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Pesquisa com padrão mundial

Foto: Camila Carvalho/Instituto Butantan
Foto: Camila Carvalho/Instituto Butantan

Por: REGINA ABREU

É possível que nem em seus mais futurísticos sonhos o médico Vital Brazil, primeiro diretor do Instituto Butantan, tenha imaginado que um dia a instituição sob seu comando pudesse se transformar num dos maiores centros de pesquisa biomédica do mundo. Passados 112 anos desde a sua fundação, o Butantan é hoje responsável por 93% dos soros e imunobiológicos produzidos no Brasil, tais como as vacinas contra difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e influenza sazonal e H1N1. E, em meados de agosto último, o instituto foi autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a testar em humanos uma vacina contra a dengue, que vem sendo desenvolvida desde 2006. Uma outra vacina com o mesmo propósito vem sendo elaborada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com a empresa GSK, no Rio de Janeiro. No Butantan, os estudos serão feitos com trezentos voluntários em três centros de pesquisa em São Paulo pelo período de cinco anos. Em comunicado, o Ministério da Saúde explica que a autorização refere-se à fase dois do estudo e tem como finalidade analisar a efetividade, a eficácia e a segurança da vacina.

O Instituto Butantan, ligado à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, faz muito mais do que estudar cobras e animais peçonhentos, a origem de suas atividades. Em março de 2014, a vacina contra o HPV (papilomavírus humano), principal causador do câncer de colo do útero e outros tumores, estará disponível na rede pública, quando se pretende vacinar todas as meninas brasileiras de 10 e 11 anos. A produção estará a cargo do Butantan mediante acordo de transferência de tecnologia com a MSD (no Canadá e nos Estados Unidos a empresa é conhecida por Merck Co.), uma multinacional com fábrica no país e que se autoapresenta como a líder mundial em cuidados com a saúde. A empresa diz, em seu site, que “por meio dos nossos medicamentos, vacinas, terapias biológicas, produtos de consumo e de saúde animal, trabalhamos em mais de 140 paí­ses para oferecer soluções inovadoras”. O diretor do Butantan, Jorge Kalil, afirma que o investimento em novas tecnologias, incluindo parcerias estratégicas, “devem ser a base de inovações que possibilitem ao país a independência tecnológica”.

Já a produção das vacinas contra gripe e outras doenças, que deve passar de 90 milhões de doses, em 2012, para 110 milhões, em 2013, vai ganhar investimentos da ordem de R$ 150 milhões em obras de expansão e equipamentos, a fim de aumentar ainda mais a capacidade existente. Os recursos provêm dos governos federal e estadual e da Fundação Butantan. A instituição ganhou tamanha notoriedade que a Fundação Bill & Melinda Gates pretende adquirir vacinas contra tétano, coqueluche e raiva produzidas pelo instituto.

Pesquisas de células-tronco para implantes dentários é outra área de grande interesse em que o Butantan também atua. As células-tronco são retiradas da polpa de dentes de leite de parentes e, após cultivadas em laboratório, são implantadas em pacientes que perderam dentes e tiveram o osso reabsorvido (o osso que estava ao redor da raiz do dente extraído caiu, ou simplesmente, “desapareceu” depois de algum tempo). A ideia é formar osso suficiente para posterior implante.

Os estudos seguem avançados no Butantan. Além da aplicação das células-tronco em implantes dentários, há ainda um leque enorme de possíveis utilizações, abrindo caminho e dando esperança aos portadores de doenças motoras, imunológicas e de enfermidades psiquiátricas. Estudo realizado pelos pesquisadores do Laboratório de Genética daquela instituição criou um procedimento que permite extrair grandes quantidades de células da polpa dentária e de diferentes tecidos humanos. A ideia é que elas sejam usadas no aperfeiçoamento de novos tratamentos como regeneração de ossos e nervos, reconstrução de músculos e cartilagem.

