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Tempo urbano e rural

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti


Tempo urbano e rural

As concepções de tempo e os valores a ele associados variam historicamente. Nem sempre tempo foi sinônimo de dinheiro, como muitos contemporâneos parecem acreditar. O antropólogo Claudio¿Bertolli Filho e o sociólogo Giovanni Alves ¿analisam o assunto.

O tempo redescoberto
por Claudio Bertolli Filho

“A
s coisas acontecem quando você decide não ficar parado.” Esse slogan, adotado por uma empresa multinacional de tecnologia, sintetiza muito bem a ideologia do homem atual: o movimento é sempre necessário e o tempo tem que ser necessariamente preenchido com ações comprometidas com a produção ou com o consumo de bens e mercadorias. Movimento implica ação e esta, em algum tipo de mudança.
O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) classificou as culturas ocidentais modernas como características das “sociedades quentes”, empenhadas freneticamente em alterar a história, tanto no plano individual quanto no coletivo. A partir do advento da Revolução Industrial, iniciada em meados do século 18, passou-se a entender o tempo como a metáfora de um grande rio que escoa do passado para o futuro, como uma entidade linear na qual se engaja a existência humana.
Nesse sentido, as grandes ideologias, aspirações políticas, sociais e ideológicas tornaram-se, no período considerado como modernidade, os objetivos a serem alcançados, sobretudo através do trabalho. As implicações sobre os indivíduos culminaram no estabelecimento de identidades pretensamente fixas e imutáveis porque comprometidas com um projeto maior de sociedade.
Essa nova concepção de tempo impregnou a percepção sobre existência positiva do personagem moderno, e a ascensão pessoal ou projeto de vida individual passou a ser intrinsecamente relacionada com um empreendimento coletivo de desenvolvimento industrial e tecnológico. A vida humana, como período de existência na Terra, foi temporalmente dividida da seguinte forma: período de estudos, engajamento no mundo do trabalho, casamento e constituição da família. O trabalho, por seu turno, veio a pautar a temporalidade do cotidiano e a vida passou a ser dividida em dias de trabalho, os dias de trabalho entre as horas de labor e as horas de descanso; as semanas divididas entre os dias de produtividade e os finais de semana, dedicados ao lazer e à família e de modo geral, a vida do homem dividiu-se entre os anos produtivos de sua existência dedicados ao trabalho – e a ascensão do próprio sistema capitalista – e, em esfera menor, ao tempo da aposentadoria, época de realização dos sonhos de toda uma vida: desfrutar do tempo livre. Ainda dentro desse projeto moderno cabe salientar que o sensível, o frívolo e o cotidiano foram tratados como banalidades sobre as quais não se deveria pensar, falar ou refletir com maior intensidade, justamente para que o tempo de produção não fosse assim “perdido”.
Indicada como tendo início incerto, mas certamente nas últimas décadas do século passado, a pós-modernidade tem promovido vários rearranjos culturais, inclusive no ¿referente à organização mais ampla da temporalidade na vida individual.
O desenvolvimento tecnocientífico, sobretudo aquele relacionado com as tecnologias da informação, veio a subverter a lógica temporal moderna ao fundir tempo e espaço através da velocidade das informações. O real, aquilo que é, e o virtual, o que pode vir a ser, passaram a ser parte de um mesmo desdobramento temporal. O passado e o futuro constituindo-se de um mesmo presente. Assim, as horas de trabalho excedem-se em função da mobilidade, a comunicação rompe as fronteiras do espaço e do tempo. Essa velocidade da informação potencializa as conexões neurais, culminando naquilo que alguns estudiosos denominam de iluminação neurofisiológica ou ainda presenteísmo, e que quer dizer que todos estão “ligados” em uma sociedade altamente excitada.
