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A geografia musical e afetiva de Mayra Andrade

Fã de MPB, Mayra se lembra de cantar “Leãozinho” na infância. <br>Foto: Divulgação
Fã de MPB, Mayra se lembra de cantar “Leãozinho” na infância.
Foto: Divulgação

Mayra Andrade nasceu em Cuba, cresceu em Cabo Verde, morou no Senegal, em Angola e na Alemanha, retornou às ilhas cabo-verdianas na adolescência e há onze anos vive na França. Mais que um traçado de idas e vindas, este percurso desenhou uma geografia afetiva que marca profundamente o trabalho da cantora: aos 29 anos, Mayra é internacionalmente reconhecida como uma das grandes revelações de sua geração (o prêmio BBC Radio3 World Music, recebido da rádio britânica BBC em 2008, é uma das provas disto).

Em Cabo Verde, Mayra fica as suas raízes familiares e sentimentais em Santiago, ilha que “tem corpinho de algodón/ saia de chita cu cordón/ um par de brinco roda pión”, como ela canta em língua crioula em “Lovely Difficult”, quarto e mais recente disco que apresenta nos dias 7 e 8 de junho (sábado e domingo) no Teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros

A região foi um dos primeiros territórios “descobertos” pelos portugueses durante as grandes navegações do século XV. Dada a sua posição estratégica na rota entre a Europa, o restante da África e o Brasil, tornou-se importante entreposto comercial, aprisionando Cabo Verde na condição de colônia até 1975. O pai de Mayra foi combatente na luta pela independência do país; dez anos mais tarde, quando soube da gravidez da esposa, estava apreensivo por sua saúde e preferiu que o nascimento da filha ocorresse em terras irmãs – por isto Cuba, que apoiava a independência, tornou-se ocasionalmente o berço da cantora.

Desse trajeto histórico-cultural Mayra cultiva línguas e sons. Por exemplo, ela fala e compõe em crioulo cabo-verdiano, português, espanhol, francês e inglês (tais idiomas, à exceção do espanhol, são explorados nas faixas de “Lovely Difficult”). Seu estilo musical abriga desde a percussão e os ritmos marcadamente africanos – Mayra é apaixonada pelo funaná e o batuque, que eram mal vistos pela elite colonial e, portanto, nunca foram adequadamente exportados – até o pop internacional, sem deixar de reverenciar a Música Popular Brasileira.

Foi sobre este intercâmbio de influências e melodias que muito diz respeito ao Brasil que Mayra conversou de Paris, por telefone, com o Portal SescSP, em meio à agenda apertada de shows e ensaios que antecederam sua vinda ao país. A seguir, você lê os melhores trechos do bate-papo.

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EOnline: Você se apresenta como artista cabo-verdiana, mesmo tendo vivido em diversos países. Como é manter as raízes em meio a tantas fronteiras socioculturais?
Mayra Andrade: Para mim é uma mais-valia ter recebido tantas influências dos países em que morei ao longo de minha vida. Antes de elas se refletirem na minha música, estão presentes na minha forma de ser. Não tenho medo e não vejo por que tanta gente receia o que vem “de fora”. Minha vivência em Cabo Verde foi e é muito importante para o que faço: os três períodos que lá vivi (até os 6 anos de idade, depois em dois momentos diferentes da adolescência) alimentaram e marcam demais a minha música.

EOnline: Quando se fala em Cabo Verde e em música é difícil não lembrar de Cesária Évora (1941-2011), com quem você dividiu o palco diversas vezes. Quais lembranças você carrega dela?
M. A.: Minha relação com Cesária é menos musical do que pode parecer. Assemelha-se a uma relação familiar, pois tenho muito carinho por essa senhora. Quando nos encontrávamos, não tinha nada de papo cabeça, papo sobre música, pelo contrário. Compartilhávamos fatos banais do cotidiano, ela conhecia meu avós e eu a visitei no hospital, quando infelizmente já estava doente... Ela me deixava recado no celular, sabe? Era este tipo de coisa.

EOnline: E como vocês se encontraram artisticamente?
M. A.: Nós nos vimos pela primeira vez quando eu tinha 12 anos e morava na Alemanha. Meu padrasto era diplomata, tive a oportunidade de visitar seu camarim após um show. Neste encontro, me apresentei a ela como cantora. Sim, eu sempre cantei e me entendia cantora desde aquela época, apesar de até então nunca ter feito uma apresentação de fato... Cesária tinha recebido alguns buquês (um deles, eu mesma havia levado até ela durante o show), me ofereceu um deles e disse que eu jamais deveria me esquecer de que o público é que decidiria se eu deveria continuar cantando ou não. Foi um momento muito forte e a primeira vez que alguém me ofereceu flores! Quando penso nela me vêm lembranças muito acarinhadas à memória. Foi um privilégio ter partilhado momentos tão íntimos com Cesária.

EOnline: É verdade que uma das primeiras canções que se lembra de ter cantado, ainda criança, é “Leãozinho”, de Caetano Veloso?
M. A.: Sim, a música brasileira chegou até mim por meio dele, minha primeira referência da MPB. Claro, depois conheci outros grandes artistas, como Chico Buarque, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Maria Bethânia, Nana Caymmi, Chico Buarque, Gilberto Gil, Elis Regina e João Gilberto. Ainda ontem estava pesquisando e redescobrindo muita MPB. Há muita identificação entre a música brasileira e a cabo-verdiana, tanto em riqueza harmônica quanto melódica.

EOnline: Mas como a música brasileira chegou a você?
M. A.: Parece que foi coisa do destino. Veja só: o meu padrinho, um primo que quando nasci tinha 14 anos – o que por si só já é curioso, porque padrinhos normalmente são tios, avós, pessoas mais velhas, mas dificilmente primos adolescentes – era o único membro da família que tocava e cantava. E vendo que eu me interessava desde pequena, me incentivou e me apresentou diversos artistas, Caetano entre eles.

EOnline: Você gravou um depoimento no DVD da Mart’nália avaliando que a ponte invisível que historicamente liga a África ao Brasil às vezes parece não ser usada. Ao assumir tantas influências da nossa música e estabelecer parcerias aqui (entre elas com Mariana Aydar e Marcia Castro, que representam ainda grande amigas) você entende a sua trajetória como um esforço de fortalecer esse elo?
M. A.: Não, isto não é uma missão para mim, até porque não tenho a pretensão grandiosa de assumir esse papel. Mas vejo o intercâmbio artístico como uma consequência natural dessa ponte: já gravei com diversos artistas brasileiros, tenho fortes afinidades com eles, então na prática essa ponte vem sendo mais usada. 

EOnline: Em novembro de 2013 você apresentou “Lovely Difficult” no festival Black 2 Black (Rio de Janeiro). Naquela época, o álbum tinha poucos meses de lançamento. Como vem sendo amadurecer este trabalho em turnê mundial?
M. A.: A recepção naquele show foi incrível. Aliás, o público brasileiro sempre arruma um jeito de me surpreender. De novembro para cá o trabalho cresceu muito, são mais de seis meses de estrada... Naquela ocasião não fiz o show inteiro, minha participação foi de uma hora, enquanto agora faremos dois shows completos, com noventa minutos de duração cada. A propósito, quantos lugares tem o teatro do Sesc Pinheiros?

EOnline: São 1.010 lugares.
M. A.: Uau, é muito grande! Já estou ansiosa para os shows.