Os últimos testes em animais mostraram que as células, em questão, não possuem nenhum efeito colateral quando comparadas a biofármacos e a outras drogas. Com a eficiência comprovada, os pesquisadores desenvolveram um banco para criação e armazenamento de células-tronco, e ele possui capacidade para 6 mil amostras. Cada amostra é suficiente para tratar até cem pacientes, o que torna o Instituto Butantan autossuficiente na produção e na certificação de células-tronco. A expectativa é que os testes em humanos sejam realizados dentro de poucos anos.

Onze bombeiros

Em maio de 2010, o superaquecimento de um aparelho no edifício das coleções, onde estavam guardados milhares de animais mortos conservados para pesquisa, causou um incêndio que destruiu 500 mil amostras. No prédio havia mais de 200 mil litros de álcool armazenados, e o local ficou completamente destruído. Mesmo assim, nos últimos anos, parte dos trabalhos que era realizado naquele espaço continuou seu curso, mas o edifício destruído e a coleção perdida consumiram um longo tempo até serem recuperados. Cerca de 4.200 bichos são doados por ano ao Butantan pela população. Outra parte chega ao instituto como resultado das expedições dos pesquisadores a várias partes do Brasil e do mundo.

Em agosto passado ficou pronta uma nova área para abrigar as coleções, até então espalhadas por pequenas salas. Os 1.600 metros quadrados da construção estão distribuídos em dois pisos: o primeiro é destinado aos animais; o segundo aos laboratórios, abrigando cerca de 1 milhão de espécimes. Além disso, está disponível para os especialistas uma série de equipamentos para análises genéticas, uma novidade para o departamento, antes focado apenas na observação e classificação dos bichos.

Em decorrência do incêndio ficou estabelecido que o acervo não ficará mais armazenado em um único local. Agora, sete salas recebem os animais, agrupados de acordo com suas características. Os laboratórios também ficam em áreas separadas para evitar o contato desnecessário com o acervo. A nova construção garante condições adequadas para abrigar o precioso catálogo – dos R$ 5,5 milhões investidos na obra, quase metade foi destinada a dar maior segurança ao local. Na época da tragédia só estavam disponíveis extintores manuais e, para piorar, não havia detectores automáticos de fumaça. Hoje, o prédio conta com pelo menos três modernos sistemas de proteção já instalados, além de uma equipe exclusiva de onze bombeiros.

A partir da década de 1970, o Instituto Butantan, reestruturado no final de 1968, deu novo impulso no desenvolvimento de suas atividades científicas, reafirmando sua vocação original em pesquisa, biotecnologia e educação aplicadas à saúde pública. Hoje, mantém sua característica de escola científica com equipes de pesquisadores com formação em biologia, medicina, farmácia, bioquímica, entre outras, mantendo intercâmbios, inclusive internacionais.

Durante os anos 1980, foram ativados sete laboratórios especiais: Biologia Molecular, Centro de Biotecnologia, Centro de Pesquisa e Formação em Imunobiologia “Otto Guilherme Bier”, e ainda os de Imunogenética, Imunoquímica, Imunologia Viral, Zoonoses e o de Endemias Parasitárias. Com a implantação do Centro de Biotecnologia em 1985 e o apoio do Ministério da Saúde e dos grupos de trabalho, foi possível iniciar os programas de autossuficiência brasileira em imunobiológicos, de tal modo que, hoje, o Butantan produz quase a totalidade das vacinas e soros nacionais.

O avanço continuou com a reestruturação em 1991, que proporcionou maior agilidade à organização interna e a criação de novos departamentos de estudos experimentais, como o Laboratório Especial de Microbiologia. Teve, ainda, o incremento da fabricação e desenvolvimento de novos itens, soros antilinfáticos, surfactante e vacinas produzidas com técnicas de engenharia genética. O Instituto Butantan sempre manteve entre suas atribuições a pesquisa com animais peçonhentos e seus venenos, e a produção de soros e vacinas. Hoje, avanços tecnológicos exigem equipes multidisciplinares para a pesquisa e produção.

