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Artistas migrantes

"O Impossível": obra comprada pelo MoMA em 1946 / Foto: Uwe Zucchi/EFE/Folhapress

Por: CECILIA PRADA

As duas personalidades tomadas como tema – uma artista plástica e um escritor, Maria Martins e Julio Monteiro Martins – apesar da coincidência do sobrenome não têm relacionamento algum de família, ou mesmo de circunstâncias temporais: ela viveu entre 1894 e 1973, e ele, nascido em 1955, continua muito atuante até hoje. Na minha já muito longa vivência profissional, conheci e entrevistei a ambos: ela, em 1956, naquela oportunidade para o “Suplemento Literário” do “Jornal do Brasil”, no Rio de Janeiro; ele, em 1977, para a revista “Isto É”, em São Paulo. Se hoje recordo desses conhecimentos e os reúno, é para tomá-los como emblemáticos, entre muitos outros artistas e intelectuais, de um tema de relevo maior: o dos que são obrigados a se exilar de seu país de origem, como vítimas de perseguições, preconceitos, incompreensão, ou, simplesmente, por ausência de possibilidades profissionais – para obterem reconhecimento e consagração no estrangeiro.

Considerada nos Estados Unidos e na Europa como “a maior escultora brasileira” – com aquisição de sua mais famosa obra, O Impossível, pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), em 1946, e a única mulher a ter sido incluída por André Breton (1896-1966) em seu grupo surrealista, tanto em Nova York como em Paris –, Maria Martins, desde seu regresso definitivo ao país, em 1950, até sua morte, em 1973, foi desprezada, demolida pela maioria dos críticos brasileiros, e morreu amargurada, quase desconhecida, apesar de ter realizado em 1956 uma grande exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ). Nos últimos anos, porém, com a publicação de livros sobre ela nos Estados Unidos, surgiu um movimento de recuperação de sua memória e de sua extraordinária vida – a Editora Cosac Naify publicou, em 2010, uma excelente antologia crítica, Maria, com duas edições, uma normal e outra de luxo. A escritora Ana Arruda Callado lançou, em 2004, Maria Martins – Uma Biografia, e o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), prestou-lhe definitiva homenagem, em 2013, com uma grande exposição retrospectiva, Metamorfoses.

Julio Cesar Monteiro Martins, um dos mais interessantes jovens escritores do boom literário brasileiro dos anos 1974-1978 – que teve como eixo a dissidência e a atividade política antiditatorial –, foi obrigado a impor-se desde a década de 1980 um “autoexílio” que o levou primeiro a viajar por vários países, e depois a estabelecer-se definitivamente na Itália, cuja nacionalidade adquiriu e onde continua a lecionar literatura brasileira e a publicar romances, livros de contos, de poesia e de ensaios, sendo hoje reconhecido como prolífico e original “escritor migrante”. Em uma antologia de textos contra o regime de Silvio Berlusconi, Non siamo in vendita (Não Estamos à Venda), sem tradução no Brasil, publicada em 2001, apareceu ao lado de Dario Fo, Bernardo Bertolucci, Antonio Tabucchi e Gianni Vattimo, sendo o único escritor “não italiano” convidado para nela figurar.

Menina rebelde

Maria de Lourdes Faria Alves, nascida em Campanha (MG), em 1894, fez questão de chamar-se sempre apenas “Maria”, assinando assim a maioria de suas peças – foi escultora, desenhista, gravadora e escritora. Teve uma educação formal refinada e obrigatória para as adolescentes de sua classe social no Colégio Sion, de Petrópolis, de freiras francesas. Seu pai, João Luís Alves, foi senador e ministro da Justiça e pertencia à Academia Brasileira de Letras. Embora conservador, fez questão de dar às filhas a mesma formação cultural dos meninos. Maria casou-se aos 21 anos com o historiador Octávio Tarquínio de Sousa, com quem teve uma filha. Mas, em 1924, para a surpresa de todos, abandonou o marido enquanto passavam uma temporada em Roma – onde, dizem, ela teve uma breve ligação amorosa com Benito Mussolini, que teria sido mais um pretexto para separar-se do marido. A sua iniciativa causou enorme escândalo social, em uma época em que raríssimas mulheres tinham essa coragem – foi obrigada a renunciar inclusive à filha e preferiu continuar a viver no exterior, onde poderia aprimorar sua formação como artista plástica.

