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A grande ponte

Travessia da Baía de Guanabara: tráfego diário de 150 mil veículos / Foto: Divulgação
Travessia da Baía de Guanabara: tráfego diário de 150 mil veículos / Foto: Divulgação

Por: FRANCISCO LUIZ NOEL

Poucos brasileiros têm ideia da real localização da Ponte Presidente Costa e Silva, mas, ao ouvirem seu “nome de guerra”, raros serão aqueles que não saberão onde a Ponte Rio-Niterói fica. Com 13,3 quilômetros de extensão, a maior obra em concreto protendido do hemisfério sul é um dos exemplos de denominação oficial que não vingou, ofuscada pelo batismo popular – exatamente como se deu com o Elevado Presidente Costa e Silva, em São Paulo, com 3,4 quilômetros de comprimento, que os moradores da cidade chamam, simplesmente, de “Minhocão”. Aberta em 1974, a travessia rodoviária da Baía de Guanabara era sonho antigo dos cariocas e, decorridos 40 anos, ela segue na plenitude de suas funções, trafegada diariamente por mais de 150 mil veículos transportando 400 mil pessoas.

Principal ligação entre as cidades que inspiraram o nome consagrado, a ponte integra o Grande Rio e conecta a capital ao interior. Além de também ligar a cidade aos municípios metropolitanos de São Gonçalo e Itaboraí, ela é rota para a Região dos Lagos, parte da Região Serrana, o norte e o noroeste fluminense. Do alto de suas duas pistas e dos dez quilômetros de viadutos e rampas de acesso, essa minirrodovia suspensa tem papel-chave no transporte do estado. E basta um simples engarrafamento numa das quatro faixas de uma de suas pistas para que o congestionamento logo se irradie ao trânsito carioca ou niteroiense.

Os picos de movimento na ponte ocorrem das 7h às 9h, no sentido Rio, e, no sentido oposto, das 18h às 20h – período em que grande contingente de moradores de Niterói e demais municípios do leste da baía retorna para casa, após o trabalho na capital. Nessas horas, manter livres as faixas de rolamento é o grande desafio da concessionária CCR Ponte. “Se perdermos uma faixa, geramos retenção do lado do Rio ou de Niterói”, afirma o gestor de atendimento da rodovia, Rodolfo Borrel, lembrando que a ponte não dispõe de faixa de recuo, como as estradas terrestres. “Aqui, não temos como jogar o problema para o acostamento”.

Na tarefa de manter a Rio-Niterói desimpedida, a concessionária socorre diariamente, em média, 120 motoristas com problemas nos veículos. “O mais comum é pneu furado”, diz Borrel. Outros casos são de avaria em motores, falta de combustível e pequenas colisões traseiras, com a média de uma por dia. O SOS Usuário, serviço de socorro prestado na ponte, opera com viaturas (entre motos e carros) adequadas as possíveis ocorrências – guinchos, utilitários de inspeção e de combate a incêndio – e trabalha reforçado nos feriados prolongados. O recorde diário de socorros ocorreu em 25 de fevereiro de 2006, sábado de Carnaval, 405 atendimentos. Acidentes graves são raros e há o registro de quatro mortes nos últimos dez anos.

Mal súbito

Os casos de gravidade incluem a queda ao mar de automóveis, os mais recentes sem vítimas fatais. Em 3 de março deste ano, a universitária Marina Pinto Borges, 22 anos, de São Gonçalo, capotou com seu carro quando ia para o Rio e despencou com o veículo de uma altura de 50 metros. Resgatada por práticos de um navio, sofreu lesão no baço e sobreviveu. (Práticos são profissionais especializados em manobrar as grandes embarcações na chegada ao porto.) Em 19 de abril, ao estacionar na faixa lateral rumo a Niterói para verificar o aquecimento do motor, a mecânica Isabel Cristina Anacleto, 39 anos, teve o carro atingido por um ônibus e foi projetada nas águas. Ela fraturou um braço e, apesar da altura da queda, também saiu viva, socorrida por tripulantes de uma lancha.

