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“Tenho muito interesse pelos outros”

Drauzio Varella é médico oncologista, pesquisador e escritor. Graduado em medicina, pela Universidade de São Paulo, ficou conhecido por usar os meios de comunicação para falar sobre questões de saúde. Na televisão, já apresentou séries sobre diversos temas, dentre os quais: o corpo humano; tabagismo; primeiros socorros; e gravidez. É idealizador do documentário Histórias do Rio Negro, que reúne histórias e lendas de quem vive no entorno desse rio amazônico, e que o SescTV exibe neste mês.

 

Como surgiu a ideia do documentário Histórias do Rio Negro?

Há muitos anos vou com frequência para aquela região do rio Negro, onde realizo um projeto de pesquisa de plantas brasileiras para obter extratos para novos medicamentos. Contamos com o apoio da Universidade Paulista, que tem um barco, com o qual viajamos e colhemos as plantas. Vou àquela região pelo menos a cada dois meses, sempre tive um fascínio muito grande por aquele lugar. Numa dessas viagens, o Luciano Cury [diretor do filme] nos acompanhou, para gravar o projeto. Contei a ele que tinha vontade de fazer um programa para televisão, descendo o rio, de barco, parando nas comunidades e entrevistando as pessoas. Ele gostou muito da ideia e avaliou que daria um documentário.

 

Como foi o processo de realização do filme, desde a fase de pesquisas, a viagem, a escolha dos personagens?

Dois produtores foram antes para lá e fizeram essa viagem, partindo de São Gabriel da Cachoeira em direção a Manaus. A partir dessa experiência, fizemos um roteiro e partimos para as gravações. Alguns personagens já haviam sido escolhidos, mas outros foram surgindo pelo caminho. Minha participação durou duas semanas, mas a equipe ainda permaneceu na região por uns dez dias, para as tomadas aéreas e colhendo outras imagens.

 

O que há de peculiar nessa região do Brasil?

Primeiro, queria mostrar que aquele lugar existe, também é Brasil. As pessoas muitas vezes pensam que a floresta amazônica é um tapete verde, mas não é algo uniforme. Você vê a biodiversidade ali. Há regiões alagadas, regiões de campinas, que até parecem o cerrado. Outro ponto que a gente esquece é que a floresta é habitada. A região do rio Negro mantém uma das áreas mais preservadas da floresta, a população ainda vive do extrativismo, do consumo de frutas locais e da plantação da mandioca, segundo as mesmas técnicas indígenas. Isso preservou a floresta. Mas, por outro lado, se você não oferece uma opção de sobrevivência, eles vão vender madeira mesmo. Eles enfrentam dificuldades: na época da cheia, é complicado encontrar peixes; na seca, os rios baixam tanto que é comum ver as mulheres percorrerem um longo trecho para buscar água. É uma dura condição de vida.

 

Qual a importância das lendas na formação cultural do povo ribeirinho?

Existe uma coisa interessante sobre esse mundo fantástico. A própria literatura tem exemplos disso. Lembro de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Marquez. Mas são todas referências europeias. O que acho mais impressionante do realismo fantástico das lendas amazônicas é que a realidade é tão surreal quanto a própria fantasia. Certa vez, um índio me contou uma história sobre a aparição de um curupira para o pai dele, na mata. Depois, ele disse que o pai havia morrido ao tentar defender seu cachorro de um ataque de uma onça. O que é mais sureal: a história do curupira ou um sujeito se atracando com uma onça?

 

O que lhe atrai nas relações humanas que motiva suas escolhas de trabalho para além de suas atribuições como médico?

Para mim é um impulso natural. Sempre me interesso muito pelos outros. E quanto mais distante da minha realidade, mais eu me interesso. A gente normalmente tem dificuldade de entender o que é muito diferente. E eu também tenho. Mas ao mesmo tempo isso me atrai. Se não for assim, acho que a vida fica muito pobre, porque nos mantém numa zona que nos é confortável. Aquelas pessoas se abriram comigo, contaram detalhes de sua vida cotidiana. Mas sabe de uma coisa curiosa? Nenhuma delas me fez uma única pergunta! Por alguma razão, elas não se interessam em saber sobre nossa realidade. Estão fechados naquele mundo, alheios, é um universo pessoal.

 

Na sua opinião, de que forma a televisão contribui para aproximar as pessoas num País com as dimensões do Brasil?

A televisão tem papel importantíssimo, o qual já vem desempenhando há bastante tempo, inclusive. Tem uma importância educativa, porque temos uma população que não lê e que tem acesso à informação pela televisão, pelas imagens. Claro que tem um lado ruim também, porque a TV massifica um pouco. Mas, por outro lado, também integra o País. Passamos a conhecer essas realidades a partir do que vemos na TV.

 

Como e por que decidiu realizar projetos na televisão sobre assuntos da área médica?

Não foi uma decisão premeditada. Em 1999, a Rede Globo comprou uma série sobre o corpo humano, da BBC, que era apresentada por um médico. Eles me procuraram para fazer a versão nacional, para o programa Fantástico. Eu tinha certa aversão, mas achei lindas as imagens e resolvi aceitar. Fiz o projeto e tivemos um bom retorno de audiência. Percebi o interesse das pessoas por assuntos médicos e, ao mesmo tempo, ficava preocupado com a falta de informações sobre temas da área. Passado um ano, achei que valia a pena fazer uma série sobre primeiros socorros, para alertar as pessoas a não cometerem erros que possam agravar um quadro, coisas como colocar pasta de dente numa queimadura, por exemplo. Na TV, o que mais me atrai é pegar uma linguagem científica, que é hermética, e torná-la popular, sem perder a precisão do pensamento científico. Esse projeto também deu certo e, a partir daí, senti que tinha uma missão de me comunicar com as pessoas.