Sesc SP

Matérias do mês

Postado em

Capítulo 10: A Casa do Avô

Já inventei um monte de justificativas para eu e meu avô termos nos distanciado a partir da faculdade: a principal, que eu tanto repeti para mim mesmo, é o tal conflito religioso. Bobagem, meu avô compreendia seu trabalho na Igreja Protestante como uma missão cheia de paciência. Por mais que às vezes ficasse nervoso, sempre achava que eu mudaria em algum momento.

Ora, Ricardo, a Igreja é uma organização de seres humanos. Por isso, tem e sempre terá problemas. Religião é outra coisa.
Quando cansei dessas discussões, comecei a visitá-lo um pouco menos. A desculpa sempre estava à mão: agora, moro em outra cidade para estudar, vô. Ele perguntava da faculdade com bastante interesse. Acho que desejava que eu me especializasse em cartografia ou em história do Oriente Médio. Não fiz nada disso: fiquei com a América Latina e me dediquei à documentação primária, sobretudo no que diz respeito à relação do Brasil com os países vizinhos. Nada a ver com ele.

Também não acho que o fato de eu ser gay tenha tido algum peso relevante na nossa relação. Na minha família, esse assunto jamais foi discutido. De uma hora para outra, a impressão que eu tenho é que todo mundo ficou sabendo e ninguém deu bola, ao contrário do que aconteceu com todos os meus amigos. Há anos, almoço uma vez por semana com o meu pai e ele jamais fez qualquer insinuação. Aliás, depois que minha mãe o largou para ficar com um médico do mesmo hospital onde trabalha, tudo ficou mais leve.

Na verdade, hoje é muito claro para mim, fui eu que causei o distanciamento. Aos poucos, parei de visitar o casarão do Ipiranga porque não tive coragem de assistir à decadência física dos meus avós. No último natal em que passamos juntos, os olhos do meu avô brilhavam, mas ele andava com dificuldade. Fiquei com vontade de chorar e agi como uma criança mimada quando ele me perguntou como a historiografia lida contemporaneamente com o Cristianismo. Respondi que não tratamos de invencionices. Ele fechou os olhos: outra cena que não me sai mais da cabeça. Acho que rezou.