O aparato tecnológico da Rio-Niterói também inclui uma estação meteorológica, no vão central, para a mensuração da velocidade e direção dos ventos. Quando a ventania sopra perpendicular à ponte, a mais de 80 quilômetros por hora, o Centro de Controle Operacional (CCO) emparelha os guinchos nas quatro faixas de cada pista e “reboca” as filas de veículos, impedindo que superem 40 quilômetros por hora. O limite é imposto porque os ventos geram instabilidade para motocicletas e caminhões-baús em alta velocidade. Outros recursos de tecnologia são os letreiros luminosos em vários pontos da via e um sistema que calcula o tempo médio da travessia durante todo o dia.

Para o atendimento médico, a concessionária mantém de plantão uma equipe de profissionais de saúde. O serviço, que dispõe de ambulâncias e unidade de tratamento intensivo (UTI) móvel, socorre, em média, 160 pessoas por mês, computados acidentes automobilísticos e, na grande maioria das ocorrências, casos de mal súbito. Na rotina do socorro médico se destacam crises de hipertensão, infartos do miocárdio, condução de gestantes à maternidade e até surtos psiquiátricos. Pela experiência acumulada no atendimento pré-hospitalar, o pessoal do resgate já ministrou cursos a profissionais do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de vários municípios.

O histórico do socorro médico registra um parto dentro da UTI móvel da Rio-Niterói. Em 11 de agosto de 1999, num plantão de quinta-feira, acionados para um caso de “mal súbito” na praça de pedágio, o médico Maurício Vidal, o resgatista Welington Santanna Figueredo e um enfermeiro acabaram socorrendo uma gestante com contrações que era conduzida de automóvel à maternidade. A mulher foi rapidamente embarcada na UTI, mas a equipe viu-se obrigada a dar assistência ao parto logo que o veículo saiu da ponte, na Alameda São Boaventura. Era um menino, que seria batizado com o primeiro nome do médico como prova de gratidão dos pais.

Sonho de dom Pedro II

A construção da Ponte Rio-Niterói foi uma das mais vistosas realizações do Brasil Grande preconizado pelo regime militar, como parte de um pacote que incluiu a hidrelétrica de Itaipu, maior geradora de eletricidade no mundo, e a malsucedida Transamazônica, estrada de 4,5 mil quilômetros que ligaria o Nordeste à fronteira com o Peru. A ponte não somente operou a integração regional no estado do Rio de Janeiro, mas também, completou a rodovia BR-101. Com a obra, a estrada federal, de 4,6 mil quilômetros, pode passar a ser percorrida sem interrupção de ponta a ponta – do município gaúcho de São José do Norte ao potiguar Touros – via Brasília.

Por conta da integração proporcionada pela Rio-Niterói, a evolução da mobilidade na Região Metropolitana se divide em duas eras: uma antes e a outra depois da abertura da ponte. Quando ela era apenas sonho, a travessia Rio-Niterói pelos motoristas dependia de um incipiente serviço de balsas, que disputavam as águas com as barcas de passageiros. Quando não, exigia o contorno da baía, num percurso de 120 quilômetros que durava mais de duas horas. No Rio, o trajeto começava na Avenida Brasil, seguia pelas rodovias Washington Luís (BR-040), Rio-Magé (BR-116) e BR-493 até atingir a BR-101, no sentido inverso ao de partida.

Um dos símbolos da pujança da engenharia brasileira, pelo avantajado das medidas, a ponte condizia com a aspiração de progresso acalentada pelo surto de crescimento experimentado à época pelo país e que ganhou o nome de “milagre econômico”, no começo da década de 1970. Inaugurada quando o milagre perdia força, devido à primeira crise global do petróleo, em 1973, a obra era a terceira do tipo no mundo, dotada do maior vão em viga reta contínua do planeta (vão central de 300 metros de comprimento e 72 metros de altura). Pelo comprimento, largura e dimensões dos pilares e fundações submersas, a construção é uma das primeiras em escala global em volume de concreto.

A Rio-Niterói, à época de sua inauguração, só ficava atrás de dois colossos do gênero, ambas nos Estados Unidos, a Ponte do Lago Pontchartrain, com 38,4 quilômetros, no estado da Louisiana, e a da baía de Chesapeacke, com 29 quilômetros, no estado da Virgínia. Quarenta anos depois, a construção brasileira perdeu várias posições por causa de algumas pontes gigantescas construídas no exterior, principalmente na China.

