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Consumo desenfreado

Desperdício leva a perder 30% da produção mundial de alimentos / Foto: Rubens Chaves/Folhapress
Desperdício leva a perder 30% da produção mundial de alimentos / Foto: Rubens Chaves/Folhapress

Por: CARLA CAMARGO

No Brasil, cerca de 40% da água tratada é desperdiçada, em geral devido a deficiências na infraestrutura das redes de distribuição. Com isso, grande parte do precioso líquido se esvai antes mesmo de chegar às residências e empresas, onde também ocorrem perdas – os maiores vilões, nesse caso, são equipamentos como torneiras e vasos sanitários desregulados. Em relação à energia elétrica, o quadro é semelhante. De acordo com dados da Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Conservação de Energia (Abesco), cerca de 10% da eletricidade produzida no país é perdida, seja por mau uso, com lâmpadas acesas sem necessidade – no que se refere às residências – ou por falta de um planejamento de iluminação, no caso das empresas. “Um aparelho de ar-condicionado instalado perto de uma janela, por exemplo, precisará funcionar no modo máximo, gastando mais energia, porque mesmo que o ambiente esteja vedado uma parte do ar quente da rua acaba entrando”, diz José Starosta, presidente da Abesco. “Um projeto de iluminação, feito por profissional qualificado, resolveria a questão”, garante.

Em relação aos alimentos, o desaproveitamento é ainda maior. Um relatório recente da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) aponta que, anualmente, são desperdiçadas em torno de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos no mundo, ou seja, cerca de 30% da produção mundial, com fortes impactos para o meio ambiente. De acordo com o estudo, para produzir a comida que acaba no lixo, todos os anos, são emitidos cerca de 3,3 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa. A conta vai mais além: a quantidade de água consumida para plantar o que o homem descarta é equivalente ao fluxo do rio Volga, na Rússia, que, com 3.688 quilômetros, é o mais longo da Europa. As perdas econômicas alcançam cerca de US$ 750 bilhões por ano, segundo a entidade. Os impactos humanitários também são alarmantes. Enquanto cerca de 870 milhões de pessoas passam fome ao redor do planeta, outras enchem as latas de lixo com a comida que sobrou ou estragou, por falta de cuidados adequados no transporte, na disposição nas prateleiras dos supermercados e no armazenamento nas residências.

Grande parte desse desperdício acontece entre o campo e os centros consumidores – calcula-se que no Brasil pelo menos 10% da safra total de grãos fica pelo caminho devido à má conservação das vias e ao uso de veículos desabilitados para esse tipo de transporte (dados baseados nos anos de 1996 e 2002). Isso sem falar de carrocerias inadequadas e com pouca vedação. Nas redes de varejo, embalagens que não protegem corretamente frutas, legumes e hortaliças também têm sua parcela de culpa. “Isso só ficará melhor com uma mudança de mentalidade tanto da população quanto dos produtores e lojistas”, diz Helio Mattar, diretor-presidente do Instituto Akatu, organização voltada a projetos de conscientização do consumo.

Esses temas foram discutidos em profundidade durante a Rio+20, Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável realizada em 2012, no Rio de Janeiro, e ajudaram a definir esforços conjuntos a favor do consumo consciente. Um estudo divulgado durante o evento pela WWF Brasil, organização não governamental voltada à preservação do meio ambiente, revelou que o estilo de vida nas grandes cidades tem contribuído fortemente para a degradação da natureza, em escala mundial.

Índice muito alto

De acordo com o levantamento, se os 7 bilhões de habitantes da Terra vivessem como a média dos paulistanos, que come carne praticamente todos os dias, utiliza carro cotidianamente e frequenta com avidez restaurantes e fast foods, seriam necessários 2,5 planetas para sustentar o nível de consumo no mundo. “Em outras palavras, trata-se de um padrão insustentável”, diz Fabrício de Campos, sócio-diretor da consultoria especializada em sustentabilidade ecosSISTEMAS, de São Paulo. Esse cálculo, chamado de pegada ecológica, foi criado pela organização não governamental voltada ao meio ambiente Global Footprint Network (GFN), fundada em 2003. A ideia chegou ao Brasil recentemente por meio da WWF e da ecosSISTEMAS, que começaram a contabilizar o índice da pegada ecológica no estado de São Paulo e em algumas cidades brasileiras, como a capital paulista e Campo Grande, no Mato Grosso do Sul.

