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Isso é bom demais

Foto: Rinaldo Martinucci
Foto: Rinaldo Martinucci

 

Dominguinhos conciliava de forma intuitiva e sensível o gosto popular com a sofisticação melódica


Em 1964, José Domingos de Moraes lança, já como Dominguinhos, seu primeiro LP, chamado Fim de Festa. O título anunciava o término da comemoração, mas ela só estava começando. Foram mais de 30 álbuns, entre LPs e CDs, em uma carreira trilhada com intensa produtividade, a qual refletia sua dedicação e amor pela música.
Nascido em Garanhuns, no ano de 1941, Dominguinhos era um entre 17 irmãos. Seu pai tocava e afinava sanfonas, sendo forte influência para o pequeno instrumentista, que aos 6 anos já se apresentava em feiras livres da região.
Sem estudo formal, Dominguinhos chegou à excelência por meio da prática diária. “O que me chama atenção na música de Dominguinhos é que ela é bem sofisticada e ao mesmo tempo muito popular, o que não é tão presente hoje em dia”, afirma o pianista, arranjador e produtor musical Benjamim Taubkin, que conheceu o instrumentista aos 17 anos, em um show organizado por ele e um amigo no Colégio Rio Branco, em São Paulo, no final dos anos 1970.
Na ocasião, recorda Taubkin, o show foi um grande sucesso. “Convidamos o Som Imaginário, que na época era o grupo do Milton Nascimento. Eles toparam e vieram. O show lotou”, diz. “O grupo trouxe Dominguinhos, que ninguém conhecia por aqui. E eles cantaram juntos Lamento Sertanejo. Foi um concerto lindo.”

A descoberta
Ainda menino, na década de 1940, Dominguinhos foi descoberto por Luiz Gonzaga (1912-1989) enquanto se apresentava em frente a um hotel em Garanhuns. Impressionado, o rei do baião prometeu uma sanfona ao jovem tocador, caso viessem a se encontrar no Rio de Janeiro.
Pois tal aproximação não tardou. Em 1954, a família Moraes mudou para a cidade carioca de Nilópolis. Na região, Dominguinhos trabalhou como auxiliar de pedreiro e entregador de roupas na Tinturaria Silva. Este último emprego lhe rendeu o casamento com Janete, filha da dona do comércio. A moça engravidou quando Dominguinhos tinha 17 anos de idade. O casal teve dois filhos, Mauro e Madalena. Nessa época, tocava com o grupo Trio Nordestino, que logo se desfez, conduzindo-o para outro caminho. Passou a tocar em shows solo, nas rádios famosas da época, Nacional e Tupi.
Dominguinhos ganhou sua primeira sanfona de Luiz Gonzaga, que, além de lhe dar o instrumento que o acompanhou por toda a vida, deu-lhe o apelido que o consagrou. “Dominguinhos se apresentava como Neném do Acordeon. Foi Gonzaga quem sugeriu a mudança de nome artístico”, conta a pesquisadora e autora do livro/dvd Brasil da Sanfona, feito em parceria com o cineasta Sérgio Roizenblit, Myriam Taubkin (2003, esgotado).
Os laços se estreitaram com Luiz Gonzaga a partir de 1956, quando passou a acompanhá-lo nos shows e gravações de discos. Para Benjamim Taubkin, ¿a sofisticação musical de Dominguinhos também está relacionada com essa convivência, pois Gonzaga “foi músico de choro antes de se dedicar ao baião. Muito da sofisticação e refinamento de suas canções vem de Gonzaga. Dominguinhos é considerado seu herdeiro musical”.
Caminhos e parcerias
Não foi só Gonzaga que se encantou com a estrela sonora de Dominguinhos. No decorrer de sua carreira foi somando inúmeros parceiros para suas composições. Em 1967, o sanfoneiro excursionou com Gonzaga e, em uma das viagens, conheceu Anastácia (Lucinete Ferreira), com quem criou grandes sucessos: Lamento Sertanejo, Eu Só Quero um Xodó (famosas na voz de Gilberto Gil), Forró em Petrolina, entre tantos outros. “O encontro artístico se estendeu pela vida e eles viveram juntos, contabilizando mais de 200 composições conjuntas, certamente marcos da nossa cultura popular”, diz Myriam. Após desfazer o relacionamento com Anastácia, Dominguinhos se uniu à cantora Guadalupe Mendonça, que lhe daria uma filha, Liv Moraes.
O instrumentista levou sua sanfona para a música de Chico Buarque (Tantas Palavras, Xote da Navegação), Gal Costa (Projeto Índia, com disco e show em 1973), Elba Ramalho (disco Elba Ramalho e Dominguinhos, 2003), Nando Cordel (Gostoso Demais, De Volta pro Aconchego, Isso Aqui Tá Bom Demais), entre outros nomes da MPB.
Referência para os acordeonistas de todo o país, Dominguinhos se destacava pela qualidade melódica e rítmica das composições aparentemente simples. “Feitas por alguém munido de conhecimento profundo da tradição musical brasileira”, comenta o acordeonista Toninho Ferragutti. Para ele, após a morte do instrumentista, ocorrida em julho de 2013, o trono de ‘rei da sanfona’ fica vazio: “Acho que ninguém herda esse trono. Dominguinhos reunia sutileza e beleza únicas em suas composições”, completa.
Na opinião de Myriam, as canções de Dominguinhos fazem parte do imaginário popular, sendo acessíveis para um público amplo. “Todos, em algum momento, já ouviram uma melodia composta por Dominguinhos, mesmo que não a identificassem como tal. Sua música era tão generosa quanto a sua personalidade. Um homem humilde e talentoso que tive o prazer de conhecer”, comenta.
No filme O Milagre de Santa Luzia – Uma Viagem pelo Brasil que Toca Sanfona (2008, Sérgio Roizenblit), Dominguinhos conduziu a caravana e conversou com nomes importantes da cultura brasileira, como o poeta Patativa do Assaré (1909-2002), o sanfoneiro Mario Zan (1920-2006) e o multi-instrumentista Sivuca (1930-2006). Este último responsável por um dos depoimentos emocionantes do filme. Conversando com Dominguinhos, elogia-o sem pestanejar: “Você é mais novo do que eu. E é uma inspiração para mim, porque é fiel a suas origens e toca essa sanfona pra lascar”. Ambos caem no riso – o qual vinha fácil para o sanfoneiro de voz calma e vocação inquestionável.
Os acordes de Dominguinhos chegaram ao Grammy Latino. Ganhou o prêmio pelo disco Chegando de Mansinho (2002). Anos depois também recebeu o Prêmio Shell de Música (2010). Seu último disco foi Yamandu+Dominguinhos, lançado em 2008 e feito em parceria com o violonista gaúcho.

