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Povos com histórias parecidas

Chegada ao Porto de Santos, em 1890 / Foto: Reprodução
Chegada ao Porto de Santos, em 1890 / Foto: Reprodução

Por: HERBERT CARVALHO

Brasil e Estados Unidos, as duas maiores economias das Américas, têm muitas coisas em comum: são nações jovens, democráticas e multiétnicas, com passado escravista e influências africana, indígena, europeia e de imigrações recentes de várias origens. As diferenças históricas da colonização entre um país “fundado” por anglo-saxões e outro “descoberto” por navegantes lusitanos também são importantes e se refletiram em civilizações quase opostas em estilo de vida. Mas como o mundo está em constantes crises e transformações a distância entre desenvolvidos e emergentes encurta a cada dia, os dois países também se tornaram, no século 21, mais próximos do que jamais estiveram.

Reflexo dessa nova situação é a parceria, que completa uma década, do Consulado Geral dos Estados Unidos em São Paulo com o Senac SP, à qual se uniu recentemente o Sesc SP. Seu primeiro resultado prático foi a criação, em 2004, no Centro Universitário Senac, campus Santo Amaro, do Centro de Estudos Brasil-Estados Unidos (Cebe) Donna Hrinak, assim batizado em homenagem à então embaixadora dos EUA no país (ela ocupou esse posto de 2002 a 2004).

Por meio do Cebe, alunos, docentes, funcionários e a comunidade desfrutam da oportunidade de conhecer a cultura e o povo estadunidenses. A instituição recebe professores e alunos visitantes dos Estados Unidos e promove eventos socioculturais como exposições de artes plásticas e performáticas, workshops de direitos humanos, fotografia, gastronomia, entre outros.

Ponto alto dessa mútua colaboração tem sido o Festival Herança Compartilhada que, valendo-se de textos e, sobretudo, fotos, vem permitindo um conhecimento mais abrangente de ambas as culturas, mostrando que brasileiros e norte-americanos caracterizam-se bem mais por semelhanças do que por diferenças.

A produção verbal e fotográfica das quatro edições já realizadas do Festival chega agora a um público mais amplo dos dois países por meio de um livro bilíngue editado pelas entidades parceiras com o mesmo título de Herança Compartilhada, ou Shared Heritage, na versão em inglês.

Olhar cruzado

A bem cuidada edição traz ensaios fotográficos – coordenados pelo brasileiro João Kulcsár, professor de fotografia do Senac e coordenador do Cebe – e textos acadêmicos, organizados pelo jornalista norte-americano Matthew Shirts, redator-chefe da revista “National Geographic Brasil”. Dois prefácios introduzem a obra, o primeiro escrito por Thomas A. Shannon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil entre 2009 e 2013, o segundo por Abram Szajman, presidente dos Conselhos Regionais do Sesc e do Senac de São Paulo. “Este livro explora as maneiras pelas quais podemos trabalhar juntos. Além de uma história em comum, os Estados Unidos e o Brasil também têm um futuro em comum”, afirma Shannon. “O debate de ideias é força motriz para o alargamento de possibilidades humanas”, acrescenta Szajman.

A fotografia documental produzida com “olhar cruzado” – cada fotógrafo visita o país do outro – que Herança Compartilhada nos oferece, pretende “não apenas apresentar uma realidade existente, mas transcender e discutir questões de identidade, deslocamento e diversidade presentes na paisagem cotidiana”, segundo João Kulcsár. Para tanto, em 2005, Dudley M. Brooks, do jornal “The Washington Post”, percorreu as periferias de São Paulo e Salvador, onde assistiu a shows de hip-hop e demonstrações de capoeira. Ao mesmo tempo Denise Camargo, fotógrafa e professora do Senac, visitou em Nova York os bairros do Harlem, Bronx e Brooklyn. Em Nova Orleans, explorou o Jazz Heritage Festival e as práticas religiosas de vodu. O resultado foram fotos que retratam a forte presença africana na formação das duas nações.

Em 2007, o foco recaiu sobre a influência das respectivas culturas indígenas. Foi a vez de Walter BigBee Comanche vir dos States para registrar a vida de aldeias guaranis na capital paulista, enquanto Caimi Waiassé Xavante acompanhava o cotidiano de uma tribo na Flórida.

