Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Sidney Rocha

por Sidney Rocha

INFÂNCIA

Capítulo 1

Um homem chamado Justino e seus primos Ireneu e Hipótilo cercaram Jesus nas proximidades da província de Samaria, antes terras de grande desolação e naqueles tempos refúgio de aventureiros. Eram terras bem conhecidas de Jesus. Era possível caminhar por ali dias e dias sem o incômodo de caravanas e de ladrões, por isso evitara as margens do Jordão para se deixar guiar pelos ventos e pela visão do Mediterrâneo.
Os três eram emissários de um outro homem, acusado de bruxarias, como alterar a colheita do trigo para o mês de maio e fazer animais parirem quadrigêmeos, se isso não fosse algo cuja ciência operaria sem maiores gesticulações e de modo banal algum dia.
Entretanto, havia enriquecido. Vivera a infância ao lado de Messala e Judah Ben-Hur e, diferentemente deste último, sabia se posicionar do lado certo da muralha. Não conhecera as desgraças da escravidão nem as humilhações das galés. Era carismático e sábio conselheiro. Confiavam nele tanto os centuriões quanto os generais. Não mexiam com ele e ele prosperara. Sua importância podia ser medida pelo sem-número de esposas, escravos, gladiadores, ovelhas, a infinitude dos campos e a produção das olarias. Mas prestígio e fama vieram mesmo por conta da alcunha pela qual ficou conhecido até hoje: “Simão, aquele com o grande poder de Deus”.
Este homem – Simão, de Gitton – enviara os amigos a tratar com Jesus e cobrar pedágio por passar em suas terras. Mas, na verdade, o intento era outro: descobrir os seus planos e minar suas intenções, se não fossem de utilidade prática para ele (nem sempre para César).
Em suma: uma missão diplomática.
Os mensageiros eram devotos fiéis deste homem, cuja fama ainda incluía a criação de um calendário baseado nos ciclos do catamênio, importante para fecundar mulheres de todas as idades; as placas de barro eram já muito comuns nos lares de Roma, o método originário das utilíssimas tabelas usadas ainda hoje.
Justino, Ireneu e Hipótilo haviam armado há algumas noites suas tendas a jardas seguras, mas não longe dos olhos profundos do Nazareno.
“Estou avisando: estão outra vez a nos espionar”, disse a Pedro – igualmente Simão. Mas esse era um nome comum naqueles tempos. Segundo o último censo, Pedro, José, Maria e Jesus eram os nomes preferidos pelos pais para os seus bebês, sobretudo os gentílicos da Galileia.
Pedro afastou os mosquitos dos olhos e pediu para o amigo relaxar, pois havia posto sentinelas armadas entre eles e os forasteiros, “talvez os melhores fundistas desde Davi”, e continuou tranquilo fritando perdizes na fogueira.
Mas os primos tinham truques novos a todo tempo. E, quando amanheceu e se pôs a andar, Jesus descobriu nos fundistas de Davi homens bastante volúveis, e como o tilintar de moedas provocava neles delírios de fortuna como em qualquer legião.
“Não temas, homem de Nazaré”, disseram. “Sabemos de tua fama e não te faremos mal.”
“Quem são? O que desejam?” – seriam perguntas inúteis para Jesus. E como ele não fizesse perguntas – a não ser como carne para o espírito das parábolas – e se mantivesse coberto por uma manta de luz quase intransponível, eles foram direto ao ponto.
“Queremos comprar sua capacidade de fazer milagres”, disse Ireneu, que, embora nos livros seja sempre citado em segundo plano, era o chefe deles.
“É verdade, Jesus, temos ordens para seguir-te até onde derem as terras do nosso senhor, e aprender contigo tudo sobre peixes e pães e vinhos, como dizem de ti tantas línguas, e multiplicar a comida para o nosso povo.”
“Nosso mestre Simão, aquele com o grande poder de Deus, esta importante tarefa nos confiou”, complementou Hipótilo, o mais tímido entre eles.
“Mentem, crápulas”, saltou Pedro. “São as terras de Arquelau, filho do terrível Herodes e, antes, de Aulo Gabino, e antes, ainda, dos babilônios. Desde a posse do profeta Eliseu não se dá conta em nenhum cartório de proprietário como este que dizem representar.”