Vem do tempo do Brasil colônia a ideia de ver a ligação marítima entre o Rio e a antiga Vila Real da Praia Grande (hoje, Niterói). No Segundo Reinado, dom Pedro II buscou apoio do capital inglês para construir um túnel ferroviário sob as águas da baía, mas, é até desnecessário dizer, o projeto não foi adiante. Vários governos republicanos também tentaram tirar o sonho do papel, novela que chegou ao fim em 1965, com a criação da Comissão Executiva da Ponte Rio-Niterói, formada pelo então Ministério da Viação e Obras Públicas, Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), Forças Armadas e os governos dos estados da Guanabara (que deixou de existir) e do Rio de Janeiro.

Desafio para a engenharia

O traçado que seria seguido pela ponte, erguida entre o bairro carioca do Caju e o niteroiense da Ilha da Conceição, não foi o único a ser analisado. A comissão executiva examinou também um trajeto alternativo com somente três quilômetros sobre o mar, próximo da entrada da Baía de Guanabara. A vantagem era menor, porém, do que as desvantagens, já que o percurso ligaria os centros do Rio e de Niterói, que se tornariam intransitáveis. E, dada a proximidade do Aeroporto Santos Dumont e a entrada da baía, a ponte criaria problemas ao tráfego de aviões e navios, além de exigir fundações muito mais profundas e, portanto, mais caras.

O impulso definitivo para a construção foi dado em agosto de 1968, quando o governo do presidente Arthur da Costa e Silva lançou o edital de concorrência, com base em concepção estrutural, projeto básico e estudo técnico e econômico do Ministério dos Transportes (antigo Viação e Obras Públicas) era comandado pelo gaúcho Mário David Andreazza, o grande tocador de obras do regime militar. Pela grandiosidade da construção, ela seria executada por um consórcio, já que nenhuma empreiteira nacional tinha condições, sozinha, de fazer frente ao desafio.

Os trabalhos tiveram início em janeiro de 1969, sob a responsabilidade do Consórcio Construtor Rio-Niterói (CCRN), liderado pela Construtora Ferraz Cavalcanti, e que deveria concluir os trabalhos em dezembro de 1972. Em janeiro de 1971, o governo rompeu com o consórcio, em meio a uma sucessão de problemas associados ao estaqueamento das fundações, a um acidente com várias mortes numa prova de carga e à paralisação das obras por quase seis meses. A empreitada, então, foi entregue ao outro consórcio que havia participado da primeira concorrência, o Construtor Guanabara, composto pelas empresas Construções e Comércio Camargo Corrêa, Mendes Júnior, Rabello e Sobrenco.

O trabalho, então, foi retomado a todo o vapor, ganhando canteiro central na Ilha do Fundão, de onde estruturas pré-fabricadas de concreto armado, formas de aço e equipamentos saíam em balsas. Para as fundações, pela técnica de concretagem submersa, o consórcio tinha uma central de concreto em terra e mais seis unidades flutuantes. O cimento, estocado a granel no porto do Rio, correspondeu a cinco milhões de sacos, e a areia, o volume equivalente ao da metade da praia de Copacabana. De pedra britada, foram 420 mil metros cúbicos, transportados em 4,5 mil viagens de barcaças, e de ferro, 2,1 mil quilômetros, que daria para cobrir cinco vezes a distância entre o Rio e São Paulo.

“Invenção nossa”

O gigante de concreto não demorou a ganhar forma à medida que as obras avançavam. A intervalos de 80 metros, sobre fundações cravadas em rochas a até 40 metros abaixo do fundo do mar, 107 pilares duplos sustentam a superestrutura, formada por aduelas (caixas pré-moldadas de concreto), com exceção dos três vãos do centro, de estrutura metálica. Desde a rocha, as fundações e pilares formam colunas de 130 metros nesses vãos – o central, no cume da ponte, foi projetado com 72 metros acima da água – para permitir a passagem de navios.

“A Ponte Rio-Niterói é uma invenção nossa. O projeto é brasileiro, exceto no vão central, que utilizou projeto americano e construção inglesa. O vão foi o maior desafio, porque a técnica ainda não era do nosso domínio”, conta o engenheiro civil e consultor da concessionária, Carlos Henrique Siqueira, 66 anos, 43 deles dedicados à ponte e contados desde quando fazia a supervisão da obra pela Noronha Engenharia, autora do projeto básico e executivo. “Mas o grande desafio, mesmo, foi convencer o governo. Se não fosse o ministro Mário Andreazza, a travessia sobre o mar não teria saído”. Pelo ineditismo da empreitada, era grande a descrença na capacidade da engenharia nacional, e poucas pessoas conseguiam enxergar a real utilidade da obra.