E tal excitação é cultuada em uma série de publicações voltadas para o público engajado na linha produtiva, veiculando textos destinados a instruir o leitor no sentido de potencializar o tempo, ou seja, afinar-se com a cultura da velocidade cada vez mais vertiginosa de uma “sociedade quente”. Surgiram até mesmo especialistas que prometem orientar seus clientes como melhor e mais produtivamente utilizar o tempo diário e, na rede mundial de computadores, uma rápida pesquisa permite a localização de um grande número de sites dedicados aos mesmos fins.
O mote principal parece invariável: o ritmo de vida e o ritmo de trabalho devem ser acelerados ao máximo para que seja possível alcançar a realização doméstica e o sucesso profissional no menor espaço de tempo possível. Em suma, como ser feliz e bilionário antes dos 30 anos de idade e ainda para, num futuro nunca datado, desfrutar de toda a liberdade e tempo livre possível. Assim, o velho jargão “tempo é dinheiro” tem permitido também a adoção do lema “tempo é felicidade”.
Sob esses emblemas, a fetichização do tempo na sociedade pós-industrial fez com que o próprio tempo deixasse de ser avaliado como uma grandeza física inexorável para se tornar um módulo que de certa forma pode ser ludibriado. A luta contra a principal marca temporal individual, isto é, o envelhecimento, tem favorecido a rápida expansão de um mercado próprio. Cirurgias estéticas, cosméticos, vestuário e alimentação são alguns dos infindáveis recursos empregados e cujos resultados são esperados com alguém dizendo: “Nossa! Para você o tempo não passa!”. Além disso, novas e custosas estratégias da biotecnologia que prometem evitar a morte têm recebido destaque entre os mais ricos, como a engenharia genética, que, com a utilização das células-tronco, poderá permitir, no futuro, o “reparo” dos órgãos e tecidos humanos afetados pelo passar do tempo e a clonagem humana, também prometida para o futuro, com a duplicação de um indivíduo a partir do reaproveitamento de parte de suas células. Por último, mas não esgotando o rol de opções, é possível mencionar a criogenia, isto é, a preservação em baixíssima temperatura de cadáveres até que seja possível o desenvolvimento de um conhecimento que lhes permita voltar à vida.
Apesar de intensamente imbuída dessas propostas, a cultura pós-moderna também tem favorecido a constituição de vigorosos núcleos de reflexão que, acima de tudo, apontam para a necessidade de reavaliação do cotidiano. Cada vez mais têm ganhado destaque questionamentos que a todos tocam de perto: não estarão a ciência e a tecnologia mais capacitadas para destruir a vida humana, mesmo que várias de suas ramificações tenham prometido a vida eterna? Se é importante o indivíduo sentir-se produtivo para si e para a comunidade e também sentir-se realizado no plano familiar, não existiriam outras opções menos desumanizadas e desumanizadoras para atingir o mesmo objetivo?
Tais interrogações têm frutificado em uma série de decisões individuais e grupais que ganham destaque na mídia por ainda serem exceções. O ator Robert Redford declarou que não se submeteria a tratamento de rejuvenescimento porque as rugas no rosto que acumulou nos seus 77 anos de vida não diminuíam seu talento artístico, assim como a atriz Ana Paula Arósio abandonou a profissão que a projetou nacionalmente para viver uma outra temporalidade, dedicando-se à vida doméstica e à administração de um sítio localizado numa cidade interiorana. Assim como os famosos, uma legião de profissionais tem deixado seus postos de trabalho, nos quais estavam sendo bem-sucedidos, para buscar outras alternativas de viver e negociar com o tempo da vida.
Nesse sentido é possível dizer que o tempo está sendo redescoberto e reavaliado nos dias atuais. As formas culturais desse processo, sinônimo da temporalidade vivenciada pelos indivíduos e pelos agrupamentos humanos, constituem-se em um dos grandes desafios vividos por todos nós. E você, o que está fazendo com o seu tempo?

