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Valdir Cruz

Crédito: Thomaz Marcondes
Crédito: Thomaz Marcondes


O fotógrafo fala de sua paixão pela expressão humana em seu trabalho e Das dificuldades que o mercado impõe à arte


Residente em Nova York há mais de 25 anos, Valdir Cruz é autor de fotografias que integram o acervo permanente do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp) e do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). Nascido em Guarapuava, no sul do Paraná, em 1954, ele mantém a proximidade com as raízes brasileiras por meio de seu trabalho fotográfico.

Em 1994, Valdir Cruz começou a se dedicar a fotografar lideranças, não só indígenas, do norte da Amazônia. O perfeccionismo fez com que ele desenvolvesse novos métodos de impressão que pudessem trazer a qualidade da revelação dos filmes para ampliações em papel. A longa relação entre o fotógrafo e os índios Yanomami é um dos temas desta entrevista: “Você tem que sentir como trabalhar, e eu me senti muito inconveniente lá, porque eu não tinha proposta de trabalho, e ficar lá só fotografando pra mim, a minha fotografia, eu vi que era errado”.


Como nasceu o seu interesse por registrar os Yanomami e como você conseguiu realizar esse trabalho?
O projeto com os Yanomami foi bem casual. Nos anos de 1994/1995, eu tinha uma associação profissional com a Amanaka – uma organização não governamental, em Nova York, responsável por receber lideranças indígenas e contribuir na coordenação de um evento anual na ONU [Organização das Nações Unidas]. Minha proposta era retratar essas lideranças com uma câmera de fole, chapas 18 x 24 cm, em meu estúdio. Era minha responsabilidade convidá-los e conduzi-los a meu estúdio e dessa forma retratar essas lideranças da Amazônia. Não se tratava somente de indígenas, pois me lembro de um dos mais belos retratos desse período, o da então senadora Marina Silva.

Na época a minha ideia era fazer um projeto de livro, razão do título Faces of the Rainforest (Faces da Floresta), que eram essas lideranças, sendo a ideia o retrato e um perfil escrito de cada um. Fiz isso por uns três anos e num determinado momento, acho que em 1994, eu conheci o Davi Kopenawa Yanomami, que é a liderança Yanomami. O Davi passou uma tarde lá em casa, conversando e fotografando. Eu tinha um jardim, no telhado de meu estúdio, e, ao subirmos pra ele ter uma visão melhor de Nova York, ele me disse: “Olha, se um dia você quiser ir lá pra Amazônia, pode ficar lá na comunidade comigo, mas isso não quer dizer que você pode fotografar. Você pode fotografar minha família, o resto você vai ter que ganhar a confiança deles, porque eles não gostam de ser fotografados. Mas se você quiser ir conhecer os parentes, você é bem-vindo”. Então eu organizei uma viagem em 1995, partindo de Nova York à Venezuela, fiquei uns dias dando aulas na Universidade de Mérida, nos Andes e, de lá, retornei a Caracas, de onde parti de ônibus até Boa Vista.

Depois de duas semanas insistentemente indo todos os dias nos mesmos pontos, buscando apoio, esperando um voo, a própria Funai descobriu o que estava acontecendo, porque foi à comunidade do Davi e explicou: “Tem um cara lá em Boa Vista, um fotógrafo, diz que é convidado seu”, e aí o Davi falou que “não falaram que era o Valdir, falaram que era um fotógrafo americano e aí a gente tem o requerimento da comunidade para que ele venha trabalhar aqui, mas ninguém falou que era o Valdir, o Valdir pode vir a qualquer hora”. Aí a Funai falou que tinha alguém me travando em Boa Vista e tomou uma decisão: “A gente vai te levar lá”.

