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A bomba do ano 2000

Mudança de datas provoca dores de cabeça nas áreas que dependem de computadores

OSWALDO RIBAS

Quando, na ensolarada mas fria manhã de 2 de abril em Nova York, o Chase Manhattan, o maior banco dos Estados Unidos, anunciou que estava destinando uma verba de US$ 250 milhões para adaptar seus sistemas de computação à virada do milênio - o chamado "bug do ano 2000" - o mundo, finalmente, parecia estar despertando para a catástrofe que ameaça os estoques de informação eletrônica ao redor do planeta. Afinal, se a maior instituição financeira americana havia decidido levar a sério as advertências de especialistas sobre o risco de os programas instalados nos computadores não serem capazes de distinguir o século 20 do século 21, de lerem datas com os dígitos 00 como se fossem do ano 1900 e não do ano 2000 (ver texto abaixo), então o problema era mesmo grave e, conforme vêm alertando os "profetas cibernéticos", os dias estavam contados para ocorrer um impacto colossal em todos os negócios e serviços dependentes de sistemas informatizados.

"Os gastos serão incluídos no dinheiro que o Chase regularmente usa para atualizar seus sistemas de computação", disse o porta-voz da empresa, John Stefans. Coincidência ou não, o fato é que, um dia depois, o Citibank - o segundo maior banco dos EUA - também anunciava ao mundo estar incluindo em seu orçamento de 1997 os custos da conversão de seus computadores para o ano 2000. Naquela mesma semana, do outro lado do Atlântico, em Bruxelas, a capital administrativa da União Européia (UE), ocorria um corre-corre dos comissários (com status de ministros) do setor de telecomunicações. Apressadamente, eles convocaram uma reunião para pedir "um plano de ação imediata" que evitasse o que a imprensa européia passou a chamar de "a bomba do milênio", um apocalipse digital que deixaria de pernas para o ar toda a complexa rede global de comunicações eletrônicas assim que os relógios batessem a zero hora do dia 1o de janeiro do ano 2000

"Estamos todos vulneráveis", advertiu o ex-subsecretário de Indústria e Comércio da Grã-Bretanha, Ian Taylor, ao Conselho de Telecomunicações da UE. "Companhias públicas e privadas, incapazes de lidarem com a 'bomba', trarão o caos às atividades mais rotineiras de nossa sociedade." Taylor citou as transações financeiras e comerciais que entrarão em colapso quando os computadores "se recusarem a entender que houve uma mudança de século"; também os programas de fornecimento de peças e componentes à indústria "perderão o juízo" e deixarão fábricas inteiras sem poder alimentar suas linhas de montagem; os serviços públicos passarão a cometer "erros absurdos" nas emissões de contas de água, gás e telefone; pagamentos de aposentadorias ficarão comprometidos; lotes de remédios serão recusados e as alfândegas paralisarão todo o trânsito mundial de mercadorias. "Controlar uma simples nota fiscal será uma tarefa impossível", acrescentou.

O sinal emitido pelo Chase, em Nova York, de repente, começou a cumprir a missão de conscientizar a opinião pública internacional, tarefa que centenas de especialistas vinham, há anos, tentando realizar sem êxito. O alarme começou a soar de verdade e, repentinamente, de todos os grandes centros de decisão mundial - Tóquio, Hong Kong, Sydney, Buenos Aires -, começaram a surgir indicações de que o problema do bug do milênio iniciava a escalada para ocupar papel de destaque nas agendas de empresários e equipes governamentais.

"É assustador"

Mas, e no Brasil? Bem, pelos trópicos os sinais anunciados do Armagedon eletrônico também começaram a chegar, mas com intensidade bem mais fraca. Por aqui poucas empresas conseguiram captar os sinais de alerta que piscam pelo mundo afora. "Calculamos que apenas 10% das empresas privadas brasileiras estejam lidando com o problema da correção dos sistemas para o ano 2000", afirmou Paulo César Pinheiro, chefe do Team 2000, departamento criado pela empresa de sistemas de informática Unisys, para propor soluções às companhias que desejam enfrentar o simples mas ao mesmo tempo trabalhoso problema de retificação dos campos de data armazenados em seus computadores. "No setor público, então", acrescentou Pinheiro, "pode-se contar nos dedos o número de empresas estatais envolvidas na identificação do bug do milênio. É assustador..."

