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João Adolfo Hansen


O professor comenta a posição do sertanejo na obra de Guimarães Rosa e de outros autores e avalia a formação cultural do povo brasileiro


Professor do Departamento de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP), João Adolfo Hansen é autor de A Ficção da Literatura em Grande Sertão: Veredas (Hedra, 2000), A Sátira e o Engenho – Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII (Companhia das Letras, 1989), com o qual ganhou o Prêmio Jabuti, em 1990, na categoria Estudos Literários, entre outros. É especialista em estudos comparados de literatura de língua portuguesa.
Em entrevista à Revista E, Hansen analisa aspectos da obra de Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Mário de Andrade e fala sobre a formação cultural brasileira. “O que fez o Império? Nada. O D. Pedro II governava para a elite branca latifundiária, para 10% da população”, afirma. “Em uma sociedade assim, quando os primeiros literatos aparecem, como o José de Alencar, eles têm um projeto de fazer da literatura não ficção, mas documento. A literatura vai ocupar o lugar da sociologia, da geografia, da antropologia, da história, para informar, documentar”. A seguir, trechos.

Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa, dialoga com outras obras da literatura universal?
Eu pensaria em um duplo diálogo. Quando Guimarães Rosa escreve Grande Sertão pressupunha a literatura regionalista que vinha sendo feita pelos românticos desde o século 19, que tentaram escrever sobre o sertão e o homem sertanejo brasileiro sob a perspectiva do litoral. A ideia antiga de que o Brasil tinha duas culturas, uma cultura litorânea, europeia e civilizada e depois no século 20 de um Brasil que se industrializa, enquanto no interior, no sertão, teria permanecido uma cultura analfabeta, arcaica, rural, quase medieval. Autores do século 19, por exemplo, José de Alencar, Franklin Távora, Domingos Olímpio, Euclides da Cunha, e autores do início do século 20, como o Afrânio Peixoto, depois os romancistas da década de 1930, como José Lins do Rego, e, principalmente, Graciliano Ramos, são autores que escreveram sobre esse tipo humano, o sertanejo. Quando Guimarães começa Sagarana, na década de 1940, ele tinha essa literatura, que dá conta de regiões do interior, chamada de regionalista, como referência, mas ele escreve sobre tipos humanos desta região do Brasil central que ele chamou Gerais, que começa no sul do Maranhão e vai até a Serra da Canastra em Minas Gerais e toma por eixo o Rio São Francisco. Ele começou a escrever sobre esse tipo de sertanejo – mineiro, goiano, baiano –, ambientando as histórias na região. Nisso ele parece um autor tradicional, falando de costumes, usos e do arcaísmo dessas populações. Mas, ao mesmo tempo, o modo como ele interpreta e situa as histórias faz delas cenários para a discussão de coisas muito antigas, metafísicas, como a oposição do bem e do mal. Além disso, há a relação de Guimarães com a literatura universal. Por exemplo, quando no Grande Sertão, o jagunço Riobaldo faz um pacto com o diabo para obter poder. Esse tema é constante na literatura mundial. O Grande Sertão tem relação direta com o Dante Alighieri da Divina Comédia, há no texto pelo menos umas 40 citações ao inferno de Dante. Depois com um grande teatrólogo inglês do século 16, o Christopher Marlowe, com The Tragical History of Doctor Faustus, ainda as lendas medievais alemãs do Doutor Fausto, ou o Fausto do Goethe [escritor alemão, cuja produção é do final do século 18 e início do século 19], o Doutor Fausto do Thomas Mann [importante romancista alemão do século 20]. Ao mesmo tempo em que ele estabelece a relação com a literatura brasileira regionalista, incorporando-a e a superando-a, ele mantém essa relação com a literatura universal.