Para se ter uma ideia da incompatibilidade existente entre a jovem mulher e o conservador e católico Octávio Tarquínio, basta lembrar o que ele escreveu no livro Monólogo das Cousas, de 1914: “A profissão das letras é um perigo para as mulheres. O espírito feminino, quando letrado ou erudito, oscila entre a sensaboria e o pedantismo (...) mulheres de letras, pastiches infiéis dos homens de letras...” – citação feita por Ana Arruda Callado em seu livro de 2004.

Em 1926, Maria casou-se, na França, com o diplomata brasileiro Carlos Martins Pereira e Souza, um casamento que lhe deu mais duas filhas e um companheiro para toda vida – uma original união, “aberta”, concordando os dois sobre ligações amorosas extraconjugais, como a que a uniu durante muitos anos, em uma grande história de amor e de companheirismo artístico, ao artista plástico francês Marcel Duchamp (1887-1968). Mas não foi fácil a vida do casal no início, pois legalmente só puderam se casar, no Brasil, após o falecimento do primeiro marido dela, em 1959. E o Itamaraty chegou mesmo a criar dificuldades para eles, transferindo Carlos Martins para Quito – onde a perseguição, pelo jeito, continuou, pois o presidente Washington Luís teria mesmo assinado um decreto retirando sua função diplomática e removendo-o para um consulado, por não aprovar sua união com a artista rebelde. Aliás, no que pese a sofisticação da carreira diplomática, não seria essa a primeira vez, e nem certamente a última, em que preconceitos dessa ordem interferiram na carreira dos servidores do país no exterior. No final do século 19 outro jovem diplomata, Juca Paranhos (o futuro Barão do Rio Branco) teria de enfrentar uma prolongada “excomunhão” por parte do imperador dom Pedro II, que lhe negava qualquer posto fora do país pelo escândalo que causara ao se casar com a jovem e modesta atriz belga Marie Stevens, que foi a mãe de seus filhos e a companheira única de toda sua vida.

Quando Carlos Martins foi nomeado para sua primeira embaixada, no Japão, em 1934, o casal já se impusera socialmente e Maria assumia plenamente sua função de embaixatriz. Sem renunciar jamais as suas inclinações artísticas, a sua personalidade original – seu vestuário, dizem os biógrafos, fugia do engessamento obrigatório da haute couture para incluir sempre toques ciganos, ou até mesmo folclóricos –, Maria soube conciliar os deveres oficiais da posição com a absorção, em todos os países, da cultura local. Pôde assim aperfeiçoar no correr da década de 1930 seus processos de modelagem, incorporando técnicas e elementos temáticos da maior diversidade, e estudar escultura com reconhecidos mestres, como Oscar Jespers (1887-1970), na Bélgica, de 1936 a 1938, e, mais tarde, com Jacques Lipchitz (1891-1973), em Nova York.

Estrondoso sucesso

No período em que passaram nos Estados Unidos (1939-1948), entretanto, foi que ela, já madura em técnicas e em idade, pôde lançar-se plenamente no meio artístico, tendo imediatamente reconhecido seu grande talento. A primeira coisa que fez foi transformar em estúdio o terceiro andar da embaixada em Washington, onde criava suas estruturas de grandes dimensões e, ao mesmo tempo, dedicava-se à cerâmica mediante a instalação de um forno no porão.

Participou inicialmente de uma exposição de arte latino-americana no Riverside Museum, de Nova York. Em 1941 fez sua primeira mostra individual na Corcoran Gallery of Art Washington. Tão significativa que a revista “Life” dedicou uma reportagem sobre ela, designando-a como “a maior escultora do Brasil”. Eram peças figurativas, de grandes dimensões, executadas em várias madeiras nacionais e também em gesso e bronze, com uma tríplice temática tipicamente brasileira: samba, sacra e social, como nas peças Samba, Noite no Salgueiro e Refugiados. O pintor Candido Portinari (1903-1962), que também vivia lá na época, desenhou a capa do catálogo, homenageando-a.

Maria e Carlos sentiram logo necessidade de manter também um apartamento em Nova York, para que ela estivesse mais em contato com a efervescência cultural da cidade que, com a guerra, abrigava numerosos artistas europeus, com os quais o casal estabeleceu logo laços de amizade. O pintor Fernand Léger (1881-1955) tornou-se fervente admirador da artista brasileira, e reproduzia em desenhos suas esculturas.