O Centro de Biotecnologia visa o desenvolvimento de tecnologias à produção de imunobiológicos para processamento de grandes volumes de soros, vacinas em menor tempo, a custos mais baixos e alto grau de pureza, com maior segurança, eficácia e qualidade reconhecida pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Além dos produtos tradicionais do Instituto Butantan e das vacinas recombinantes, são conduzidas pesquisas em novas áreas de grande impacto social, como os biofármacos e outros produtos biológicos importantes para a saúde pública.

Laboratório na cocheira

Enquanto os estudos e a produção de soros e vacinas continuam, pesquisadores do Laboratório Especial de Coleções Zoológicas trabalham em outra frente. Eles fizeram uma descoberta importante para a fauna mundial: após seis anos de estudos na Mata Atlântica brasileira, identificaram e detectaram 17 novas espécies de aranhas. Com investimentos de mais de US$ 3 milhões, o projeto visa descobrir todas as espécies pertencentes à família Oonopidae.

O Inventário Planetário de Biodiversidade Oonopidae (PBI, na sigla em inglês), nome dado ao trabalho, já descreveu 1.016 aranhas desta espécie. Os pesquisadores acreditam que ela é composta por mais de 3 mil animais da família, espalhados pela Mata Atlântica e em várias partes do mundo com vegetação semelhante. Essa descoberta é fundamental para o aumento da diversidade da fauna local e mundial, além do estudo dos venenos e da biologia dos animais. As novas espécies de aranhas pertencem ao mesmo gênero, o Predatoroonops, e foram batizadas assim em homenagem aos 25 anos do filme O Predador, do diretor John McTiernan (as espécies possuem a morfologia frontal da carapaça semelhante à cabeça do personagem). Outro animal descoberto é um novo tipo de sapo Cururu.

Ao contrário dos outros anfíbios, que expelem veneno somente após sofrerem um ataque, o Rhaebo guttatus, espécie encontrada na Amazônia e em outros países da América do Sul como Bolívia, Colômbia, Equador e Venezuela, tem um mecanismo de veneno ativado voluntariamente. Em estudo realizado no período de um ano, revelou que o animal, por meio de movimentações corporais que causam a compressão do paratoide (glândula situada atrás dos olhos que armazena o veneno), esguicha a substância a uma distância de quase dois metros. Com isso, o sapo libera um líquido com propriedades inflamatórias, capaz de causar complicações neurotóxicas, cardiotóxicas, edemas pulmonares, problemas no sistema digestivo e até mesmo matar. Essa descoberta pode revolucionar o estudo dos anfíbios, pois jamais se imaginou um sapo com esse tipo de comportamento predatório.

As investidas do grande centro de pesquisas vão além dos laboratórios e chegam à sala de aula. A partir do segundo semestre deste ano, teve início no Butantan um curso inédito de Gestão da Inovação em Saúde com duração de 18 meses. Ele visa a capacitação dos participantes para transformar pesquisas científicas em práticas inovadoras de produtos em saúde, com benefícios à população. As aulas oferecem mecanismos que facilitam a transferência de tecnologias, combinando conteúdo acadêmico que são ministrados por profissionais especializados em pesquisa, desenvolvimento e produção.

A história do Instituto Butantan, quem diria, começou a ser escrita numa cocheira. Um surto de peste bubônica que se propagava no porto de Santos, em 1899, levou o governo a adquirir a fazenda Butantan para instalar um laboratório de produção de soro antipestoso, vinculado ao Instituto Bacteriológico, atual Adolfo Lutz. Esse laboratório foi reconhecido como instituição autônoma em fevereiro de 1901, sob a denominação de Instituto Serumtherápico, sendo designado para primeiro diretor, o médico Vital Brazil Mineiro da Campanha. Graças ao idealismo de Vital Brazil, que além da produção de soros e vacinas também se preocupava em desenvolver pesquisas, o Instituto tornou-se internacionalmente reconhecido.