Guimarães Rosa supera a literatura brasileira regionalista em que sentido?
De modo geral, nesses autores anteriores, a representação do sertanejo era a de um tipo humano inferior, ou porque ele tinha mistura racial ou porque não conhecia a civilização ocidental, as letras, as artes, a cultura do litoral. Então ele sempre era representado pela perspectiva de um narrador que era um homem ilustrado, um tipo do litoral falando sobre o sertão. O Rosa dá voz ao sertanejo, não tem alguém que faz mediação falando por ele, o que é uma coisa política. Ele mostra que o sertanejo tem um mundo perfeitamente consistente, que ele não é inferior, mas tem códigos que passam por fora da cultura ocidental, do litoral. Nesse sentido ele confere autonomia política a essa figura. De maneira geral os projetos políticos em relação ao sertão ou foram românticos ou então racistas: no fim do século 19 afirmava-se que, como o sertanejo era uma mistura de raças, ele pertencia a uma raça inferior e estaria condenado ao desaparecimento e à degenerescência. Nesse mesmo período, surgiram os programas para trazer imigrantes arianos para o Brasil, o projeto de branqueamento. O Rosa não é romântico, nem racista, nem determinista, ele tem uma visada antropológica muito segura. Nesse sentido, ele supera a visão dicotômica, na visão dele há uma síntese. E ele faz literatura, inventando uma linguagem que é própria, não segue projetos ideológicos. Há termos de comparação dele com James Joyce do Finnegans Wake, na tentativa de fazer um texto que tivesse todas as línguas do mundo. O Rosa dizia que queria falar a língua de Babel, que era a falada antes do pecado original e para isso ele precisava de todas as línguas do mundo. Ele estiliza os falares tradicionais, inventa palavras e construções inesperadas. O Rosa é um escritor moderno, mas platônico, na ideia de procurar a essência das coisas.        

Qual o papel de Minas Gerais na literatura brasileira?
Minas produz umas coisas esquisitas, ela produz Pedro Nava, Murilo Mendes, Drummond, Guimarães Rosa, Ciro dos Anjos e vários outros. Dizem que Minas é toda para dentro, sempre ruminando. Não sei se seria possível, em São Paulo, ¿o surgimento do Rosa, acho que dificilmente. Em São Paulo temos uma experiência de vida que é muito mais norte-americana, uma experiência de plástico, artificial, industrial. A experiência do Rosa e principalmente o tempo dele, na década de 1920, 1930, Cordisburgo e Belo Horizonte eram lugares semirrurais. Minas é um interior, não conhece o mar, é montanha, teve uma formação histórica isolada desde o século 18. O isolamento físico em relação ao resto do Brasil teria garantido a permanência de padrões culturais antigos, arcaicos, que são formas de experiência válidas, mas que a cultura industrial já classificou desde o século 19 como superstição.  

Por que a literatura brasileira tem pouca ligação com a filosofia?
Pela própria formação histórica do país, em que a cultura nunca foi possível para todos. Fico pensando que esses autores são grandes apesar do Brasil. Penso no Machado, no Rosa e no Drummond, eles nasceram em lugares absolutamente inimigos de coisas intelectuais. O Rosa está no meio do mato, em Cordisburgo, o Drummond em Itabira, que era um vilarejo, o Machado no morro carioca. Não sei como eles resistiram às doenças brasileiras quando eram crianças, não morreram, resistiram à família, todo o conservadorismo da família, resistiram à escola, à estupidez da escola brasileira, aos professores primários e secundários, resistiram também às circunstâncias políticas, aos golpes militares, à violência, à estupidez da classe política brasileira, sempre, à arbitrariedade, à falta de lei – e fizeram uma hiperconcentração, não sei como, e resolveram apostar, é uma aposta para nada. Eu vou fazer poesia. Eu vou fazer contos. Agora, o que determina essa escolha de um homem? Porque muitos outros tentaram e fracassaram. Você poderia dizer que eles tinham talento natural, talvez. Mas as circunstâncias eram todas inimigas. Se eles fossem autores vivendo na Alemanha, nos Estados Unidos, já teriam uma tradição cultural densa. Eles não. Eles fizeram contra todas as ambiências. Havia literatura, mas era uma coisa oficialesca, coisa de Academia Brasileira de Letras, intelectual pensando com polaina. Não dá para acreditar nesse tipo de literatura, que geralmente compactua com poderes existentes. Eu sempre achei isso inexplicável.