“Já foram, homem. Estás desatualizado. Hoje as terras são do mestre Simão de Gitton, por uso e direito”, disse Justino.
Pedro mediu certa distância dos três.
“Afastem-se.”
Ele estava a ponto de desembainhar a espada, quando Jesus agarrou firme o seu punho. O gesto do Mestre remeteu o discípulo a lembranças de longas conversas com seu mestre, nas pescarias, no maralto, nos desertos, longe das multidões, sempre tentando forjar o seu temperamento, “só há pescadores porque existe a paciência”, tantos conselhos, sobretudo pensar três vezes antes de cada impulso.
E Jesus falou com ele:
“Rhaká! Estás cego? Não vês?”, sussurrou. “Estão em três. Estás porventura surdo? Não ouves o zunir de duas fundas girando atrás de nós?”, cochichou ao ouvido da pedra, enquanto pensava: “Onde estão Thiago, Bartolomeu, Mateus, André, ou mesmo Tomé e Judas, quando mais preciso deles?”.
Mas não se intimidou. Sua voz campeou os vales de tranquilidade, e suas palavras se fixaram na memória de todos:
“Sede bem-vindos, homens de Simão. Podeis caminhar comigo e com o meu amigo Pedro. Como vedes, ele é um homem bom e sensato e para isso o tenho treinado.”
O Messias tem um plano. E continuou, sem mudar o ritmo dos passos:
“Quanto aos teus fundistas, antes nossos fundistas, outrora fundistas da tribo de Davi, ordena, Ireneu, para descansarem. Não o faço eu, pois se digo ‘descansem’, tais cairão gravetos secos sobre a Terra.”
E Pedro reconheceu o quanto aquilo era verdade, pois toda palavra dele, boa ou má, se transformava em milagre.
Recordou em especial o caso contado pelo vendedor de gado Zenon, que tudo testemunhou na Galileia. Tratava-se da história do menino Silas, dos tempos do Mestre também apenas um menino: enquanto Jesus e Silas brincavam no terraço, Silas caiu morto, de repente. E, quando chegaram as gentes, dentre elas os pais de Silas, acusaram Jesus:
“Que fizestes? O empurrastes para que caísse? Que fizestes a ele, menino? Decerto tendes culpa da morte do amado Silas.”
Não adiantou Jesus jurar nada ter a ver com o destino terrível do amiguinho. Mesmo assim, mandaram buscar José e insistiram com ele:
“Teu filho matou o nosso filho e ele, ou tu, há-de nos pagar por esta”.
Os olhos incrédulos de José contemplavam assustados a criança morta e anteviam o tamanho da encrenca.
“Conte-nos a verdade, filho. Como tudo se deu?”, implorou a Jesus.
“Caiu morto, pai, eu já disse. Ocorre de as pessoas morrerem, não?”
“Mentira. Era saudável”, gritou a mãe de Silas, mas foi segurada por amigos.
“Mentira, era hábil e não cairia sozinho. Só era um pouco tolo, mas quem poderia adivinhar que hoje se envolveria com uma serpente?”, disse o tio de Silas, político influente.
A multidão criava corpo em torno deles.
Jesus, então, vendo a encrenca, gritou no meio do terraço, e todos ouviram:
“Silas, meu amiguinho Silas, te ordeno: levanta-te deste chão quente e responde: toquei em um único fio dos teus cabelos, fiz algo contra ti para morreres tão de repente?”
Nesse momento a terra tremeu levemente sob os pés da multidão e as pessoas viram aterrorizadas o pequeno Silas se levantar com leveza de anjo e responder:
“Não, Jesus, de modo algum, pelo contrário: acabas de me ressuscitar. Por esse milagre, somos, eu e meus pais, mui e para sempre gratos.”
Então, os pais de Silas e todos os acusadores de Jesus dobraram os joelhos em agradecimento.
Porém, Jesus tornou a ordenar ao amiguinho:
“Sim, Silas, todos te ouviram. Agora, volta para o reino da morte, pois está provado: não tenho parte com nada disso, e a multidão sempre me acusa sem provas.”
E Silas caiu morto outra vez. Para sempre.
Pedro recordava cada palavra de Zenon, enquanto preparava o acampamento para a longa noite em companhia do Mestre e dos três visitantes inesperados.

(Capítulo do romance inédito Infância, de Sidney Rocha).

Sidney Rocha é romancista, autor de ¿Matriuska (2009, Iluminuras) e O Destino das Metáforas¿(2011, Iluminuras), com o qual venceu o Prêmio Jabuti 2011. Atualmente, prepara o romance Geronimo