Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

No final eram apenas crianças

Batalha do Avaí, óleo de Pedro Américo: no cavalo branco, Caxias / Foto: Iconographia
Batalha do Avaí, óleo de Pedro Américo: no cavalo branco, Caxias / Foto: Iconographia

Por: HERBERT CARVALHO

Guerra do Paraguai para os brasileiros, da Tríplice Aliança, para argentinos e uruguaios. Ou da Tríplice Infâmia para os derrotados, os paraguaios, e seus simpatizantes. Controvérsias à parte, o fato é que esse foi o maior conflito armado sul-americano de todos os tempos, um acontecimento histórico sangrento que está completando 150 anos imerso em total silêncio. Nomes de ruas e de cidades brasileiras alusivas ao episódio, como Cerro Corá, Humaitá, Riachuelo e Tuiuty, há muito caíram no esquecimento quanto ao seu significado. Nos manuais de história são apresentadas como batalhas sucessivas que reduzem ao aspecto militar um confronto cujas proporções e consequências políticas e econômicas encontram apenas dois paralelos no século 19: a Guerra de Secessão, nos Estados Unidos (1861 a 1865) e os triunfos de Otto von Bismarck contra a Dinamarca, a Áustria e a França (1864 a 1870), que resultaram na unificação do Império Alemão sob a égide da Prússia.

“A Guerra do Paraguai (em verdade a Guerra contra o Paraguai) foi uma chacina em larga escala, uma hecatombe demográfica, um genocídio, sobretudo no final, com a dizimação do que restou do exército nacional, formado por crianças”, resumem Adriana Lopez e Carlos Guilherme Mota no livro História do Brasil: Uma Interpretação (Editora Senac São Paulo, 2008). Números comprovam ter sido essa a primeira guerra de extermínio dos tempos modernos: a população paraguaia, no início do conflito em torno de um milhão de habitantes, acabou reduzida a 200 mil, dos quais apenas 15 mil do sexo masculino. Destes, dois terços tinham menos de dez anos de idade. A infraestrutura do país – que dispunha de ferrovias, telégrafos, estaleiros, fábricas de papel e tecidos e uma fundição de ferro – foi totalmente destruída. A capital Assunção teve até mesmo cemitérios saqueados.

Os aliados também sofreram grandes perdas materiais e humanas ao longo de quase seis anos de guerra, de outubro de 1864, data da invasão do Uruguai pelo Brasil (o que provocou a reação do Paraguai) até março de 1870, quando caiu mortalmente ferido Francisco Solano López, o tirano sanguinário culpado por tudo, de acordo com a visão dos vencedores. Dados oficiais da época dão conta de que Brasil e Argentina amargaram cerca de 35 mil mortos cada um, e os uruguaios, 4 mil.

Se o conflito foi ou não fomentado pela Inglaterra é polêmica longe de um consenso por parte de historiadores e acadêmicos. Mas uma coisa é certa: a então potência mundial hegemônica, fornecedora de material bélico e de manufaturados para os aliados e principal compradora de seus produtos primários, foi a grande beneficiária. A dívida do Brasil com banqueiros ingleses alcançou o montante de 56 milhões de libras esterlinas, o suficiente para que um político da época resumisse: “O Paraguai ficou reduzido a mulheres e nós a mendigos”. Para o historiador Eric Hobsbawn, “a Guerra do Paraguai pode ser vista como parte da integração da bacia do rio da Prata na economia mundial da Inglaterra”.

“Ilha rodeada de terra”

Logo após sua independência, o Brasil foi à guerra contra a Argentina – que então se chamava Províncias Unidas do Rio da Prata – para tentar manter sob seu domínio o território da Banda Oriental do Rio Uruguai, anexado em 1821 por dom João VI sob a designação de Província Cisplatina. O Uruguai como nação independente foi reconhecido em 1828, sob os auspícios da Inglaterra, interessada em evitar que os dois grandes Estados sucessores dos impérios coloniais espanhol e português dominassem com exclusividade o estuário do Prata.

Ao mesmo tempo, o Paraguai firmava-se como a quarta nação soberana do Cone Sul, com duas diferenças importantes em relação às demais. A primeira geográfica, pois, desprovido de costa marítima, veio ao mundo como “uma ilha rodeada de terra” – na definição de seu principal escritor, Augusto Roa Bastos –, dependente de seus caudalosos rios para comunicar-se com o mundo. A outra resultava de uma população forjada na mestiçagem entre espanhóis e índios guaranis, a única no continente a manter em condição de igualdade tanto o idioma do colonizador quanto dos nativos. Primeiro governante do país, entre 1814 e 1840, o déspota ilustrado José Gaspar Rodríguez de Francia reforçou essas características, mantendo-o alijado das correntes migratórias e do livre-cambismo. Ao contrário de seus vizinhos, subordinados comercial e financeiramente ao imperialismo britânico, orientou a economia para a autossuficiência, baseada na agricultura e na indústria artesanal. Sua advertência ainda soa atual: “O comércio deve ser útil à nação, não apenas ao estrangeiro. Livre comércio entre o forte e o fraco é como um tubarão entre sardinhas”. Em 1840 José Gaspar faleceu ficando em seu lugar Fulgencio Yegros. Eles até se revezaram no poder do Paraguai.

Após a morte de El Supremo, título ostentado por Francia, o novo ditador vitalício que o sucede, Carlos Antonio López, pai de Solano, ensaia uma integração ao comércio mundial. Mas sofre um bloqueio econômico por parte da Argentina, então dominada por Juan Manuel de Rosas, logo substituído no poder pelo governador da província de Entre Ríos, Justo José de Urquiza. Na década de 1840, as lutas civis fratricidas eram a regra no Prata. Na Argentina, os federalistas das províncias opunham-se aos centralistas, de Buenos Aires. No Uruguai, digladiavam-se os partidos (até hoje existentes) Blanco e Colorado, representantes dos estancieiros do interior e dos comerciantes de Montevidéu, respectivamente. O Brasil, que recém superara as revoltas internas do período da Regência – entre elas a Revolução Farroupilha (1835-1845), no Rio Grande do Sul – imiscuía-se abertamente nas disputas internas dos vizinhos.