Quanto tempo você ficou lá?
Foram duas semanas, somente. Você tem que sentir como trabalhar, e eu me senti muito inconveniente lá, porque eu não tinha proposta de trabalho, e ficar lá só fotografando pra mim, a minha fotografia, vi que era errado. Mas, quando saí de lá, saí decidido a encontrar um formato de trabalho e percebi que, mesmo na comunidade do Davi – que, digamos, é uma comunidade cinco estrelas –, havia problemas de saúde e, até aquele momento, eu não tinha visto nenhuma proposta de outros fotógrafos que focassem a saúde.

Sair fotografando ao acaso não lhe apetece? Você sempre gosta de ter um projeto, é isso? Não só no caso dos Yanomami, mas de uma maneira geral.
De maneira geral, meus primeiros 10 anos, 15 anos de fotografia era isso. Era fotografar o meu olhar, ao acaso. E eu tenho hoje um arquivo significativo que nunca foi publicado. Como isso me parece mais algo para o grande mestre, que já tem um grande nome e pode fazer o que bem entender, eu senti que, se não focasse em projetos, desenvolvesse um projeto e tentasse publicar, seria muito difícil sobreviver como fotógrafo. Então, comecei a buscar ângulos de projetos e foi justamente quando iniciei o trabalho com os Yanomami. Havia terminado meu primeiro projeto, um estudo fotográfico de arquitetura, com uma câmera 18 x 24 cm, em Curitiba, documentando a Catedral Basílica de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. Aí fui para a Amazônia nessa época. Quando voltei da comunidade do Davi, arrisquei uma bolsa na Fundação Guggenheim e dei sorte, consegui a bolsa. As imagens de minha primeira viagem à comunidade de Demini-teri, comunidade do amigo Davi, foram fortes o suficiente para garantir a bolsa.

E qual era o projeto apresentado para conseguir a bolsa?
Era o projeto já focando a saúde das comunidades. Mas durante esse ínterim, até conseguir essa bolsa, eu fiz uma viagem de duas semanas aos Yanomami no lado venezuelano, com Patrick Tierney, escritor norte-americano que mais tarde escreveria um livro polêmico intitulado Darkness in Eldorado, publicado pela WW Norton. Era um projeto muito bonito de investigação, fazia dez anos que ele estava trabalhando com os Yanomami. Eu o conheci em Nova York e ele me pediu sigilo na época. Então, fiz essa viagem com ele, e foi uma viagem muito boa porque me abriu uma visão positiva. Os Yanomami na Venezuela estavam em piores condições do que do lado brasileiro. Dediquei 30% do projeto/tempo da bolsa no Brasil e os outros 70% na Venezuela. Cerca de cinco meses entre Brasil e Venezuela. O resultado dessa viagem chamou a atenção da saúde no Brasil e na Venezuela, e então se organizou uma expedição com os Médicos Sem Fronteiras. Essa expedição resultou num relatório maravilhoso sobre a saúde dos Yanomami na região de Siapas, e isso foi criado por meio desse documento que conseguimos na Venezuela e que mostrava como estava a situação indígena naquela área.

O seu trabalho não tem um caráter de denúncia, ele tem outro viés...
Ele é um documento. Ele não tinha esse viés de denúncia porque todos os envolvidos com indígenas no Brasil sabem do que se trata a Amazônia, então não tem denúncia nenhuma, só a realidade. Daí há os formatos de quem vai buscar a mensagem. Na época já tínhamos grandes documentários, grandes visões, ótimos fotógrafos trabalharam na área e pensei: se eu quiser sobreviver, não posso cair num clichê, eu tenho que achar um formato para conseguir um material novo, relevante, para sobreviver, para poder publicar esse projeto.

Você fala em projeto, em se diferenciar como fotógrafo. No entanto, algumas fotos são de uma crueza muito forte. Como isso foi visto? Qual a reação do público a um material assim?
Existem várias formas de entender as imagens. Mas as imagens acabam sendo mais bem interpretadas por museus. E dificilmente uma pessoa escolherá uma imagem indígena para sua parede. Foi uma das razões pelas quais comecei a desenvolver projetos ambientais, para sobreviver com a venda da imagem. Trabalhando com comunidades indígenas isso não acontece. Neste momento estamos finalizando a documentação de aquisição de uma coleção dessas imagens pela MAE-USP [Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo]. São museus que têm esse interesse, que entendem um projeto social.