Até 1942, os trabalhos de Maria eram figurativos, mas a partir daquela data ela voltou-se para o surrealismo. Realizou duas exposições, em 1942 e 1943, com sucesso, em Nova York – na segunda, partilhou o espaço com seu amigo, o pintor Pieter Mondrian (1872-1944), que não conseguiu comercializar nenhum de seus quadros, enquanto Maria vendeu todas suas peças e ainda adquiriu um trabalho do amigo para doá-lo ao Museu de Arte Moderna da cidade. Essas exposições chamaram a atenção dos artistas do grupo surrealista francês que, devido à guerra, havia se transferido para os Estados Unidos. Seu fundador, André Breton, acolheu-a imediatamente entre eles, passando até a assinar apresentações de catálogos de suas exposições, dali por diante. Em 1947, convidou-a a participar, em Paris, da grande exposição Le Surréalisme. Ele dizia que “...ninguém soube captar como ela (a arte) em sua fonte primitiva (...) Ela não deve nada à escultura do passado e do presente”.

De 1948 a 1950, Carlos Martins foi embaixador em Paris, seu último cargo na carreira. O casal resolveu então voltar definitivamente para o Brasil, passo que representou para Maria somente amargura e a retração de sua atividade como escultora. Ela, então, optou pela escrita dali por diante, publicando dois livros de viagens pelo Oriente e uma biografia de Friedrich Nietzsche. Apesar de ter desenvolvido aqui intensa atividade tanto na criação da I Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, como na do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e de ter recebido na III Bienal o prêmio de “melhor escultor nacional”, com a obra A Soma de Nossos Dias, Maria Martins foi sempre ignorada ou francamente atacada pela maioria dos críticos, totalmente polarizados em torno dos novos modismos construtivistas, concretistas e abstracionistas – aqui aportados após a premiação da escultura Unidade Tripartida, do artista suíço Max Bill (1908-1994), na I Bienal – e guiados pelos preceitos impostos pelo crítico norte-americano Clement Greenberg. Uma frase de Maria Martins: “A arte é a resistência do mundo, e no fim a vitória será nossa”.

Adotado pela Itália

Já a história de Julio Cesar Monteiro Martins pode começar assim: nascido em Niterói, em 1955, impôs-se, aos vinte e poucos anos, como um dos mais criativos e prolíficos escritores de ficção do boom literário do início dos anos 1970. Ligado ao extinto jornal “Pasquim”, era disputado por editoras por seus contos e romances, entre os quais destacavam-se Torpalium e Sabe Quem Dançou? Num certo dia de 1977, Julio apareceu na redação da revista “Isto É”, em São Paulo, na companhia de Caio Fernando Abreu, seu amigo e companheiro de geração. Fiz uma grande entrevista com ambos, e me orgulho até hoje de ter contribuído, na minha medida, para a divulgação de suas obras. Mas de repente, nos anos seguintes, dei pela falta de Julio no nosso meio literário, sem saber muito bem por quê. Só fui dar com ele anos mais tarde, de uma forma muito lisonjeira para mim: ele havia, por conta própria, traduzido um conto meu para o italiano e publicado em sua revista “Sagarana”de elevada categoria, fundada há quinze anos, na Toscana, e mantida até hoje. Soube então que seu desaparecimento das plagas tupiniquins devia-se a uma espécie de “exílio voluntário” que fora obrigado a adotar – passada a efervescência do referido boom literário – por desilusão com as condições editoriais e intelectuais (ou melhor, com a falta delas) que passaram a caracterizar o meio cultural brasileiro.

Expatriou-se, primeiro passando períodos nos Estados Unidos e no Japão – escrevendo muito, sempre, e divulgando nossa literatura –, depois, estabelecendo-se em definitivo na Itália, a partir de 1995, onde optou por suprimir seu segundo nome, adotando um perfil profissional mais europeu. Atitude que lhe tem valido uma carreira constante e plenamente reconhecida – tem atualmente, entre romances e contos, cinco livros publicados em italiano, e nove em português, e mais dois de ensaios, sobre experiências metaliterárias, e outros nove, ainda inéditos. Seus processos originais de escrita são analisados em livros exclusivamente sobre sua obra – como Um mare così ampio, da crítica literária Rosanna Morace (2011), sem tradução no Brasil, que diz: “Toda a produção de Monteiro Martins deve ser lida como um continuum, sem fraturas de ponto de vista temático ou estilístico, e isso não obstante a mudança de língua”.