Claudio Bertolli Filho é professor de Antropologia da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Bauru

“O mote principal parece invariável: o ritmo de vida e o ritmo de trabalho devem ser acelerados ao máximo para que seja possível alcançar a realização doméstica e o sucesso profissional no menor espaço de tempo possível”

 

Tempo do capital
por Giovanni Alves

A divisão entre campo e cidade surgiu com a modernidade histórica do capital. O capitalismo tornou cada país dependente das cidades. Como observou Karl Marx no Manifesto Comunista de 1848, “a burguesia subjugou o país às leis da cidade. Criou cidades enormes; aumentou grandemente a população urbana se comparada à rural e, assim, resgatou uma considerável parte da população da imbecilidade da vida rural”. Desse modo, a burguesia criou não apenas a cidade, mas também o tempo urbano que foi se impondo, aos poucos, sobre o metabolismo social. O tempo urbano é o tempo do capital.
O tempo rural, resquício de um tempo histórico passado distante, encontra-se hoje, mais do que nunca, subsumido ao tempo urbano. O tempo rural sobrevive, por exemplo, no tempo natural, tempo biológico e tempo concreto da vida humana que, às vezes, se impõe diruptivamente no ritmo urbano. Por exemplo, um nascer ou pôr do sol ou ainda uma revoada de pássaros num fim de tarde na cidade, são meros eventos cotidianos esvaziados de percepção do tempo em si e para si. Eles são meros eventos da paisagem urbana. Nada nos dizem sobre o tempo de vida que, na cidade, possui como referente supremo o relógio, símbolo dos tempos modernos (Charles Chaplin colocou na abertura de seu filme clássico, Modern Times, de 1936, a imagem do relógio). Apesar disso, o tempo rural como tempo natural sobrevive nos interstícios da vida cotidiana. Ele resiste. A imposição da temporalidade abstrata do capital não é perene. Muitas vezes, nos deparamos contemplando o crepúsculo ou percebendo a mudança de floração nos parques urbanos. As crianças estão imersas no tempo natural, sendo conduzidas pela disposição anímica. Elas desprezam a ditadura abstrata do relógio. Na verdade, a infância é o reino do tempo concreto. O tempo natural resiste nos detalhes do dia a dia.
Entretanto, nos dias de trabalho, o tempo urbano prevalece, organizando a rotina cotidiana. Faça chuva ou faça sol – como diz o ditado –, temos um horário – prazo e metas – a cumprir. Dane-se a natureza. Não importa nossa disposição anímica, temos que ganhar a vida, mesmo perdendo-a. É nos dias de ócio de fins de semana ou das férias, que, de modo ocasional, aparecem, com vigor, os resquícios do tempo rural, tempo natural que resgata no seu fluxo desinteressado dimensões humanas de um tempo perdido – tempo perdido que não é apenas tempo perdido das reminiscências pessoais (como diria o escritor Marcel Proust, autor de Em Busca do Tempo Perdido); mas, sim, tempo perdido do ócio, direito à “preguiça”, que não se confunde com o não fazer nada, mas, sim, tempo em que a vida humana é regida pelas disposições anímicas e pelo tempo para si da individualidade humana complexa.
O tempo é a matéria da vida. Marx diria: o tempo é o campo do desenvolvimento humano. Mas o capital, como modo estranhado de controle do metabolismo social, imprimiu sua marca no tempo, fazendo-o a sua imagem e semelhança. O tempo humano foi esvaziado de seu estofo natural, sendo preenchido pela forma social da valorização do valor. Na vida urbana, tempo de vida é tempo de trabalho – trabalho para outrem e não trabalho para si. Tempo de vida é labor. Portanto, o tempo do capital é o tempo alienado. Como disse Benjamin Franklin, Time is Money. A cidade é o locus da valorização do capital – ontem indústrias e hoje comércio e serviços. Mas com o desenvolvimento do capital, a cidade invadiu o campo com agroindústrias. O estilo de vida moderno – TVs a cabo, celulares, smartphones, tablets etc. – colonizou o campo. Talvez possamos dizer que não existe mais campo, mas apenas cidade. O padrão sociometabólico urbano-industrial disseminou-se pelo mundo social. O espaço rural tornou-se colonizado pela lógica da urbanidade moderna.