O índice mostra o impacto sobre os recursos naturais, como a água e as florestas, provocado pelo padrão de consumo de uma população. A partir dessa constatação, é realizado um cálculo para medir (em hectare global) o tamanho da área necessária para garantir o estilo de vida de um habitante local. São levados em conta dados como a quantidade de carne consumida – já que as pastagens, em geral em grandes dimensões, ocupam florestas e outras áreas verdes –, a utilização de combustível durante o transporte diário e a água que é necessária para produzir os alimentos comprados pelos habitantes. Também entram na conta a quantidade de roupa adquirida pela população, o quanto se gasta de energia elétrica e se o lixo nas residências é reciclado. “Comprar algo para usar uma única vez, seja sapatos, roupas ou outros artigos, significa empregar mal os próprios recursos e os do meio ambiente”, observa Campos.

O estudo sobre a cidade de São Paulo, realizado em 2012, concluiu que a pegada ecológica de cada habitante da metrópole é de 4,38 hectares por pessoa. “Essa é a área necessária para produzir tudo o que habitualmente um paulistano consome. Trata-se de um índice muito alto”, constata Campos. No estado de São Paulo, esse número é de 3,52 hectares por pessoa. De acordo com a WWF Brasil, o ideal é que o valor não passe de 1,8 hectare por habitante – a média mundial é de 2,7 hectares. No Brasil, a pegada ecológica é em média de 2,9 hectares. “Em cidades menores, como as do interior de São Paulo, a agricultura, a pesca e pecuária locais suprem boa parte das necessidades. Além disso, há menos consumo de combustível. Mas ainda precisamos melhorar em vários quesitos”, sugere Campos.

Em linhas gerais, o estudo também revelou os hábitos de consumo de paulistas e paulistanos e como eles influenciam na preservação do meio ambiente. Mais da metade da pegada ecológica na cidade de São Paulo é decorrente do elevado consumo de carne. “Estamos comendo demais esse tipo de alimento, o que pode trazer inclusive riscos para a saúde”, salienta Campos, com a informação que no caso da capital paulista a carne é responsável por cerca de 0,95 hectare da pegada ecológica local. A aquisição de artigos como roupas, móveis, cigarros e itens de decoração também colabora para elevar o rastro de consumo deixado pelos habitantes da cidade e do estado, assim como a quantidade de combustível gasta em deslocamentos com transporte público ou carro particular.

Momento de reflexão

Muitas vezes, os recursos naturais necessários para manter esse padrão de consumo, como pastagens e campos de onde se extrai a madeira e o algodão, vêm de outras regiões do país, como o Norte e o Sul. “O consumo nas grandes cidades é tão grande, passando a exigir a plantação e a criação de gado em áreas enormes, em geral distantes dos centros consumidores. O meio ambiente não consegue se renovar a tempo de arcar com ciclos cada vez maiores de produção”, explica Eleanor J. Sterling, diretora do Museu de História Natural, de Nova York, nos Estados Unidos, e especialista em conservação do meio ambiente. Esse quadro, no entanto, não é exclusivo do Brasil. “No mundo, a preservação da natureza está em risco em boa parte graças ao estilo de vida que as pessoas têm nas grandes cidades”, diz Eleanor. No planeta, existem hoje 1,3 bilhão de cabeças de gado que ocupam em média 24% de todo território, segundo a FAO. De acordo com Vandana Shiva, especialista indiana em consumo e meio ambiente, autora de Guerras por Água (Editora Radical Livros) e Stolen Harvest: The Hijacking of the Global Food Supply (South End Press), sem tradução no Brasil, na América do Norte metade de toda a água canalizada é usada para produzir grãos. Cerca de 70% da colheita é destinada à ração dos rebanhos.

