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Aluísio Azevedo

Fábio Knoll, com imagens de cortiços da São Paulo atual, faz alusão ao universo descrito por Azevedo
Fábio Knoll, com imagens de cortiços da São Paulo atual, faz alusão ao universo descrito por Azevedo




Observador perspicaz do cotidiano do final do século 19, Aluísio Azevedo expôs sua visão contundente em romances memoráveis para a literatura brasileira



A rosa de Aluísio Azevedo é apontada por especialistas como uma das preciosidades da literatura brasileira. Sua terra natal é São Luís, no Maranhão, onde nasceu em 1857, da união do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e Emília Amália Pinto de Magalhães. Mas, antes mesmo de nascer, um acontecimento na vida de Azevedo é considerado como relevante para compreendermos sua obra.


Costume na época, sua mãe casou-se cedo, aos 17 anos. Porém, o comportamento agressivo do marido foi determinante para o fim desta primeira relação. O segundo casamento com o futuro pai do escritor não foi bem visto pela sociedade acanhada de São Luís, o que tornaria Azevedo alvo de preconceito. “De certa forma, o romance O Mulato (1881) apresenta um retrato ácido da sociedade maranhense, funcionando quase como uma vingança do escritor”, pontua o professor de Literatura do Sistema Anglo de Ensino, bacharel em História e Letras pela Universidade de Campinas, (Unicamp) Fernando Marcílio. Ainda segundo o professor, “o talento que Aluísio demonstra em suas descrições também possui fundamento biográfico, baseado em sua habilidade pictórica, pois ele chegou a exercer a função de caricaturista em alguns periódicos cariocas”. Tal habilidade pictórica foi sensibilizada na Imperial Academia de Belas Artes, hoje conhecida como Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, cidade onde, aos 19 anos, passou a viver com seu irmão mais velho, Arthur. Para se manter financeiramente, fazia caricaturas para os periódicos da época, O Figaro, O Mequetrefe, Zig Zag, entre outros.


Esse talento para o traço evidencia a forte relação estabelecida pelo autor entre sua escrita e as artes plásticas. Em vida, chegou a afirmar, segundo registro encontrado no livro Aluísio Azevedo – Ficção Completa (Editora Nova Aguilar, 2005), organizado pela professora do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Orna Messer Levin: “Fiz-me romancista, não por pendor, mas por me haver convencido da impossibilidade de seguir a minha vocação, que é a pintura. Quando escrevo, pinto mentalmente. Primeiro desenho os meus romances e depois redijo-os”.



Primeiro romance e folhetins


A temporada carioca se encerra com o falecimento do pai e consequente retorno a São Luís, em 1878. Nesse período, põe em prática sua veia literária, com a publicação do primeiro romance – considerado açucarado –, que contrastaria com seus livros futuros: Uma Lágrima de Mulher (1880). Ganha a vida publicando textos em forma de folhetins nos jornais, que reservavam espaço garantido para esse tipo de produção. No livro Folhetim, uma História, de Marlyse Meyer (Cia. das Letras, 1997), uma citação demonstra a percepção de Azevedo sobre a oscilação de sua produção literária: “No Brasil [...] os leitores estão em 1820, em pleno romantismo francês, querem o enredo, a ação, o movimento; os críticos, porém, acompanham a evolução do romance moderno e exigem que o romancista siga as pegadas de Émile Zola e Daudet. A qual dos dois grupos se deve atender? Ao de leitores ou ao de críticos? Estes decretam, mas aqueles sustentam. Os romances não se escrevem para a crítica, escrevem-se para o público, para o grosso público, que é o que paga”.


Na visão da professora Orna Messer Levin, o autor buscou estabelecer um diálogo social. “A exemplo do que houve na Europa, o escritor maranhense valeu-se do romance para abrir um canal de circulação de ideias sociais reformadoras e, principalmente, de protestos”, afirma. “Usou a literatura para denunciar os preconceitos e os vícios da classe dominante.”



Criador de cobaias


Pouco mais de dois anos após a estreia no romance, o escritor dá uma guinada em consonância com novas preocupações e indagações. Azevedo tinha consciência de que seu talento era mais inclinado à estética naturalista, criada pelo francês Émile Zola (1840--1902), que teve Eça de Queirós (1845-1900) como expoente em Portugal. Coincidentemente, em 1881, mesmo ano em que chega aos leitores o grande clássico de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Azevedo lança O Mulato, cujo enredo foca o preconceito racial.


De acordo com o professor Marcílio, no enredo naturalista, os indivíduos têm suas ações determinadas pela força de seus instintos – notadamente aqueles de fundo sexual – e do ambiente em que estão inseridos. “As narrativas funcionam quase como exposições de experimentos científicos: as personagens são as cobaias submetidas a certos estímulos em ambientes concebidos como se fossem laboratórios”, explica. “A partir das observações que realiza, o escritor levanta hipóteses e sugere conclusões.”