A dúvida cedeu lugar ao orgulho depois da entrega da Rio-Niterói ao tráfego em 4 de março de 1974 pelo presidente Emílio Garrastazu Médici. A cerimônia ocorreu a menos de duas semanas do fim do governo, e ela entraria para a história porque foi associada não somente ao “milagre econômico” e ao ufanismo por meio de palavras de ordem do tipo “Brasil, ame-o ou deixe-o”, mas também em razão do cerceamento da democracia, da censura e da tortura aos militantes de esquerda. No dia da festa e nos seguintes, cariocas e niteroienses iam e vinham pela ponte a passeio, maravilhados com a concretização do sonho da travessia rodoviária.

A Ponte Rio-Niterói foi projetada para o tráfego diário de 50 mil veículos – três vezes menos que o atual – e custou o equivalente a US$ 400 milhões, em preços da época. “Hoje, não se construiria uma igual por menos de US$ 5 bilhões”, calcula Siqueira. Memória viva da ponte, ele dá palestras em eventos internacionais dedicados ao transporte. A Rio-Niterói, afiança, é referência em manutenção de empreendimentos desse porte. “É o maior patrimônio rodoviário do Brasil, a obra que representa lá fora a engenharia brasileira, e é sucesso em todos os congressos de que participamos”, orgulha-se.

Centenas de mortes?

Uma das peculiaridades dos serviços de manutenção da ponte deriva da estrutura composta pelas aduelas, nos quase 13 quilômetros formados pelos trechos que saem das duas cidades até o encontro dos vãos centrais. Como essas caixas de concreto armado são vazadas, elas formam extensas galerias sob as pistas, proporcionando a passagem de técnicos em trabalho de inspeção e o transporte de materiais e equipamentos para as atividades de manutenção no pavimento. As estruturas de aduelas compõem uma espécie de segunda ponte, oculta no conjunto que atravessa a Baía de Guanabara.

Como outras realizações fora do comum, a Rio-Niterói tem suas lendas – entre elas, a de que centenas de operários morreram durante sua construção, incluindo casos de soterramento em meio ao enchimento das fundações com concreto. São fantasias que, mesmo negadas pelas autoridades e pelos técnicos que atuaram ali, sobrevivem no imaginário fluminense. Autor de alentada tese de doutorado sobre a história da ponte, defendida na Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2009, Siqueira relata que 40 trabalhadores morreram na gigantesca construção.

“O certo seria que isso não tivesse acontecido, que não houvesse casos de mortes, mas não é um número assustador se considerarmos que a obra durou cinco anos e empregou 10 mil operários e 200 engenheiros”, ele diz. O engenheiro civil reconhece, porém, que naquele tempo o país engatinhava em matéria de segurança do trabalho. Em fotografias e filmes feitos durante a construção, assim como de outras importantes obras da época, são comuns as cenas em que trabalhadores quase sempre sem camisa aparecem sem equipamentos de proteção individual (EPIs), trajando às vezes bermudas, calções de banho e sandálias de dedos nos pés.

Primeira concessão rodoviária do país, oficializada em junho de 1995, a Rio-Niterói será objeto de nova licitação até o início do próximo ano, ao fim do contrato com a CCR Ponte, que contabiliza investimentos de R$ 380 milhões em manutenção e modernização da travessia nos últimos 20 anos. Um dos objetivos do leilão, anunciado em janeiro pelo Planalto, é a redução da tarifa do pedágio, afirmou o Ministro dos Transportes, César Augusto Rabello Borges. Segundo o governo, o valor atual tem por base outra realidade econômica e que “a taxa interna de retorno é elevada” para a concessionária.

Como parte da licitação, o governo quer que a empresa operadora amplie a interligação da ponte com a malha viária das duas cidades. Para isso, planeja a construção de uma via subterrânea (o chamado “mergulhão”) no lado niteroiense e de um elevado no carioca, visando a conexão da ponte à Linha Vermelha, autoestrada que liga a Penha, na zona norte, à Barra da Tijuca, na oeste. À chamada para apresentação de estudos não-remunerados sobre as duas obras, feita em janeiro pelo Ministério dos Transportes, 12 empresas se habilitaram – incluída a CCR Ponte – sinal de que a disputa pela operação da Rio-Niterói promete ser acirrada.