Por quê? Há preconceito?
Há preconceito. Raramente alguém vai querer uma foto de um indígena, principalmente com uma situação de saúde. Ou a foto de um negro, é muito difícil, as pessoas não querem esse tipo de fotografia na parede. Preferem a imagem de uma árvore, de uma queda d’água, isso não incomoda ninguém, aí você sobrevive de vendas de imagem. Por isso que meus projetos acabam sendo formatados em livros, porque não existe outra forma. Por meio de galerias, exposições, isso não acontece, é muito difícil. Já em museus, sim. Mas tem que acabar em livro porque é minha forma de divulgação.

Essa é uma observação interessante, ou seja, os compradores da sociedade civil não se entusiasmam, têm um preconceito com esse tema... e também buscam uma coisa adocicada.
Depende de qual mercado estamos falando. Se for o mercado nacional, é uma mentalidade. O mercado internacional é outra.

Então vamos falar de cada um. Como é o mercado nacional?
O mercado nacional, na minha maneira simples de observar, é um mercado ainda muito limitado em termos de fotografia. Existem formas de observar isso. E aqui não estamos mais falando de documentário, da situação indígena, estamos falando da fotografia de maneira geral, da venda da fotografia como arte no Brasil. Eu a acho um pouco manipulada, hoje, por pequenos grupos que acabam manipulando até o próprio fotógrafo, insistindo na formatação, na edição limitada, em tamanhos de imagem. O fotógrafo acaba saindo um pouco da visão dele para favorecer o galerista, que vai favorecer um cliente, que vai fazer uma parede a pedido do decorador, que não tem muito a ver com colecionar arte, colecionar fotografia pelo amor à fotografia. É ainda um mercado muito novo. Colecionadores de fotografias no Brasil são raros, pouquíssimos.

Você considera essa postura como falta de cultura, falta de costume?
Acho que é um pouco de cada situação. Um pouco de falta de conhecimento sobre a fotografia, um pouco se dá pelo momento em que estamos vivendo, pois a imagem fotográfica muda, a fotografia muda, a tecnologia aparece, a aplicação da imagem é outra. A rapidez! Hoje todo mundo é fotógrafo, todo mundo é filmmaker, com um celular, todo mundo está postando. A imagem é muito popular. Sobreviver como fotógrafo profissional, hoje, é muito difícil.

Mais difícil do que 20 anos atrás?
Pode até ser. A quantidade hoje é massiva, mas também a incompreensão é grande. As pessoas estão vendo de outra forma, que já não tem nada a ver com arte, a imagem é outra forma de proliferação. A minha fotografia hoje é uma fotografia considerada clássica.

Por quê?
Porque eu trabalho com filme. A maioria dos meus projetos, excluindo o da Amazônia, em que usei 35 mm, mostra que eu sou um apaixonado por formatos maiores. Eu trabalho com, no mínimo, 6 x 6 cm, ou chapas 4 x 5 polegadas, ou chapas 18 x 24 cm. Eu ainda amo filme, eu ainda gosto de molhar minhas mãos no revelador e trabalhar. Não digo que não aceito a nova fotografia, a tecnologia. Eu trabalho e faço muito bom uso dela, porque nos últimos dez anos eu desenvolvi, com um sócio, Leonard Bergson, em Nova York, um processo de cópias em pigmento sobre papel que acho que dificilmente está sendo superada. Observo muito a qualidade aqui no Brasil e muitos amigos me convidam: “Vamos ver a exposição do Fulano, que é muito boa, a qualidade de impressão é maravilhosa, quem fez foi este, esse ou aquele...”, e eu vou e observo com grande prazer, e aí eu volto pra casa e penso: não tinha nada de novidade.