“É o momento de refletirmos sobre esse estilo de vida, sob risco de declínio de nossa biocapacidade. Será que é preciso comprar tanto e ingerir tanta carne vermelha, por exemplo?”, indaga Fabrício de Campos, da ecosSISTEMAS. De acordo com ele, um dos maiores objetivos da pegada ecológica é despertar a população local, governantes, escolas e empresas para a importância do consumo sustentável, além de fomentar a discussão de políticas públicas em favor do meio ambiente e de um estilo de vida mais saudável.

O estudo dos impactos da vida moderna sobre os recursos naturais foi realizado pela primeira vez no Brasil em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, em 2010. A pesquisa é o resultado de uma parceria da WWF Brasil com a prefeitura local, a consultoria ecosSISTEMAS, a Global Fooprint Network e a Universidade Anhanguera. “Campo Grande foi escolhida como cidade pioneira no estudo da pegada ecológica devido à disposição do poder público local e ao fato de ficar próxima ao Pantanal, região de grande riqueza ambiental”, diz Terezinha Martins, analista de programas de conservação da WWF Brasil naquele município.

Descobriu-se que a pegada ecológica da população de Campo Grande é de 3,14 hectares globais por pessoa – 8% maior do que a média brasileira, mas semelhante à do estado de São Paulo. A demanda por carne vermelha é igual a de São Paulo, de certa forma um dos principais responsáveis pelo rastro de consumo pouco sustentável da população local. O morador campo-grandense consome cerca de 90 quilos de carne por ano, quase o dobro da média mundial e 13% a mais do que a nacional. O desperdício de energia elétrica, com luminárias acesas sem necessidade e o mau planejamento na instalação de aparelhos de ar-condicionado, também foram apontados como fatores responsáveis pelo alto índice da pegada ecológica de Campo Grande.

Prêmio aos protetores

“O levantamento deixou clara a necessidade de encontrar meios capazes de promover o consumo sustentável na cidade”, alerta Terezinha. Foi criado no município o Grupo Gestor da Pegada Ecológica, formado por instituições governamentais (como a Secretaria Municipal de Meio Ambiente), universidades e órgãos sem fins lucrativos, com o objetivo de propor políticas públicas a fim de reduzir a pegada ecológica da cidade. Na realidade, algumas medidas já começaram a vigorar. Hoje, mais de 30% da merenda das escolas públicas de Campo Grande é composta por alimentos fornecidos por pequenos proprietários rurais da região, que priorizam itens orgânicos, em sua maioria. A iniciativa foi possível graças a uma parceria da prefeitura local com o governo federal por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Parte da merenda escolar de Campo Grande tem sido composta por uma série de itens que são próprios da agricultura familiar, entre eles mandioca, banana, mamão, queijo, leite, iogurte e mel. E os alunos ainda têm a possibilidade de visitar as hortas e observar como os alimentos são plantados. “Trata-se de um programa de educação que visa aumentar a percepção sobre o meio ambiente”, destaca Terezinha. Nas escolas locais, também são realizadas palestras e oficinas sobre educação ambiental.

Há outras iniciativas em curso. A prefeitura de Campo Grande sancionou a lei que rege a gestão de resíduos da construção civil ou o entulho remanescente das obras. De acordo com a legislação, esse material não poderá mais ser disposto em aterros, mas sim transformado em outros produtos, como a brita, por exemplo, para serem utilizados como matéria-prima pelas construtoras na fabricação de pisos e outras estruturas. Também há projetos voltados à proteção dos cursos de água, como o Programa Manancial Vivo, que visa a preservação de duas bacias hidrográficas, Lajeado e Guariroba, que abastecem a população local. Uma das diretrizes do projeto é premiar, em dinheiro, produtores rurais que recuperarem áreas verdes na região dos mananciais e protegerem os rios. Os agricultores que já foram premiados – receberam em torno de R$ 32 mil cada um – conseguiram reflorestar cerca de 180 hectares da Área de Proteção Ambiental de Guariroba, que estava ameaçada, construíram 36 quilômetros de cercas para a proteção das nascentes e restauraram 9,2 quilômetros de estradas locais para evitar a erosão do solo. “São projetos que realçam a importância do debate sobre o consumo e o meio ambiente nas cidades, confirmando a ideia de que os resultados podem ser extremamente positivos”, afirma Terezinha Martins.

