco.

Numa certa hora todos foram embora. Daí Geraldo Azevedo, que me levou até a festa, pediu que o Milton tocasse uma música. Quando ele pegou o violão eu fui direto para a cozinha e peguei as caçarolas. Ele cantou e eu toquei ali mesmo com as panelas. O bastante para ele me perguntar: “Rapaz, o que você vai fazer na segunda-feira?”. Daí, pronto. Eu já estava empregado. 


Passaporte carimbado

Meu pai faleceu muito cedo e eu fiquei sozinho no meio do mundo, mas nunca me desesperei ou procurei emprego, porque sempre aparecia alguma coisa. Eu estava no Rio de Janeiro tocando com o Milton, veio o Gato Barbieri – saxofonista argentino – e me convidou para uma série de concertos na Argentina. Depois dessa fase, seguimos em turnê para os Estados Unidos e para a Europa. Nesse período, descobri que no jornal só dava eu, tinha algo diferente em mim.

Em 1970 só dava eu com o berimbau e ninguém tinha visto isso. Então era incrível e estava incomodando um pouco os outros músicos, foi muita loucura. Fui para Nova York, não sabia falar inglês e nunca tinha visto neve. Fui morar com quem? Com Glauber Rocha, que estava acabando de chegar. Logo com um gênio, louco, pensador. Foi sempre assim minha vida, estou sendo sincero. Quando senti que estava incomodando o pessoal, pois eu levava a novidade com a música improvisada, a intuição falou mais alto. Lembro-me do último concerto em Paris com o Gato Barbieri. E lá estava o Marlon Brando, o cineasta Bernardo Bertolucci, que eu já conhecia porque ele visitava Glauber.

Incrível! Depois do último show em Paris fomos ao aeroporto para voltar para Nova York, mas cheio de intuição eu disse para o Gato: “Muito obrigado por tudo, vá com Deus, vou ficar. Se der certo, legal, se não der, eu volto para o Brasil e continuo com o Milton”, mas acontece que deu certo.

Isso é maravilhoso. Agradeço ao divino, às forças maiores, jamais quis ser americano. Morei 27 anos nos Estados Unidos porque entendi que eu tinha uma coisa que eles não tinham.


Sou músico improvisador

A percussão é a orquestra dos sonhos. E a música me ensina que cada vez mais sei menos, para não ficar na mesmice. Morei cinco anos em Paris e vinte e sete em Nova York, e depois desses anos todos eu posso dizer que sou um Brasil que o Brasil não conhece. Não faço parte de nenhum movimento, faço coisas que só eu faço, porque não tenho compromisso, “tô noutra”, faço parte da world music. Em agosto de 2013, fui para a Noruega não como música brasileira e sim como músico brasileiro.

Imagina você que a revista Down Beat, que dá o conceito do melhor do ano, não tinha categoria de percussão. Ela foi criada por causa de nós, músicos brasileiros, tendo Airton Moreira e eu como pioneiros. Conseguimos colocar essa parafernália dentro da música improvisada norte-americana.

Ganhei os prêmios, vou todo ano para o exterior, porque o que construí não é fácil. Mas quero trabalhar com crianças carentes, fazer a abertura do carnaval do Recife com os batuqueiros do maracatu, uma coisa que estava desaparecendo. Esse tipo de trabalho me interessa, porque o que plantei lá fora está lá. Eu quero é passar a bola!



“A vida me levou a aprender a ouvir – isso foi bom –, mas tudo é baseado na intuição, que é forte para mim”