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Sobre os veios poéticos das imagens

Eu vejo a imagem como um espaço significativo construído pela interação de linguagens diferentes: gestos, posições, cores e enquadramentos sobre a superfície dérmica de um papel. Uma espécie de corpo, único, mas cheio de caminhos e lugares imprevistos, nunca totalmente percorridos. Um corpo que se contorce perto de mim a cada leitura. E invade com sua presença áreas minhas relegadas pela entorpecente mesmice do cotidiano ao silêncio mais escuro. Por isso, o prazer de chegar até os recintos do texto, depois de palmilhar com passos lentos alguns de seus caminhos, deixa em não sei que peça das minhas entranhas um sabor de sussurro impregnado ainda do gosto úmido dos gritos reprimidos. A materialidade do texto, sua contextura, o que metaforicamente posso chamar de encanto pessoal, exibe a exuberante nudez através de um jogo de linhas singulares que traçam o fascinante itinerário dos indícios.

Consequentemente, acredito que o corpo, como a imagem, não mostra o seu sentido na obviedade de uma nudez facilmente reconhecível, nem tampouco nos trajes com que cobrem sua insinuante geografia. A semântica do corpo se define e divulga em linguagens feitas de indícios, ilustradas magnificamente nesse aceno do famoso quadro de Munch em que o artista “pinta” um grito, um grito incapaz de ser proferido com tanta força pelas palavras. Porque, na esteira das ideias de Fragmentos de um discurso amoroso, tenho para mim que a linguagem é uma pele, uma pele que me abre a possibilidade de roçar com ela a epiderme dos meus semelhantes: é “como se eu tivesse palavras à guisa de dedos ou dedos na ponta das minhas palavras.” Para chegar, pois, até os veios de poesia que subjazem aos textos visuais é necessário abrir suas crostas utilizando esse tipo de instrumento.

Não me entrego, portanto, ao corpo geral da obra. O que me atrai está em suas particularidades, nas áreas onde o contato sempre seja uma contingência de carícia. As totalidades me assustam, deixam entre meus dedos e o corpo almejado uma distância difícil de salvar. Contenta-me imaginar que na autenticidade do gesto mais simples se condensam, em miniatura, o mundo e a vida. Escrevo, pois, com a crença de que a poesia gosta de se aconchegar na singeleza, mas se acercar dela pressupõe muitas navegações e, sobretudo, a sobrevivência a muitos naufrágios. Porque atingir a entranha de um gesto é como envolver num abraço o interminável fluxo circular dos mitos. Nesse ato mágico, torna-se factível escutar o grito do gesto, porquanto as figuras se reúnem para formar imagens que falam das inquietações que perturbam o caminhar da humanidade.

Em soma, nas figuras que se espalham pela contextura de um quadro ou de uma foto, deparo-me, amiúde, com armadilhas retóricas mediante as quais as linguagens do pintor e do fotógrafo pretendem cativar partículas dos gestos primordiais. Assim, em

Mulher Chorando, Picasso enreda em metáforas o desespero de uma mulher diante de uma tragédia consumada: nas águas do pranto os olhos viram peixes e as lágrimas se transformam em alfinetes cujas pontas dirigem sua agressividade  no rumo das pupilas. Ao receber o impacto destas linhas enrevesadas, o texto inteiro se contorce e deixa no espírito do leitor uma atmosfera de desorientação em que se respira o oxigênio da poesia.