O Grupo Gestor da Pegada Ecológica de Campo Grande está desenvolvendo uma agenda junto ao poder público para incentivar a construção de ciclovias e a utilização de biocombustíveis no transporte público local. No que tange à educação ambiental, o objetivo é criar programas de sustentabilidade nas escolas a fim de promover discussões em sala de aula sobre temas como alimentação, qualidade de vida, consumo e transporte. Esse conjunto de ações visa mobilizar os habitantes de Campo Grande para uma reflexão sobre estilo de vida e a preservação das riquezas naturais, reduzindo a pegada ecológica. “O exemplo do município mato-grossense-do-sul mostra que é possível implementar iniciativas que dão resultado concreto na diminuição da agressão à natureza, o que é bom para todos”, diz Fabrício de Campos. Ele ressalta que ninguém quer viver num mundo poluído, degradado. “A pegada ecológica vai ajudar outras cidades a seguir esse modelo”, afirma.

 


 

Expectativas mundiais

Especialistas alertam que a tendência é de um aumento do consumo em escala global, especialmente de bens agrícolas. De acordo com dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 2050 deverão ser necessárias cerca de 3 bilhões de toneladas anuais de alimentos para suprir as necessidades da população mundial, que deverá chegar naquela data a 9,6 bilhões de pessoas. “O crescimento demográfico de modo geral tem sido menor do que nas últimas décadas e, provavelmente, irá continuar assim, já que os casais têm menos filhos, pelo menos nos países desenvolvidos e em algumas nações emergentes, como o Brasil”, diz Emily Grund, da Universidade de Londres, especialista em medicina e higiene em países tropicais. “No continente africano, no entanto, ocorrerá uma expansão maior da população, com a melhoria de condições de vida. Esse movimento será acompanhado de uma crescente urbanização”, afirma.

O cenário, entretanto, traz sinais de otimismo. Segundo economistas, caso se confirmem as previsões de um crescimento econômico mundial da ordem de 2,9% ao ano, até meados deste século, as desigualdades sociais tenderão a diminuir, principalmente nos países pobres e nos emergentes, e a população passará a ter maior acesso a bens de consumo. “A boa notícia é que não haverá mais tanta gente abaixo da linha de pobreza, ganhando menos de US$ 1,25 por dia”, diz Grund. De acordo com a especialista, por outro lado, o planeta precisará se preparar para dar conta de produzir quase um terço a mais dos alimentos em relação à oferta atual, levando a uma expansão das terras cultiváveis e à derrubada de áreas verdes, principalmente na América Latina e África. Com isso, o reflorestamento deverá constituir uma prioridade, sob risco de haver um aumento das emissões de gás carbônico, sinaliza a professora da Universidade de Londres.

Será necessário pensar com mais profundidade também no planejamento das cidades. “Cerca de 75% da população mundial estará morando fora do campo. Precisamos planejar uma urbanização mais sustentável para não destruir o meio ambiente”, diz Rachel Armstrong, especialista inglesa em arquitetura e sustentabilidade. As soluções, segundo ela, estão em investimentos em transporte público com vistas a desestimular o uso de carros, e em reciclagem de lixo e outros resíduos. Na visão dos especialistas, nesse modelo sustentável cada cidade seria responsável pela produção dos bens consumidos pela população local. “É preciso também ter uma maior consciência sobre o tipo de alimentação que queremos, preferencialmente não baseada tão fortemente na carne vermelha”, finaliza Rachel.