A letargia do setor público brasileiro em avaliar a dimensão do problema, prover os recursos necessários e executar as operações de conversão das memórias de seus computadores para torná-los aptos a entenderem a mudança do milênio está hoje entre as grandes preocupações dos especialistas. "Sem a infra-estrutura oficial sintonizada para o ano 2000", disse Rubens de Camargo, da empresa de consultoria e prestação de serviços de informática PCD, "o efeito dominó será devastador até para os que já tiverem conseguido arrumar suas casas."

Contra as empresas públicas - como Telebrás, Comgás e Eletrobrás - também pesa o fato de que, ao contrário do setor privado, para obter qualquer ajuda externa de uma consultoria, as estatais terão de abrir um processo de licitação que, geralmente, é demorado. "A situação é crítica", admitiu Pinheiro, "até porque os dias úteis até o ano 2000, se somados, não dariam hoje mais que 700." Pior. Na avaliação dos técnicos - que às dúzias começam a se especializar no tema para garantir vaga no vibrante mercado de trabalho que se abre para quem entende de linguagem de computadores - o prazo final para a conversão dos campos de data é, de fato, 31 de dezembro de 1998. "Será necessário pelo menos um ano, antes da virada do século, para que todo o novo sistema possa ser testado", declarou Pinheiro.

A questão política é outro componente que atrapalha estatais e companhias de utilidade pública. Como convencer prefeitos e governadores da necessidade de investir milhões de reais só para deixar tudo como está?, perguntou Camargo, da PCD. "Nas empresas de capital aberto", disse, "os gerentes têm pela frente a difícil tarefa de dar explicações aos acionistas sobre a queda de rendimentos anuais por força dos gastos com a reprogramação dos computadores da companhia, mas em estatais a questão mostra-se quase sem solução, já que investimentos do porte requerido só são viáveis quando se tornam visíveis aos olhos dos eleitores, coisa que campos de data em computadores absolutamente não são."

Sempre à frente do setor público, talvez por ser mais rica, a Petrobrás é uma das únicas companhias estatais a avançar no processo de identificação e correção dos programas em seus computadores principais. Um porta-voz da empresa calcula que os custos com as alterações de programas alcance os R$ 40 milhões e prevê que o trabalho de correção das linhas do computador principal esteja concluído em janeiro de 1999. Dentro ainda da esfera federal, a Eletrobrás só agora começa a avaliar a extensão do problema, enquanto a Telebrás promete montar equipes de trabalho internas para "realizar um inventário" da situação.

As estatais deverão eleger como modelo o chamado Projeto Ano 2000 do Serviço Federal de Processamento de Dados, o Serpro. Espécie de cérebro do processamento de dados de todo o governo federal, o órgão já deslocou quase mil técnicos, entre analistas de sistemas e programadores, para realizarem internamente, sem apoio externo e, portanto, sem a necessidade de abrir licitações e concorrências públicas, todo o processo de conversão das datas dos seus mais de 300 sistemas de informação. Prioridade do Serpro foi atualizar o Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), que reúne dados de quase 82 milhões de contribuintes da Receita Federal. Mas, no ritmo provocado pela escassez de mão-de-obra especializada e disponível, o trabalho caminha lentamente e, dos 300 sistemas que precisam ser alterados, os técnicos cobriram pouco mais de 2% dos programas até agora. Mais bem situada está a Companhia de Processamento de Dados do Estado de Minas Gerais (Prodemge) que espera ter realizado todo o projeto de correção das datas até dezembro do ano que vem, dentro do prazo, portanto, para testar seus sistemas corrigidos até a virada do século.

Esperteza

Do lado do setor privado brasileiro, contudo, há mais esperteza na tomada de decisões, e o Banco de Crédito Nacional (BCN) é, hoje, o melhor exemplo de empresa preocupada com os problemas que a virada do milênio deverá provocar em seus bancos de dados. Como todas as empresas do setor financeiro - consideradas as mais vulneráveis ao bug do milênio por lidarem com carteiras de longo prazo, como financiamentos, hipotecas, cartões de crédito, operações de captação de crédito -, o BCN acordou para a gravidade do fato já há dois anos, quando a mídia internacional especializada - incluindo revistas como "PCWorld" e "Wired" - começava a publicar reportagens alertando para o risco de colapso no sistema global de informática.

"Como despertamos nossa atenção para o problema mais cedo", disse Sergio Ximenes, gerente de Projetos do BCN, "vamos poder resolvê-lo também mais cedo." O BCN deverá se tornar a primeira empresa brasileira a garantir aos seus clientes que, quando o relógio bater a meia-noite no dia 31 de dezembro de 1999, seus depósitos e investimentos estarão seguros contra qualquer bug cibernético. "Nossa meta é encerrar o trabalho de alteração dos sistemas que lidam com dinheiro dos clientes do banco até junho, julho", disse Ximenes.