A observação de inspiração científica das questões sociais também é base para o livro seguinte, O Cortiço, de 1890. Já de volta ao Rio de Janeiro, o escritor estabelece como ponto de partida para essa obra a percepção do déficit habitacional da cidade. Munido dessa evidência, escreveu seu livro mais importante e ainda englobou outros problemas sociais, como o preconceito racial. “Ele acertou no alvo. Poucos anos depois, o Rio de Janeiro passaria por uma reforma urbana de grandes consequências. Para justificar a necessidade de realizá-la, a administração municipal se utilizou de relatórios da saúde pública e também do romance de Aluísio”, afirma Marcílio.


A pesquisadora Orna Messer acrescenta ainda que entre as questões de fundo recorrentes em sua obra estão “a herança negativa deixada pela colonização portuguesa, visível nos ingredientes da mentalidade lusitana que se infiltraram na estrutura da sociedade patriarcal”.


Em 1895, Aluísio Azevedo ingressa em definitivo na diplomacia, trabalhando na Espanha, Japão, Inglaterra e Itália. No ano de sua morte, em 1913, morava na Argentina com a mulher, Pastora Luquez, e dois filhos adotivos. E o que motivou um escritor tão talentoso e preciso a encerrar a carreira? Na opinião do professor Fernando Marcílio, as oscilações que ele mesmo identificou em sua produção, dividida entre o folhetim e o romance de observação social, acabaram por frustrá-lo. “O que o fez abandonar de vez a condição de escritor, deixando obras memoráveis para a literatura brasileira”, completa.




OLHAR LITERÁRIO


Escritor e seu principal livro, O Cortiço, são celebrados com programação especial


Três pontos de vista sobre a mesma obra caracterizam a exposição Olhares sobre O Cortiço, destaque no Sesc Interlagos até 28 de fevereiro.


Inspirada no livro O Cortiço (1890), a exposição foi idealizada pelo bibliotecário João Doescher, tendo em vista a atualidade da obra, “não só por descrever as relações, mas pelo contexto político e lutas por moradia que ocorrem na cidade de São Paulo”.


O escritor Marcelo Maluf selecionou trechos do livro O Cortiço para compor o cenário e instigar a leitura pelos visitantes. “Buscando mostrar como a obra é atual nos deparamos com o trabalho do fotógrafo Fabio Knoll para a prefeitura da cidade, que buscava retratar reflexões da Lei Moura, que regulamenta os cortiços da cidade”, explica Doescher. “A dupla estava formada, mas precisávamos dialogar com o espaço escolhido, o espaço da internet livre, cheio de interações e ações. Para isso, o cenógrafo Valdy Lopes projetou um espaço interativo para a mostra.”


Para Maluf, poder reencontrar o romance de Aluísio Azevedo foi uma experiência reveladora. “Meu critério para a seleção dos trechos do livro se pautou no mosaico de personagens criados por Aluísio, na ambientação do cortiço, assim como no meu olhar estético, já que era preciso dar um panorama do espaço e dos personagens envolvidos nele para compor com as fotografias e a cenografia da exposição”, afirma.


A exposição recebe gratuitamente visitas monitoradas de grupos de estudantes, que são convidados a interagir com os objetos de cena. Há sempre um bate-papo com a equipe de monitores, que segundo Doescher originam reflexões as mais diversas. “Não apenas sobre habitação, moradia e literatura, mas também questões de higiene, sociedade, respeito, e até mesmo sobre a composição plástica das imagens fotográficas”, resume.



NATURALISMO À BRASILEIRA


Conheça autores que foram influenciados pelo estilo do maranhense e se tornaram representantes dessa estética literária no Brasil


Considerado expressão máxima do naturalismo na Europa, o livro Germinal (1885), do francês Émile Zola, tinha como tema uma greve de mineiros franceses. Para compor o enredo, o próprio autor trabalhou em uma mina de carvão, acompanhando de perto a rotina e os problemas do local, tendo como princípio a observação do cenário real, em contrapartida à fantasia empregada pelos escritores românticos.


Além de beber na fonte do francês, Aluísio Azevedo teve como mestre o expoente do naturalismo em Portugal Eça de Queirós, autor de O Crime do Padre Amaro (1875) e O Primo Basílio (1878). No Brasil, Azevedo também deixou sua marca, servindo de base para outros romancistas.


Um caso especial é Raul Pompeia (1863-1895), autor de O Ateneu (1888). Sem se restringir à estética naturalista, Pompeia incorporou em sua obra correntes diversas que então coexistiam, como o simbolismo e o impressionismo. Tudo isso com a condução segura de um escritor de grande talento.


Outro lançamento importante de viés naturalista foi Bom-Crioulo (1895), de Adolfo Caminha (1867-1897). O livro relata uma história de amor com ingredientes românticos, como expansões sentimentais e crises de ciúmes, mas com o detalhe significativo de se dar entre dois homens.


Quanto à posteridade, nota-se a influência em autores de períodos bem diferentes, como Lima Barreto (1881-1922), autor de Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), e João Antônio (1937-1996), com Malagueta, Perus e Bacanaço (1996). Em épocas mais recentes, o registro cru da realidade da periferia das grandes cidades aparece em Capão Pecado (1996), de Férrez, e Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, obras que resgatam certos ingredientes do romance naturalista.

*Fonte: Professor de Literatura Fernando Marcílio, do Sistema Anglo de Ensino