Existe diferença entre a literatura feita no litoral e a feita no interior?
Acho que existe uma oposição estabelecida pelo Rosa, quando ele supera o regionalismo. No século 19, no Brasil, não tivemos instituições de cultura, não houve universidade, ciência, antropologia, não houve nada. O Império foi horrível, continuamos coloniais, mantivemos o latifúndio, a escravidão, a religião católica como oficial, o voto censitário, a educação. O que fez o Império? Nada. O D. Pedro II governava para a elite branca latifundiária, para 10% da população. Em uma sociedade assim, quando os primeiros literatos aparecem, como o José de Alencar, eles têm um projeto de fazer da literatura não ficção, mas documento. A literatura vai ocupar o lugar da sociologia, da geografia, da antropologia, da história, para informar, documentar. Isso marcou a literatura brasileira desde o século 19 com uma tradição realista. Havia um limite do que o escritor queria dizer que era o realismo. Os românticos, os realistas, a maior parte dos escritores da década de 1930 era realista. O Rosa chega e acaba com o realismo. Ele faz uma literatura regionalista no nível da descrição dos tipos, dos costumes, da paisagem, mas ao mesmo tempo ele joga isso para o âmbito da metafísica, da imanência. Ele afirma a autonomia da ficção. A literatura se explica por si mesma, ela é ficção. O romantismo todo surge associado ao nacionalismo. O romantismo vai se fazer como arte própria de cada nação que está se constituindo depois da Revolução Francesa na Europa. Da mesma forma aconteceu aqui, nosso romantismo foi nacionalista. Esse mesmo nacionalismo se mantém na Semana de 22 e entre os que vêm depois também. No sentido de uma literatura brasileira, em que brasileira era o substantivo e literatura, o adjetivo. Machado de Assis quebrou isso, ele faz antes de tudo literatura, ele se recusa a usar a literatura como documento e neste sentido ele supera os escritores de seu tempo. ¿Qual o papel do Euclides da Cunha na literatura?
Eu pessoalmente acho o Euclides da Cunha horroroso. Aquela linguagem científica, pedregosa, elaboradíssima, tudo bem, mas a ideologia dele era determinista, racista. Embora Os Sertões esteja atravessado por uma contradição: ele usa categorias deterministas e racistas para analisar os jagunços, ao mesmo tempo que a ação dos jagunços invalida as teses dele. E o que fazer com isso? Como sociologia, ela está superada, e como literatura não é literatura. Ele foi supervalorizado, pois foi um dos primeiros que chamaram atenção para as violências que o Estado brasileiro fazia com essas populações. Nisso ele é genial, ele denunciou o crime para o país. Mas o texto dele era muito problemático. O Rosa tem muito de Euclides, ele era um grande leitor de Euclides, de Gilberto Freyre, depurando, citando e criticando sempre, claro. 

