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Transgressões (des)organizadas

Cinema Marginal, de Invenção, Marginalizado, Udigrudi, Subterrâneo, Tupiniquim, de Poesia, Experimental, Alternativo. Muitos foram os nomes dados a uma certa cinematografia brasileira surgida no final dos anos 1960, em um contexto de agitação comportamental e repressão política. Assumia-se a proposta de um cinema de autor, já introduzida no Brasil pelo Cinema Novo, cuja maior preocupação era criar a partir da precariedade técnica uma nova linguagem, que por meio de seus aspectos formais dialogava com os conflitos e desigualdades sociais que cruzavam (e ainda cruzam) o país de uma ponta a outra.

No berço da chamada Boca do Lixo, polo de produção cinematográfico localizado no centro da cidade de São Paulo, nasceu uma das vertentes do movimento. Os jovens cineastas Rogério Sganzerla, João Callegaro, Carlos Reichenbach, João Silvério Trevisan se juntariam ainda a Andrea Tonacci, Júlio Bressane, José Agrippino de Paula, Elyseu Visconti, entre outros, para realizar filmes que, em sua radicalização formal, condensavam inquietações sobre o estatuto do cineasta no Brasil pós-Golpe de 1964.

A maneira em que essas inquietações foram traduzidas em termos estéticos, entretanto, assumia um outro tom daquela consagrada pelo movimento cinemanovista, até então mais sisudo e de intuito pedagógico. Como já ressaltaram críticos e pesquisadores, não há demarcações bem definidas dentro da diversidade de posturas e propostas, a não ser alguns traços comuns: o orçamento mínimo, a busca por um cinema sem concessões, autoral, agressivo, que tencionava chocar através da textura da imagem, da violência do gesto e do grotesco. Da estética da fome para a estética do lixo, trocava-se a seriedade do tratamento dos temas pelo humor ácido e (auto) irônico; o intuito pedagógico e linear por narrativas fragmentadas e descontínuas; o potencial até então certo do cinema como arma da Revolução por uma dúvida contundente sobre seu papel social.

Diante dos elementos acima apontados, gostaria de sugerir neste breve texto uma categoria que me parece bastante pertinente como chave de leitura dessa cinematografia. Trata-se do conceito de transgressão organizada, cunhado pelo filósofo francês Georges Bataille (BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013). Bataille acreditava que, desde que o homem se organizou minimamente em comunidades e tribos, instaurou-se o interdito, pertencente ao mundo do trabalho e da razão, e que teria como objetivo afastar o homem do mundo da natureza. Mesmo com os interditos, entretanto, haveria uma transgressão permitida, até mesmo prescrita, desde que organizada, controlada, circunscrita a determinados espaços, tempos e agentes sociais.

Ora, o que vemos no Cinema Marginal, com bastante recorrência, é o uso da transgressão moral como recurso expressivo. Transgressão que se encontra, entretanto, desorganizada pelos cineastas em narrativas caóticas, fragmentadas. Assim, veem-se dois atores mostrarem as nádegas para a câmera em Orgia ou Homem que Deu Cria; uma mulher viciada em sexo e impositiva em A Mulher de Todos; duas jovens, aparentemente lésbicas, que rastejam, pulam e emitem grunhidos e falas desconexas em Matou a Família e Foi ao Cinema; a presença de personagens consumindo drogas em Meteorango Kid; o primeiríssimo plano do corpo de um torturado, com especial visibilidade de seus pelos e sangue, em Hitler do Terceiro Mundo. A lista é grande, e o importante a ressaltar é o esforço presente nesses filmes de aproximar homens e uma certa face animalesca, negada pela cultura, em franca atitude provocativa.

Sabemos como, entretanto, esses filmes encontraram obstáculos graves na censura, que impôs numerosos cortes, quando não interditou os filmes na íntegra. A transgressão, dessa maneira, passou a ser organizada, domesticada, limitada por barreiras que provinham das esferas da política.

Com a hegemonia do mercado sobre a produção cinematográfica, tornaram-se raras aquelas imagens de textura desagradável e intuito transgressivo, apesar de ainda existirem cineastas de uma produção eminentemente política e autoral, como Sérgio Bianchi, Tata Amaral, Karim Aïnouz, José Padilha, Paulo Sacramento, Kleber Mendonça Filho, dentre tantos outros. Na maioria dos casos, entretanto, sua abrangência está limitada ao circuito de festivais e mostras ou a algumas poucas salas que lhe concedem espaço, além de ter dificuldades de financiamento por parte do setor privado. Trata-se ainda, portanto, de uma produção circunscrita, delimitada, que procura caminhos para transpor a muralha que a circunda.


Caio Lamas é cineasta, editor de vídeo e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.