A dianteira com que o BCN conseguiu impor-se diante dos concorrentes - o outro único banco também em fase adiantada de revisão de seus computadores é o Bradesco - deverá ter uma utilidade adicional não prevista por Ximenes e sua equipe. Gurus do milênio, que povoam as páginas da Internet reservadas para os vários fenômenos que se esperam para o ano 2000, garantem que as empresas que proporcionarem uma passagem suave pela virada do século terão "um trunfo extra" na acirrada batalha para conseguir maiores fatias de mercado. "Em breve", afirmou um desses gurus, o canadense Peter de Jager, "campanhas publicitárias deverão ser lançadas na mídia alertando consumidores e clientes para o fato de determinadas companhias estarem prontas para o século 21, enquanto outras ainda aguardam 'soluções milagrosas' que não virão."

Na verdade, a repercussão no mercado favorável às empresas que se adiantaram na correção do bug do milênio já pode ser sentida. Nas bolsas de valores, principalmente as dos Estados Unidos, as empresas que tiveram maior valorização em 1996 e no primeiro trimestre de 1997 estão de alguma forma relacionadas ao fenômeno do milênio. Empresas como Viasoft, Zitel e Data Dimensions conseguiram triplicar o valor de suas ações nos últimos meses. A Data Dimensions, por exemplo, que obteve uma receita em torno de US$ 15 milhões no ano passado, com apenas 215 funcionários, conseguiu a façanha de alcançar um valor de mercado de US$ 285 milhões, aproximadamente 280 vezes o lucro conseguido em 1996, após a dedução dos impostos.

"Parece loucura, mas há uma corrida para abrir empresas com alguma atuação relacionada ao ano 2000, e colocar ou acrescentar o termo 'milênio' na razão social da companhia é meio caminho andado para receber pronta aceitação do mercado", afirmou David Stewart, um especialista do mercado de valores nova-yorkino. Nos EUA, a cada mês são abertas dez novas empresas voltadas para o milênio. "Já são umas 130", afirmou Stewart.

Brilho dos cifrões

O filão do ano 2000 parece inesgotável e começa a invadir também a indústria cinematográfica. Segundo revistas especializadas, Hollywood já tem diversos roteiros de superproduções para colocar nas telas o colapso do século 21 representado pelo bug do milênio. Vários produtores estariam interessados pelo tema, principalmente depois do êxito de bilheteria alcançado pelo filme A rede (The net), estrelado por Sandra Bullock. O filme, embora não tivesse o objetivo de retratar o problema do bug do milênio especificamente, fez o trabalho de alertar as pessoas sobre o que poderá vir, num futuro próximo, ao rodar cenas em que sistemas de trânsito urbano e de tráfego aéreo, controlados por computadores, entram em colapso.

Com o pé em terra mais firme, outro grupo de empreendedores exibe brilho de cifrões nos olhos desde que o colapso do sistema de informações foi anunciado e, posteriormente, confirmado pelas grandes empresas: o das consultorias e empresas de locação de mão-de-obra especializada. "Como não existe ferramenta milagrosa para resolver o problema e os pacotes de software colocados no mercado conseguem, quando muito, identificar 30% do problema, os programadores em linguagem de computador, principalmente os versados em Cobol - o código usado em 85% dos programas empresariais instalados nas décadas de 60 e 70 (ver glossário) -, tornam-se, a cada dia, mercadoria mais preciosa", argumentou Camargo, da PCD. Isso quer dizer que, como o volume de mão-de-obra é limitado e a cada semana aumenta o número de empresas interessadas em realizar a revisão de seus sistemas de informação, o valor do homem/hora de trabalho começa a alcançar patamares estratosféricos. "Para as empresas de consultoria", acrescentou ele, "fica inclusive cada vez mais difícil estabelecer valores nos orçamentos de custos para resolver o problema de determinada companhia." "Não temos tantos profissionais familiarizados com mainframes e linguagem mais antiga de computador."

No início do ano, para citar um exemplo, podia-se encontrar profissionais para vasculhar os sistemas em busca dos campos de data que necessitassem ganhar os dígitos extras para compreender a virada do século à base de R$ 20 por hora. "Hoje ninguém trabalha por menos de R$ 40 por hora", advertiu Camargo. "Estatisticamente, quanto mais o tempo for passando", acrescentou, "mais o cenário irá se complicando."

Ximenes compartilha essa visão e, procurando evitar cifras sobre os custos da operação no BCN, estima que, se a coisa fosse feita hoje, seria infinitamente mais cara: "Há dois anos, quando começamos, havia mão-de-obra ociosa de programadores no mercado; hoje, ela é disputada a tapa".