Animais vivos

Em 1914 foi inaugurado o prédio principal, com as condições necessárias para abrigar os laboratórios em torno dos quais se desenvolveu uma instituição que combina pesquisa e produção. Pesquisador dedicado, Vital Brazil escreveu, entre outras, a obra A Defesa Contra o Ophidismo. A publicação da obra original tornou-se um marco na história da produção científica brasileira, pois estabeleceu os parâmetros para a identificação e o tratamento de acidentes com animais peçonhentos através dos soros.

O ofidismo (estudo do veneno das cobras e serpentes) era um dos maiores desafios da saúde pública no início do século 20 e as descobertas de Vital Brazil, detalhadas no livro, ainda ajudam a salvar vidas. O cientista produzia no Instituto Butantan soros específicos para os venenos das serpentes brasileiras, pois ele sabia que o soro, descoberto em 1894, não poderia ser utilizado para qualquer tipo de serpente.

Em 2011, o Instituto Butantan promoveu o lançamento o livro A Defesa Contra o Ophidismo – 100 Anos Depois, edição comemorativa que traz um fac-símile da obra original, e uma edição comentada, com uma análise de 12 pesquisadores do Instituto Butantan, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, do Instituto Adolfo Lutz, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Sociedade Brasileira de Toxinologia.

O Instituto Butantan está instalado em um belíssimo parque com cerca de 80 hectares, mais de 62% deles composto de área verde. Recebe mais de 300 mil pessoas por ano, atraídas pela imagem centenária de qualidade e por seus museus: o Histórico, o Biológico e o de Microbiologia. Em 1981 foi criado o Museu Histórico, instalado na cocheira adaptada para abrigar o laboratório onde Vital Brazil desenvolveu e entregou às autoridades sanitárias as primeiras ampolas de soros antipestosos. Hoje, é possível relembrar, através de objetos e fotos do início do século 20, um pouco da história da instituição e da saúde pública do país.

O Butantan abriga ainda o museu Biológico e o de Microbiologia. No primeiro, o público tem acesso a um rico acervo vivo, com exemplares de serpentes, aranhas e escorpiões; no segundo, pode-se conhecer a vida de seres microscópicos, como moléculas de DNA e vírus. Desde 1966, o Museu Biológico funciona na antiga cocheira do Instituto Butantan e conta com uma exposição de animais vivos dispostos em terrários, que recriam o seu ambiente natural. Podem ser vistos entre eles algumas espécies peçonhentas como aranhas e escorpiões, além de serpentes, lagartos e anfíbios. O Museu Biológico também desenvolve atividades em seu anexo, o Núcleo de Educação Terra Firme, situado dentro do Horto Oswaldo Cruz, uma área verde com trilhas e espaço para ações educativas. As atividades do museu são pautadas na divulgação e na pesquisa científica em história natural e evolução, principalmente de serpentes.

Já o Museu de Microbiologia, concebido pelo professor Isaías Raw e construído com auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Fundação Vitae, foi inaugurado em 2002 e faz parte do complexo científico e cultural do Instituto Butantan. Sua concepção original, sua inovadora proposta educacional e a temática abordada o tornam um museu científico único e diferenciado. Por suas ações educativas recebeu Menção Honrosa no Prêmio Darcy Ribeiro de Educação, sendo filiado à Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciências (ABCMC) desde 2003.

Outros espaços para a visitação são o serpentário – um fosso a céu aberto onde as serpentes circulam livremente – e o Museu de Rua, constituído por painéis ao ar livre, em que é possível conhecer a história do Butantan. Os museus funcionam de terça-feira a domingo, das 9h às 16h30. Crianças até sete anos e idosos a partir de 60 anos não pagam. A bilheteria funciona naqueles dias das 8h45 às 16h15. A entrada para os três museus é única e custa R$ 6, estudantes com identificação pagam R$ 2,50. O endereço é Avenida Vital Brasil, 1.500, Butantã, Zona Oeste da capital paulista ao lado da Universidade de São Paulo (USP).