Como você vê o projeto de nação do Mário de Andrade com o Macunaíma?
Está implicado antes de tudo um discurso das vanguardas europeias, a revolução das linguagens, depois o projeto nacionalista de Mário contra Portugal, que era fazer uma língua brasileira de literatura moderna, no que ele retoma o Alencar, que também tinha tido esse projeto. E ainda uma experiência formal com essa ideia musical de fazer uma rapsódia, um texto de muitos movimentos, mas com esse tema, que é um tema que durou até os anos 1970 no Brasil, da identidade nacional, o que é ser brasileiro. Aí a ideia de buscar uma síntese, ele faz uma síntese histórica com Macunaíma, o brasileiro é branco, negro e índio e ele viveu várias fases econômicas, desde o extrativismo colonial, o açúcar, o ouro, o gado, chegando até a indústria no século 20. Mas é um livro que chega à conclusão de que Macunaíma é um herói da nossa gente, sem nenhum caráter, ele não tem nenhuma moral. Portanto, ele é um anti-herói, e também não tem essência – brasileiro é uma mixórdia. Trata-se de um livro de uma síntese não sintética, com uma mensagem melancólica. O Brasil devora o brasileiro, quando o Macunaíma no final é devorado pelo próprio mito, a Iara. Achei interessante a interpretação que Joaquim Pedro de Andrade fez no filme. No fim, ele faz o Macunaíma branco e quando ele volta para o mato, onde não tem eletricidade, leva todos os signos do progresso, leva TV, telefone. E, em uma cena, ele está sentado debaixo de uma árvore, vestindo as cores da bandeira. É uma metáfora do Brasil, uma estrutura arcaica na qual se estabelece uma modernização que não se integra. O brasileiro é um tipo devorado pela luta do arcaico com o moderno. Isso que os sociólogos chamaram de modernização conservadora.
Por que a literatura brasileira não se caracteriza, em geral, pelo confronto e subversão?
Tem pouco, ela é muito mansa. Há exceções, claro, como os escritores que falaram da ditadura militar, o Antonio Callado, vários escritores que escreveram sobre a tortura, que tomaram posição, mas de modo geral ela tendeu a ser uma literatura, como dizia o Afrânio Peixoto, espécie de sorriso da sociedade – a ideia de que a literatura é uma diversão para as mocinhas, um homem sério não ia se ocupar disso. Em um país que mantém até hoje a herança colonial do analfabetismo, do iletramento, da falta de acesso à cultura, com essa educação pública que é uma vergonha, a literatura dava distinção social, numa linhagem colonial que vem lá das academias do século 17. O Drummond dizia, quando ele publicou Confissões de Minas, em 1944, que faltava à literatura brasileira o senso do tempo e que o escritor brasileiro devia se empenhar moralmente em sua prática, ele deveria tomar posição. Os grandes escritores são os que negam. Conto nos dedos: Machado de Assis, Oswald de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e João Cabral de Mello Neto. Estou sendo injusto porque há outros, como o Callado. Eles se recusam a repetir fórmulas de uma literatura já feita, e isso já é político, porque eles obrigam os leitores a mudarem hábitos de percepção.

Você acha que o universo cultural brasileiro é muito contemporizador?
Hoje é o predomínio da mídia, esta visão norte-americana midiática que transforma a cultura em indústria, e indústria é dinheiro. E esse narcisismo difundido, uma ideia narcísica do sucesso, é preciso ser visto, ter fama, ser reconhecido. Em uma sociedade assim, você tem que ser amigo de todo mundo, as pessoas vão fazendo acordos, conciliações. Isso é hipermoderno, mas recupera a tradição do corporativismo colonial, o compadrio, o clientelismo, o favor. Um escritor que tem a cabeça dessa forma, o que ele pode dizer sobre a morte, sobre o sexo, sobre o sofrimento humano? Temos uma experiência muito anêmica na cultura. Nós somos um país culturalmente muito ignorante, e neste sentido, acho que a literatura até que se sai bem. Às vezes, ela consegue resistir.

“Hoje é o predomínio da mídia, esta visão norte-americana
midiática que transforma a cultura em indústria,
e indústria é dinheiro”

“Eu pessoalmente acho o Euclides da Cunha horroroso. ¿Aquela linguagem científica, pedregosa, elaboradíssima, tudo bem, mas a ideologia dele era determinista, racista.”


“O Rosa dá voz ao sertanejo, não tem alguém que faz mediação falando por ele, o que é uma coisa política. Ele mostra que o sertanejo tem um mundo perfeitamente consistente, que ele não é inferior, mas tem códigos que passam por fora da cultura ocidental, do litoral”

“Os grandes escritores são os que negam. conto nos dedos: Machado de Assis, Oswald de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e João Cabral de Mello Neto. ¿(...) Eles se recusam a repetir fórmulas de uma literatura já feita”