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Ana Carolina Rovai

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti



por Ana Carolina Rovai

Tocamos a campainha e, em instantes, somos recebidos com um delicioso sorriso e diversos aromas… Ah! Essa cena... É o anúncio de que o almoço familiar promete boas mordidas, vivências e, claro, lembranças...
Desde o nascimento, criamos uma relação com a comida que se desenvolve em diferentes aspectos, tanto orgânicos como sentimentais. Quando bebês, as refeições são uns dos momentos mais importantes de interação entre mãe e filho. É uma troca de afeto na qual se dedica tempo, seja para amamentar, seja para preparar as primeiras papas de frutas e sopinhas. Há sempre a preocupação em agradar e criar uma boa relação entre a criança e o alimento. Por isso, o momento da refeição geralmente vem acompanhado de uma expectativa inusitada, uma certa ansiedade do que há por vir, ora pela fome, ora pela nova experiência que poderá ocorrer...
Vamos crescendo e nos damos conta de que todas as reuniões com pessoas queridas são acompanhadas de quitute, trocas de receitas e experiências. Cada participante se esmera em preparar um prato saboroso, fazendo de tudo para agradar e gerar uma sensação única, não apenas um momento de gula. Pois celebrar é COMER-morar. E é exatamente neste momento que me lembro daqueles sorrisos presentes no início do texto, das inúmeras gargalhadas, da reunião com primos e amigos, das traquinagens em grupo e, inevitavelmente, dos diversos sabores...
Minha família é pequena, mas heterogênea... Diferente o suficiente para, nessas reuniões, agregar numa mesma refeição lasanha, bolinhos de palmito, strogonoff e, de sobremesa, a inesquecível geleia de mocotó caseira servida naquela porcelana dos anos 1950, um delicioso pudim de leite lisinho e, para finalizar, aquele cheirinho de café inconfundível...
Porém, em meio a toda essa diversidade de cheiros e sabores, ocorreu uma transformação. Das experiências de infância, em que nossas avós preparavam refeições artesanais e elaboravam cadernos de receita (verdadeiras relíquias) disputados por toda a família, passamos para a revolução da praticidade na cozinha... Em que ocorreu a explosão da comida congelada, a desvalorização do ato de cozinhar (quase um rebaixamento), o deboche a respeito de passar tempo demais na cozinha e a valorização de preparos acompanhados do apito do micro-ondas ou do comprovante de compra.
Claro que tudo tem a ver com a voracidade, a pluralidade e a valorização do trabalho fora de casa. As mulheres conquistaram efetivamente seu espaço no mercado, geraram renda e adquiriram bens. Com essa mudança – efetuada pela geração da comida congelada e pelas mães e avós que saíram de casa para trabalhar – vem o costume da refeição fora do lar, da industrialização, da falta de personalidade da comida, da produção em sequência e padronizada: muito sal, gorduras, açúcar, conservantes, aditivos e componentes invisíveis.
Mas, com toda essa monotonia impessoal, aconteceu o que esperávamos: cansamos da mesmice, da falta de sabor, de não usarmos livros de receitas, de não termos mais uma memória alimentar ligada ao afeto. Ressurgiu, assim, o desejo pelo sabor e a vontade de passar um tempo quitutando sem pressa. Valorizamos novamente o trabalho feito com próprias mãos, voltamos a ver a culinária como virtude, profissão e a reconhecemos como arte. Ingredientes ganharam valor e alma e voltaram a ter sabor. Promoveu-se a encantadora liberdade de se misturar rabiscos antigos às novas técnicas, equipamentos e preparos. Continuamos a nos alimentar, por muitas vezes, fora de casa, mas exigimos algum viés de nossas raízes, voltamos a querer o sabor do “feito em casa”... Ah! Mas que delícia! É fantástico poder voltar a esperar pelo sabor da última mordida, aquela que não dividimos com ninguém, simplesmente porque nunca haverá outra igual, mesmo que façamos a mesma receita inúmeras vezes... aquela última mordida que significa lembrança, afeto e satisfação.

Ana Carolina Rovai, nutricionista, é coordenadora da ¿área de alimentação do Sesc Pompeia