BOXE 1 - Tradição de fôlego

Trazida ao Brasil pelas mãos dos imigrantes italianos e alemães, ¿a sanfona se espalhou por diversos ritmos e regiões do país

Sanfona, no Nordeste, acordeon ou gaita no Sul. O instrumento tão ligado à cultura brasileira foi fabricado pela primeira vez bem longe daqui, no século 19, na Itália. Historicamente, foi trazida ao país pelas mãos dos imigrantes europeus e tomou as regiões por eles habitadas, especialmente os estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e o Nordeste. E nesta última teve como representante maior a “sanfona de 8 baixos”, muito popular no meio rural nordestino e nas festividades de São João.
E o ápice da sua popularização regional e nacional se deu nos anos de 1950, com um dos seus maiores ícones, Luiz Gonzaga. “A sanfona acabou se tornando um instrumento genuinamente brasileiro e se adaptou de tal maneira ao país que criou ritmos por onde passou, do Sul ao Nordeste”, afirma a pesquisadora Myriam Taubkin.
O instrumento também é utilizado pela nova geração da MPB, como o cantor Marcelo Jeneci, que faz uso da tradição do acordeon em sua música pop.
Veja as regiões brasileiras nas quais a sanfona se desenvolveu, criando estilos e ritmos diversos:
Nordeste: Sanfona, zabumba e triângulo. Poucos instrumentos se identificam tão bem com o forró, ritmo genuinamente nordestino que cativa todo o país.
Sul: No Rio Grande do Sul o acordeon é mais conhecido como gaita/gaita de botão. É fundamental na música tradicional gaúcha, que tem como expoentes Albino Manique e Renato Borghetti.
Centro-Oeste: Tradicional da Argentina, o Chamamé também é tocado e possui forte identificação com a música brasileira, principalmente no Mato Grosso do Sul. No Chamamé vemos unidos os acordes do acordeon e do violão.
Sudeste: A sanfona é presença marcante na música caipira do Sudeste, às vezes fazendo o solo instrumental semelhante ao realizado pela viola caipira. Como desdobramento desse estilo, o sertanejo feito nos estados de Minas Gerais e São Paulo também busca inspiração na tradição por meio do talento do sanfoneiro.

 

BOXE 2 - Saudade revisitada

Encontro de renomados instrumentistas brasileiros ¿relembra repertório do músico pernambucano

Yamandu Costa, Adelson Viana, Bebê Kramer e Toninho Ferragutti celebraram a música do sanfoneiro Dominguinhos no mês de fevereiro no Sesc Pinheiros.
A ideia da reunião partiu do violonista Yamandu Costa, ¿com o objetivo de revisitar o repertório dos discos Yamandu+¿Dominguinhos (Gravadora Biscoito Fino, 2007) e Lado B (Biscoito¿Fino, 2010), registros da parceria entre o violão de Yamandu e a sanfona de Dominguinhos. Segundo Yamandu, a proposta do Lado B era transmitir um clima de relaxamento. “Foi a maneira tranquila como gravamos, sem egotrip, do mesmo jeito do primeiro disco. Foi, como sempre aconteceu entre a gente, muito harmônico”, garante. O violonista conheceu Dominguinhos na adolescência, aos 15 anos de idade, em um show em Porto Alegre. “Uns dois anos depois me mudei para São Paulo e comecei a encontrar o Domingos nos camarins de programas de TV. Logo ele me convidou para participar de shows e foi uma amizade musical tão natural que entramos em estúdio no Rio de Janeiro. O que para mim foi um grande aprendizado. Essa parceria mudou a minha concepção musical”, relembra.
Para Toninho Ferragutti, tocar Dominguinhos é “entrar no universo da música tradicional nordestina que se desenvolveu absorvendo tudo o que encontrou pela frente, como as harmonias da bossa nova, as frases e o virtuosismo do choro, as improvisações do jazz, a intenção dançante das gafieiras, com seus boleros, valsas, standards americanos”.
Yamandu faz questão de ressaltar a qualidade do conjunto de instrumentistas que se unem a ele nessa apresentação: “São três representantes do acordeon brasileiro. Adelson Viana, que veio do Ceará e era muito amigo do Dominguinhos. A sanfona que ele usou no show foi um presente do amigo; Toninho Ferragutti, que é de São Paulo e tem uma influência do jazz; e Bebê Kramer, um gaúcho que carrega a tradição da região Sul. Todos nós somos influenciados pela maneira que ele tinha de tocar e de lidar com a música