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Vinte e dois e uma bola

Não nasci Bernardo. Adotei-o como alcunha por soar bem com eremita, desde que compartilho o fundo desta caverna com um minúsculo mamífero que me serve de conselheiro espiritual e morcego correio. O quiróptero chama-se Oto, em homenagem a ninguém, apenas porque o nome me lembrou um morcego, ou porque o morcego me lembrou um nome. É com Oto que converso horas e dias a fio, posto que não há viva alma por aqui. Se mantenho algumas ligações com o conturbado mundo do futebol, devo-o a Oto, meu minúsculo mensageiro:

- Cansado, Oto?

- Rapaz, a gente estava jogando fruitbol. Fazia um calor danado no fundo da caverna.

Meu amigo de asas referia-se àquele joguinho que os morcegos aqui da caverna adoram jogar. Passam uma frutinha de boca em boca, tentando encaixá-la em um buraco na parede.

- Deu briga, Bernardo.

- Briga? Mas era só uma brincadeira.

- Ah, como se vocês humanos também não brigassem em qualquer brincadeira. Pior, até se matam. A gente tem umas briguinhas, mas todo mundo continua amigo.

Os morceguinhos ficavam eufóricos com o fruitbol. Jogavam horas seguidas e terminavam assim, esbaforidos, excitados. Terminado o jogo, Oto adorava me contar suas façanhas. Assisto a algumas partidas e nada do que ele conta é real. São fantasias, delírios, invenções de sua imaginação fértil, típicas daquele estado que costuma suceder o jogo.

- Tenho um primo que acha o nosso jogo uma besteira, uma perda de tempo. Sempre fala que não conhece nada mais estúpido que vinte e dois marmanjos correndo atrás de uma bola, ou vinte e dois morcegos, o que, para ele, dá na mesma – disse Oto.

- Imagino então que ele tem algum outro jeito de perder tempo – falei.

- Ele lê. Mas para ele isso não é perder tempo. – completou meu amigo – Diz que já voou até Coimbra, onde tem uma biblioteca muito frequentada por morcegos.

- Perder tempo é bom – prossegui. – Quando o que fazemos não tem nenhum outro sentido que apenas viver, esse é o perder tempo que vale a pena.

- E correr atrás de uma bola é desse tipo de perder tempo? - perguntou Oto.

- É o que eu acho.

- Isso que vocês fazem, de ficar como doidos correndo atrás de uma bola para lá e para cá, gritando, chutando a canela um do outro, comemorando, xingando, brigando, serve para quê? – tornou a perguntar o morcego?

- Para nada – respondi.

- E tem alguma explicação?

- Para mim, nenhuma – respondi ao morcego.

- E não tem nenhuma outra importância, pequena que seja? – Oto já estava um tanto preocupado.

- Tanto quanto esta nossa conversa – arrematei.

- Mas para quê viver assim, sem utilidade, sem sentido, sem serventia? – perguntou Oto, acho que pensando lá no seu primo.

- É porque, quando se tira toda a utilidade de alguma coisa que a gente faz, e mesmo assim o gosto pela coisa continua, é porque vale a pena. Fazer por fazer é o mesmo que viver por viver – respondi.

- Mas, então isso é bom, faz bem, tem um sentido – concluiu o quiróptero.

- Se você quiser entender assim, que seja.

- Então perder tempo faz bem, Bernardo?

- O tempo que a gente tem é para ser perdido. Correr atrás de uma bola é uma boa maneira de fazer isso. A vida costuma ser melhor nesses momentos que naqueles em que fazemos coisas chamadas úteis. Às vezes basta viver, e isso pode ser feito correndo atrás de uma bola ou conversando com você.

- Você está me dizendo então que trabalhar é ruim? – perguntou o morcego com certo tom moralista na voz.

- Não dá para não trabalhar, senão a vida se acaba, não se sustenta. O trabalho equilibra esse perder tempo, que é o outro nome do jogo. Não se pode jogar indefinidamente, sem limites. Mas se a gente puder trabalhar e jogar ao mesmo tempo, melhor, não é? – acrescentei.

- Como se faz isso?

- Gostando muito do trabalho que a gente faz – respondi, tentando encerrar o assunto.

Era tarde. Oto distraiu-se e não saiu para caçar. Preferiu ficar comigo naquela conversa. A noite ia alta. Os meteoritos se travestiam de estrelas, fragmentando-se contra a atmosfera, riscando de luzes a noite escura. As estrelas piscavam chamando a atenção. Tudo funcionava sem muito sentido e em harmonia. Não era preciso pensar para entender tudo aquilo. No céu, vinte e duas estrelinhas corriam atrás de um cometa.

 

João Batista Freire é graduado em Educação Física, com doutorado em Psicologia Educacional pela USP. Ministra cursos e escreve livros, artigos e crônicas sobre esporte e educação.