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Capítulo 02: A Casa do Avô

Foto: Juliana Bertolocci/ SescSP
Foto: Juliana Bertolocci/ SescSP

Por Ricardo Lísias

Pessoas que gostam de História sempre têm muito interesse em política. Com o meu avô, era diferente. Nunca o vi fazendo qualquer comentário durante as eleições, por exemplo. Como estou cuidando do espólio, sei que ele tinha dinheiro guardado durante os confiscos de Fernando Collor. Jamais comentou qualquer coisa.

Devo confessar, porém, que algo me deixa aliviado: em duas ocasiões, meu avô abrigou jovens clandestinos fugindo da ditadura militar. Na primeira, eu ainda não tinha nascido. Aliás, meus pais sequer se conheciam. Sei apenas que era o filho de um casal da igreja dele. O rapaz ficou por duas ou três semanas em um daqueles cômodos do fundo da casa. Depois, sumiu. Já no final da ditadura, um primo distante que havia sido torturado passou um mês no mesmo cômodo. Meu avô não era um reacionário.

Na época em que as expedições começaram, lembro-me de ter empurrado a porta do quarto que eles ficaram. A cortina da janela escondia apenas uma mesinha. Meio traumatizado, meu avô doara os móveis que tinham usado. Era outro cômodo, porém, que me fascinava: nele, o velho guardava recortes de jornal, revistas, cartas, a velha máquina de escrever (como sabia que eu a adorava, ganhei uma parecida anos depois), livros, bíblias em diversos idiomas e uma das suas maiores paixões: uma coleção de mapas.

Quando coloquei o casarão para alugar, abri esse cômodo. Pouca coisa tinha sobrado, mas em um canto encontrei uma coleção de revistas de 1982. Talvez naquele espaço, e apenas quando estava completamente sozinho, meu avô pensasse em política. Fora dali, porém, sua ética de vida era baseada no Cristianismo que herdara da família. Hoje me lembro com algum peso, mas na entrada da adolescência eu vivia o incomodando com as inevitáveis contradições que as pessoas muito religiosas protagonizam. Por que o senhor não coloca algumas famílias para morar aqui, então? Que merda.

Apesar dessas provocações, fomos muito ligados até os meus dezoito anos. Depois, nos afastamos. Entrei na faculdade de História e fui embora de São Paulo sem nenhum aperto na garganta.

Bem diferente do que sinto agora.


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