Quando começamos, uns 10, 11 anos atrás, discutimos o seguinte: o que temos que desmistificar logo é essa coisa Epson, “qualidade Epson”, temos logo que destruir esse pensamento. Então, compramos uma Epson, destruímos toda a tubulação, pusemos outra tubulação e um novo software para que ela funcionasse. Trabalhei com um companheiro e trocamos várias ideias. Eu mostrava minhas cópias em prata e falava: “Quero fazer a cópia em pigmentação, mas não quero essa pigmentação da Epson, esse preto e esse branco, eu quero com dez tonalidades dentro desse preto e branco”.

Você queria fugir desse padrão do “preto Epson”, que inundou o mercado?
Virou um padrão, e muito limitado. Ficamos três anos e meio trabalhando e não acertávamos, porque o cara desenvolvia uma pigmentação, a gente tentava, aplicava, mas não conseguia muito resultado.

Uma vez que você chega à qualidade e diz “poxa, isso aqui é bom”, daí sim, o uso do Photoshop é maravilhoso, porque as cópias analógicas às vezes te limitam no laboratório. Chega-se ao máximo de qualidade e não há mais como aprimorar, e às vezes umas coisinhas poderiam melhorar, mas tecnicamente você fica limitado.

No fundo, estamos falando da construção de uma imagem. Apesar de ser uma imagem sobre algo real, ou seja, que você fotografou uma cena, um objeto, o que o espectador vê é uma interpretação. O que você está vendo não é o real. Isso também não interessa a você? A construção de uma outra imagem...
Pode ser visto dessa forma, mas para mim ela tem que chegar na hora que meu coração diz “tá beleza, essa imagem tá pronta”. Ansel Adams já dizia: “Não se tira uma foto, mas, sim, cria-se uma imagem fotográfica, desenvolvendo-a no laboratório”. O laboratório é importante, a impressão é importante. É o momento em que ela estará boa, que vai ter um balanço. De ponta a ponta da imagem você vai olhar e vai estar equilibrada. Vai ter o preto 100%, vai ter o branco lá embaixo da escala, sem textura, com branco com textura, e vai ter uma gama de cinza, nessa viagem até o preto, preto sem textura, que o bom observador vai olhar. As pessoas me perguntam se eu não fotografo cor, eu digo que sim; se você observar minhas imagens fotográficas, estão cheias de cores. Elas têm dez cores, têm dez tonalidades, é que em geral poucos observam isso, busca-se o impacto da imagem só. Ele não está vendo os cinza, os pretos. A maioria não está vendo, eu diria.

Falamos do mercado nacional, e o mercado americano?
Ele não varia muito da mentalidade daqui, depende do fotógrafo, do tipo de trabalho. Falando do meu trabalho, é de um olhar mais clássico, então ele é um trabalho de um colecionador que realmente conhece imagens, de museus. Minha fotografia, nos Estados Unidos, são imagens em prata e menores, fisicamente. Na Europa também, é onde se vendem mais imagens menores, devido, creio eu, às pessoas que não têm muito espaço. A formatação de imagens maiores começou quando dei um passo, ao retornar ao Brasil, isso dez anos atrás.

E agora, nesse meu último projeto, o projeto Guarapuava, apresentamos um formato um pouco maior, mas não desmerece a qualidade de forma alguma, senão eu não faria. Eu estudo muito, analiso muito os negativos e faço os testes pra ver até onde ele suporta a mesma qualidade, que é sinônima de meu trabalho.


“Hoje todo mundo é fotógrafo, todo mundo é filmmaker, com um celular, todo mundo está postando. A imagem é muito popular. sobreviver como fotógrafo profissional, hoje, é muito difícil”


“Há preconceito. Raramente alguém vai querer uma foto de um indígena, principalmente com uma situação de saúde. as pessoas não querem esse tipo de fotografia na parede”


“Ansel Adams já dizia ‘não se tira uma foto, mas, sim, cria-se uma imagem fotográfica, desenvolvendo-a no laboratório’”


“O mercado nacional, na minha maneira simples de observar, é um mercado ainda muito limitado em termos de fotografia”