E não só a mão-de-obra de programadores é disputada no mercado, mas a perícia de boas empresas de consultoria também começa a ganhar destaque. Em recente evento realizado em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília (2000 - The Millennium Bug), promovido pelo Instituto de Desenvolvimento de Eventos em Tecnologia da Informação (Ideti), em associação com a Sociedade dos Usuários de Informática e Telecomunicações de São Paulo (Sucesu), que reúne 50% de todos os usuários de computação de todo o país, entraram em cena várias empresas de consultoria especializadas no tema. Entre elas destacaram-se a Boucinhas & Campos, a Baan, a Computer Associates, a Consist, JDEdwards, a SAP, a CPM, a própria Data Dimensions, com a Comet Sistemas Ltda. e a PCD, todas com projetos para auxiliar empresas de virtualmente todos os ramos de atividade a superarem o problema das datas referentes ao próximo século.

"Acreditamos que o valor de mercado para correção do problema do bug, só no Brasil, chegue a US$ 14 bilhões", afirmaram executivos da Data Dimensions. No mundo, os custos desses esforços podem variar entre US$ 300 bilhões e US$ 600 bilhões, segundo o Gartner Group, uma empresa americana de pesquisa. Porém, os custos estimados para cada empresa têm sido difíceis de avaliar. Muitas companhias baseiam suas estimativas iniciais de gastos calculando o número de linhas de código de computador envolvidas. Por exemplo, a Southern New England Telecommunications, empresa da costa leste americana, estimou que gastará entre US$ 15 milhões e US$ 20 milhões este ano para revisar e testar mais de 30 milhões de linhas de código de computador, ou seja, um pouco abaixo do US$ 1 por linha cobrado no Brasil.


A diferença que dois dígitos fazem

O problema que ficou conhecido como o "bug do milênio" provém da incapacidade de os programas instalados nos computadores distinguirem o ano 2000 do ano 1900. Isso ocorre, afirmou o especialista José Roberto Faria Lima, da Infotrends, empresa de consultoria de informática, porque os campos de datas dos computadores exibem apenas dois dígitos para leitura do ano. Em vez de o computador ler "ano de mil novecentos e noventa e sete", ele reconhece apenas o "noventa e sete", em algarismos. Enquanto vivemos no século 20 e, portanto, o "mil novecentos" está subentendido, não há problema algum de identificação de datas. Com a mudança de século e, principalmente, de milênio, esse recurso acabou se tornando um transtorno para empresas brasileiras e internacionais.

Incapazes de, por si só, realizarem a simples operação de transformar o "mil novecentos e noventa e tantos" em "ano dois mil", os computadores - quando confrontados com datas com finais 00, 01, 02 e assim por diante - em vez de lerem ano 2000, 2001, 2002, entendem 1900, 1901, 1902. Essa constrangedora limitação, segundo Faria Lima, é uma herança da aurora da era da informática: "Nos anos 60 e 70", afirmou ele, "a capacidade de memória dos computadores era extremamente limitada e, para guardar espaço precioso, os programadores da época - ainda empregando a linguagem Cobol - eliminavam o 'mil novecentos' dos campos de data e mantinham apenas os dígitos da década".

Para corrigir "a economia de dígitos nos campos de data", analistas e programadores têm agora, pela frente, a gigantesca tarefa de percorrer os bancos de dados das empresas, localizar os comandos defeituosos e acrescentar os dois dígitos que faltam para o ano.

Ainda segundo Faria Lima, a dificuldade de cumprir a tarefa está no fato de que os campos de data, quando foram instalados pelos pioneiros da computação, não obedeceram a critérios padronizados e, para encontrá-los, o programador terá de buscá-los um a um. Ferramentas à disposição dos técnicos, segundo Faria Lima, têm capacidade de resolver 30% dos casos. "Os demais têm de ser realizados à unha." Mas, de acordo com Geraldo Gonçalves, gerente de negócios da Infotrends, o pior não é o trabalho de programação, mas o de teste, coordenação e implantação das mudanças. Segundo as previsões da empresa, que se uniu à empresa de consultoria Boucinhas & Campos no projeto Business 2001, é impossível o surgimento de uma "ferramenta milagrosa" que, automaticamente, realize todas as conversões a um custo baixíssimo. "Quem estiver esperando por isso", advertiu Faria Lima, "vai acabar no grupo de empresários que não resolveram o problema e, certamente, estarão colocando em risco a continuidade de seus negócios depois do ano 2000."

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