O tempo urbano, tempo da velocidade e agilidade na circulação de mercadorias e informações, incorporou o tempo rural. A supremacia do tempo urbano, tempo do capital, caracteriza-se pelo completo esvaziamento do homem de si e dos outros. Na cidade temos a universalidade da alienação do indivíduo para consigo mesmo e para com os outros, mas igualmente a universalidade e a generalidade das suas relações e capacidades que se contrapõe a ele como potências e relações sociais que são independentes dele. O tempo do capital é o tempo estranhado de indivíduos universalmente desenvolvidos, mas alienados do controle de relações que lhe são próprias e comuns, indivíduos singulares imersos na rotina da instrumentalidade sistêmica do trabalho, dos estudos e dos negócios. O tempo do capital é o tempo abstrato, tempo “plano” – o que nos leva a compreender a ideia de Lukács (no livro História e Consciência de Classe), que nos disse que o trabalho estranhado “reduz espaço e tempo a um denominador comum e degrada o tempo à dimensão do espaço”.  Na verdade, ao tornar-se plano, o tempo torna-se tudo. Diria Marx nos Grundrisse: “O tempo é tudo, o homem já não é nada; é, quando muito, a carcaça do tempo”.
O progresso da civilização burguesa submeteu, dominou e modelou as forças da natureza. O tempo do capital é expressão do desenvolvimento da grande indústria. Por exemplo, com a eletricidade, a noite tornou-se dia; com os aviões, o tempo concreto de deslocamento reduziu-se a espaço dominado pelo tempo abstrato. A invenção dos novos meios de transporte e comunicação no século 19 e no século 20 – o telégrafo, os trens, os automóveis, os aviões, a internet – promoveram o que David Harvey denominou “compressão espaço-temporal”. É o que salientamos acima: o tempo reduziu-se a espaço e o espaço tornou-se colonizado pela lógica instrumental da velocidade, expressão do giro voraz do valor em processo de autovalorização. Tempo abstrato como espaço plano capaz de propiciar mais velocidade. Portanto, o tempo urbano como tempo do capital é o tempo da velocidade, como diria Paul Virilio, o filósofo das técnicas modernas, bem como seus efeitos de aceleração sobre nossos comportamentos e nossa percepção do mundo. Diz Virilio que vivemos num “tempo-máquina”, onde o tempo humano é sacrificado como os escravos eram sacrificados no culto solar de antigamente. Estamos num novo Iluminismo, em que a velocidade da luz é um culto. É um poder absoluto que se esconde atrás do progresso – enfim, a velocidade é a propaganda do progresso.
Portanto, eis a morfologia social do tempo urbano, o tempo do capital que se impôs sobre o tempo rural, que pertencia às sociedades tradicionais: tempo plano, tempo veloz, tempo-máquina. Talvez possamos dizer: tempo-catástrofe.
A urbs é o locus do trabalho assalariado – ontem pela indústria, hoje pelo comércio e serviços. O Brasil tornou-se um país urbano-industrial há cerca de 50 anos, quando a população urbana tornou-se maior que a população rural. As cidades cresceram com a industrialização. Expulsa do campo, a força de trabalho rural invadiu as cidades. Ao mesmo tempo, as cidades invadiram o campo com o desenvolvimento do capitalismo agroindustrial. A expansão capitalista significou alterar os padrões de sociabilidade de acordo com a modernidade hipertardia. O tempo urbano se impôs e o tempo rural dissolveu-se, sobrevivendo apenas nos rincões das fronteiras de modernização do Brasil profundo.
As cidades brasileiras são hoje metrópoles de serviços, pois a indústria reduziu sua participação na produção de riqueza abstrata. Na verdade, o Brasil nunca foi uma sociedade industrial tout court (por exemplo, a participação da indústria no PIB em 2011 está abaixo da taxa em 1950). Apesar disso, a forma social do capital se impõe há tempos, com a lógica da modernidade industrial impregnando comércio e serviços. O Brasil é hoje a quinta economia do mundo capitalista. Os últimos dez anos de Lula e Dilma significaram um choque de capitalismo pelo qual se disseminaram formas de gestão toyotista e novas tecnologias informacionais que contribuíram para a intensificação do trabalho. Trabalho veloz. Vida veloz. A nova precariedade salarial significou, no plano sociometabólico, a vigência plena do tempo do capital, tempo urbano ou tempo-catástrofe que se expressa no caos metropolitano.

Giovanni Alves é livre-docente em sociologia, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Marília, e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica/CineTrabalho (www.telacritica.org). É autor de O Novo (e precário) Mundo do Trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000); Trabalho e Subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011), entre outros


“O tempo urbano, tempo da velocidade e ¿agilidade na circulação de mercadorias e informações, ¿incorporou o tempo rural”