 



 

A burritsia emergente
 

Em breve entrevista, Julio Monteiro Martins nos forneceu mais detalhes sobre sua vida e sua obra.

PB O que o fez deixar o Brasil?
Julio – Acho que o próprio slogan da ditadura sobre o país, “ame-o ou deixe-o”, frutificado tardiamente. A repressão teve um efeito contrário sobre os escritores: de 1974 a 1978 provocou o boom, o entusiasmo da luta, o propósito de libertar o país do jugo ditatorial – nunca se escreveu e publicou tanto. Mas em 1979, já podia ser sentida a agonia silenciosa do movimento, o fim do interesse pela literatura no Brasil, a estagnação cultural – que “escritores literários”, com seus contos e romances, e exigindo livros “leves”, humorísticos, esotéricos, eróticos, ou de autoajuda. Textos débeis, piegas, um pensamento frágil e superficial, lugares-comuns. Ou traduzindo autores de massa, sem nenhum valor literário, e não mais as obras de grandes escritores, de excelentes ficcionistas estrangeiros – é a burritsia emergente brasileira.

PBVocê tem dito que sofreu aqui vários tipos de repressão e de discriminação. Como foi isso?
Julio – Sempre me senti remando contra a corrente. Entrei em conflito com o sistema de direita, lutei muito contra a ditadura, mas também, depois dela, desentendi-me com alguns barões da esquerda brasileira, quando a democracia foi restabelecida, mas se tentou, e se tenta ainda, impor um autoritarismo vindo “do outro lado” – mas que é sempre o mesmo. Nos anos 1990 – e não se deu apenas comigo, mas com todos os escritores brasileiros – vivemos um impasse: fomos colocados em uma situação extrema, ter de escolher entre o exílio em pátria, o ostracismo, as “listas negras”, a impossibilidade de publicar ou de ser eventualmente noticiado, a não ser com a submissão completa aos compadrios, aos grupos de poder e aos ditames estritamente ideológicos, e o exílio fora do país, traumático, mas que ao menos oferecia uma chance de recomeço. Tive brigas públicas em 1986, com a cisão do Partido Verde, que eu ajudara a fundar, e com o caso do filme Um Trem para as Estrelas, em 1987, por questões de plágio da obra. Nunca mais pude publicar nada nos jornais brasileiros e nem trabalhar como roteirista. O que ocorreu comigo aconteceu com muitos escritores, artistas e intelectuais brasileiros – que estão em luta até hoje. Meus novos livros daqueles anos, como Sol de Inverno e A Última Pele, mais maduros e superiores aos da minha primeira fase, me eram devolvidos pelos editores sem sequer serem lidos, e permanecem inéditos até hoje.

PB Hoje, sente-se ainda um artista “migrante”, ou em “autoexílio”?
Julio – A expressão “autoexílio” me parece imprópria, mesmo desonesta, com uma conotação de culpabilização da vítima. Quando um artista ou um escritor é obrigado a deixar seu país por questões pessoais e intransferíveis, frequentemente ligadas às tendências ideológicas e estéticas do poder cultural, ele sofre muito e tem de procurar vencer barreiras muito fortes, diferença de língua e de costumes, adaptação em outros meios, solidão, privação dos amigos, da família. Os exilados brasileiros da minha geração sofreram mais do que os da geração precedente, tiveram de viver um exílio fantasma, fora das instituições, humilhado pela falta de legitimação. São exilados e esquecidos, ao passo que os exilados políticos dos anos de chumbo voltaram, todos, e foram festejados. A glória alcançada no exterior não tem muito sentido, posto que concedida fora do seu lugar natural. Em uma poesia, “Vivere in esilio” (“Viver em Exílio”), digo: “vinho vertido / sobre a bandeja de prata / enquanto as taças / continuam vazias”. Essa poesia está na minha antologia do período 1998-2013, La grazia di casa mia (A Graça da Minha Casa), lançada no final do ano passado, ainda sem tradução no Brasil, e que está tendo um grande sucesso de crítica, considerada uma “revolução” na poesia italiana atual, justamente pela influência no meu estilo da forma coloquial poética, brasileira e estadunidense.