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Corpo a corpo

Ilustração: Negahamburguer, sobre ser respeitada #2
Ilustração: Negahamburguer, sobre ser respeitada #2


Como representação mitificada, fiel ou como parte ativa de criações visuais, a figura humana adquiriu nova potência experimental no contexto da arte contemporânea


Monalisa, de Leonardo da Vinci (1452-1519), O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli (1445-1510), e As Meninas, de Diego Velázquez (1599-1660), são alguns exemplos de obras de grande repercussão em que a figura feminina é homenageada por mestres da pintura. Tendendo à fiel representação, ao retrato ou à convergência entre a mitificação do corpo feminino e masculino, muitas são as variáveis que resultam na forma como as artes visuais e o corpo humano dialogam ao longo da história da arte.

Ernst Gombrich, grande referência no estudo das artes, traçou em seu livro A História da Arte (LTC, 2000) a importância e a descoberta do corpo humano para os artistas, feita desde os povos pré-históricos e primitivos até a arte experimental da primeira metade do século 20. Em seus estudos, ele aponta o exemplo da célebre estátua Vênus de Milo (assim chamada por ser encontrada na ilha de Milo, no Mar Egeu). “Nesta obra pode admirar-se a clareza e a simplicidade com que o artista modelou o corpo, marcando suas principais divisões”, escreve o autor.

Com a evolução da prática dos artistas, foi possível, além de criar tipos humanos convincentes e reproduzi-los por meio dos mais diversos suportes, tornar o corpo parte ativa da obra. Na visão do crítico e curador Mario Gioia, ele adquiriu essa condição desde a modernidade. “No Brasil isso é muito claro com o pioneiro do happening, Flávio de Carvalho. Andar em sentido contrário ao de uma procissão foi radical e caminhar de saia no Centro de São Paulo também.” Gioia faz referência às Experiências nº 2 e nº 3, protagonizadas por Carvalho.

O corpo em seu extremo e usado como suporte é objeto de estudo da professora do Curso de Têxtil e Moda, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP leste), Beatriz Ferreira Pires, autora do livro O Corpo como Suporte da Arte (Editora Senac, 2005). Para ela, as transformações corporais desenvolvem uma nova forma de comunicação com a sociedade. “Meu interesse por esse tema nasceu do impacto causado pela transformação do corpo humano. Essas modificações fazem com que o corpo seja um ponto de experimentos artísticos e científicos e funcionam como uma marca complementar da personalidade, provocando novos comportamentos”, analisa a pesquisadora.

Ainda no contexto brasileiro, há o reconhecido trabalho de expoentes como Lygia Clark e Hélio Oiticica. Contemporâneos, ambos “invocaram a participação do público, que não é mais passivo na experiência da obra de arte”, afirma Gioia. O especialista cita ainda as artistas Laura Lima e Berna Reale como as representantes mais novas dessa vertente. Laura foi a primeira artista a ter adquiridas obras na categoria “Performance” por um Museu Brasileiro – no caso, o Museu de Arte Moderna de São Paulo. Já Berna Reale é conhecida por criar instigantes performances e instalações. 


Rebelião feminina

Artistas brasileiras discutem questões de arte de gênero

“Descobri uma semana antes de viajar que estava com miomas com risco de sangramento, nunca tinha sentido nada antes. Embarquei medicada para Londres em 1998 e, quando voltei ao Brasil, fui operada e fiz a série Diário da Doença, em acrílico, aquarela e grafite sobre papel preparado”, afirma Rosana Paulino sobre seu trabalho. “Acho difícil um trabalho ser só pessoal, ele sempre transcende, pois os problemas ali tratados são de ordem cultural. Minha trajetória, por exemplo, parte do individual (eu) para um coletivo de mulheres. O tema do meu trabalho, a violência doméstica contra as mulheres, atinge a todas, de maneira direta ou indireta”, analisa Beth Moysés, autora de 5664 mulheres – obra criada com 5664 cápsulas de bala usadas, que são montadas, com cartuchos invertidos, dentro de uma caixa de vidro, formando a bandeira do Brasil. O trabalho foi produzido para denunciar a quantidade de mulheres que morreram vítimas do parceiro no ano de 2013.

Essas são duas das doze artistas – as demais são: Amanda Melo da Mota, Cris Bierrenbach, Fabiana Faleiros, Fernanda Chieco, Grasiele Sousa, Graziela Kunsch, Márcia X (1959-2005), Mariana Marcassa, Negahamburguer e Síssi Fonseca – que integram a exposição Corpos Insurgentes, parte da programação do Sesc Vila Mariana até 9 de novembro. Em paralelo acontece uma programação especial que discute questões de gênero e o universo feminino.

Partindo da discussão da representação da imagem e do corpo feminino no universo artístico ao longo da história tendo como exemplos trabalhos contemporâneos, a equipe do Vila Mariana passou a reunir obras de diversas artistas brasileiras com um eixo em comum: o questionamento sobre os padrões estéticos impostos sobre o corpo feminino. Por fim, os trabalhos foram escolhidos para compor a exposição.

E, no contexto da representação feminina, as criações que tiveram inspiração em aspectos pessoais acabam por transcender essa experiência, podendo ser entendidas como questões universais. A visão coletiva é obtida ao observar as obras e intervenções em conjunto. “Além dos vídeos que integram a sala expositiva, fiz uma performance inédita, pois entendo o espaço expositivo como um lugar de experimentação e ampliação de meu trabalho”, diz Mariana Marcassa, autora da performance Que Corpo é Esse?. “Neste sentido, percebê-lo no conjunto da mostra o faz crescer, uma vez que novas leituras e discussões podem ecoar e ressoar, no contato com os trabalhos que lá estão e na oportunidade de experimentação de uma nova performance.”

Na opinião de Rosana Paulino, o uso do corpo como suporte é uma maneira de responder à interatividade. Para ela, um dos méritos da exposição é colocar uma série intimista e outra mais ruidosa sem agressão visual ou de espaço. “O modo como está organizada a exposição faz com que experimentações mais ruidosas – um vídeo ou uma instalação – fiquem próximas de um desenho mais delicado, silencioso”, acrescenta. “Na multiplicidade de linguagens conseguimos perceber essas diferenças, fazendo um exercício de observação da obra de arte contemporânea.”