Em 2010, o brasileiro André Cypriano viajou a Nova York para fotografar irlandeses e o estadunidense Jay Colton, morto no mesmo ano, direcionou seu olhar em São Paulo para os portugueses. Fotos de italianos foram feitas em ambas as cidades. Finalmente, em 2012, as câmeras se voltaram para as imigrações recentes: latino-americanos e asiáticos por lá; angolanos, bolivianos, peruanos e coreanos por aqui.

Análises acadêmicas

Essas 33 fotos contemporâneas são antecedidas, no livro, por 16 imagens históricas pertencentes a importantes acervos como o do Ellis Island Immigration Museum, de Nova York, e o Museu da Imigração, em São Paulo.

O equilíbrio entre as duas nacionalidades também foi criteriosamente observado na escolha dos seis textos. “Brasil & Estados Unidos: Muitos Palpites e uma ‘Prova’” é o primeiro deles, de autoria do antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, que logo no início justifica a opção pelo ampersand ou “e” comercial no título. “Eu quero revelar que entre essas duas coletividades há mais do que uma simples relação: há um elo característico, revelador de vivências histórico-sociais curiosamente invertidas e opostas”, exemplifica: “O que o Pato Donald diz, o Zé Carioca transforma no seu inverso. Como na cara & coroa de uma moeda ou na forma & fundo de uma figura na Gestalt, existe, entre esses modos de viver, uma estranha oposição complementar”.

Como se aproveitasse a menção aos personagens dos quadrinhos e desenhos animados de Walt Disney, o historiador Antonio Pedro Tota, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, comparece na obra coletiva com um artigo preciso sobre a “política da boa vizinhança”, que buscava tornar conhecidos nos Estados Unidos aspectos da vida e da cultura dos países latino-americanos. Autor de um clássico sobre as relações entre os dois países – O Imperialismo Sedutor: a Americanização do Brasil na Época da Segunda Guerra (São Paulo: Companhia das Letras, 2000) –, Tota resume no texto Nelson Rockefeller e o Brasil: Semeando o Bem-estar outro livro seu, ainda no prelo, que tem como eixo esse célebre “amigo americano”.

O jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva completa o lado brasileiro das análises acadêmicas comparando, a partir de uma perspectiva histórica, o desempenho da imprensa em ambos os países. No ensaio intitulado “O Jornalismo no Continente Americano”, ele parte de um trabalho de pós-doutorado que realizou na década de 1980 para pesquisar e entender como a forma de fazer jornais impressos dos EUA influenciou essa mesma atividade no Brasil. Sua conclusão é de que, apesar das mudanças dramáticas verificadas nos últimos 25 anos, a imprensa nativa “ainda usa como paradigma básico o modelo americano”. Cita, entre outros exemplos, a revista “Piauí”, criada em 2006 sob inspiração da “The New Yorker”.

Dos três ensaístas estadunidenses que tiveram textos incluídos, dois abordaram a temática da imigração. Barry Moreno, que trabalha na Biblioteca do Memorial Bob Hope do Ellis Island Immigration Museum, de Nova York, escreveu o artigo intitulado “Imigrantes do Velho Mundo num Novo Mundo: a Herança Compartilhada do Brasil e dos Estados Unidos”. Ele analisa os dois países como destino de imigração entre 1874 e 1957. Já o historiador Jeffrey Lesser, da Universidade Emory, explica as diferenças culturais nos processos de assimilação das populações estrangeiras, focando principalmente situações atuais.

Finalmente, o ensaio que o organizador Matthew Shirts considera o mais surpreendente do livro, o professor de história da Universidade de Chicago, Dain Borges, disserta sobre “Herança Agrária de Nações Urbanas: Brasil e os Estados Unidos”. Nele ficamos sabendo que o esporte americano do rodeio desenvolveu-se a tal ponto no Brasil que a Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos e outras similares atraíram em 2010 um público dez vezes maior do que no país de origem, no mesmo ano e para a mesma atividade. Também a música country arrasta multidões para os shows de Chitãozinho e Xororó. Sinais culturais que atestam como se reproduziu no interior do Brasil o modelo estadunidense do agronegócio mecanizado em larga escala e seu respectivo estilo de vida.