A exceção era o Paraguai, que aproveitara o isolamento para erradicar o analfabetismo e constituir um exército de 80 mil homens bem treinados, o mais poderoso da região nos anos de 1860. Além de assegurar a livre navegação pelos rios – objetivo permanente também do Brasil, que tinha através do Rio Paraguai sua principal via de comunicação com a província do Mato Grosso – o país mediterrâneo pretendia ainda definir seus limites com os gigantes que o circundavam e com os quais mantinha contenciosos fronteiriços.

Nomeado general aos 18 anos de idade, Solano López comandava as forças de seu país em apoio a Urquiza contra Rosas, obtendo finalmente reconhecimento da independência do Paraguai pela Argentina, em 1852, com 41 anos de atraso. Viajou em seguida pela Europa com a missão de contratar técnicos estrangeiros, comprar armas e munições para as Forças Armadas paraguaias, estudar questões estratégicas e se familiarizar com as organizações dos exércitos da Prússia e da França. Em Paris tornou-se fervoroso admirador de Napoleão III – de quem tentara imitar o regime jacobino-modernizador – e conheceu a jovem e bela escocesa Elisa Lynch (1833-1886), que lhe daria seis filhos e o acompanharia até sepultar seu corpo ultrajado na batalha final.

Com a morte do pai, em 1862, ele assumiu o poder aos 36 anos e enfrentou a mais grave crise diplomática e militar do intrincado tabuleiro geopolítico do Prata. Isto porque o Brasil, após obter uma declaração de neutralidade do presidente argentino Bartolomé Mitre, invadiu o Uruguai em outubro de 1864 sob o pretexto de que vidas e propriedades de brasileiros situadas naquele país se encontravam sob ameaça. Solano López enxergou na intervenção brasileira um atentado ao equilíbrio da região e resolveu agir em defesa do governo blanco, que periclitava em Montevidéu. Apreendeu em novembro o navio brasileiro Marquês de Olinda e aprisionou em Assunção, além da tripulação, o governador Carneiro de Campos, de Mato Grosso, província que assiste à ocupação de Corumbá e Coxim pelos paraguaios, cidades só recuperadas em 1867. Pela primeira e única vez na sua história, o Brasil tem tropas inimigas em seu território, que logo invadiram, também, as cidades gaúchas de São Borja e Uruguaiana.

Corpo de voluntários

O Brasil que vai à guerra, em 1865, tem dez milhões de habitantes, uma quarta constituída por negros escravos. Seu exército resumia-se a 17 mil homens concentrados no sul, organizados de acordo com o figurino medieval das tropilhas gaúchas, nas quais peões a cavalo seguem ordens do estancieiro convertido em chefe militar. Com a função de manter a ordem interna, existia a Guarda Nacional, manejada em cada estado por oligarquias locais, como até hoje ocorre com as polícias militares. Completava o quadro pouco alentador de nossas possibilidades bélicas a Marinha Imperial, com dez mil homens, o corpo armado mais experiente.

Apesar disso, confiante em que Solano López não se atreveria a correr em defesa do Uruguai, o Brasil interveio na disputa interna desse país em socorro do colorado Venâncio Flores e assim trava, na cidade uruguaia de Paissandu, prenúncio do que viria a ser mais tarde a Guerra do Paraguai. Mas o ousado ditador paraguaio não apenas decide enfrentar o Brasil como também a Argentina, quando esta nega a passagem de tropas paraguaias por seu território. Em janeiro de 1865, após penetrar no Mato Grosso, López mudou o curso de suas ações, desembarcou as tropas na província argentina de Corrientes e dali alcançou o Rio Grande do Sul, generalizando o conflito.

Sem reservas nem serviço militar obrigatório, o Império editou o decreto de criação dos Corpos de Voluntários da Pátria, no mais das vezes recrutados, apesar do nome, à força ou na base de alforria para o escravo disposto a trocar o fardo do trabalho pelo da guerra. Os cem mil homens assim mobilizados, na contramão da estratificação social então vigente, acabarão por formar um exército estruturado, que será terreno fértil para as ideias republicanas. Muito além do campo de batalha, porém, a guerra será ganha, primeiro, na arena diplomática e econômica. Para o isolamento completo do Paraguai, recorreu-se até ao suborno do caudilho argentino Urquiza, que López contava como aliado por ser um oponente interno do presidente Mitre. “O Barão de Mauá chegou a um acordo com o general Urquiza, suprindo-o dos fundos que este necessitava para seus negócios particulares”, segundo o jornal argentino “La Nación”.

O passo seguinte, após a imposição de Venâncio Flores como governante títere do Uruguai, subordinado aos interesses de Brasil e Argentina, foi a assinatura do tratado entre os três países, que deveria permanecer secreto até o final do conflito. As partes se comprometiam a lutar até a deposição do governo paraguaio, a demolir todas as suas fortificações e a repartir troféus e o botim (botina) capturado. O texto previa ainda a anexação de extensos territórios do Paraguai, o que se efetivou, de fato, reduzindo o país à estreita mesopotâmia entre os rios Paraguai e Paraná. Era tão pérfido que sua divulgação pela imprensa britânica provocou uma onda mundial de indignação contra os signatários.

Outros dois lances do Império no jogo do xadrez diplomático foram decisivos: a entrega a Mitre do comando-geral das forças aliadas, para sacramentar a participação argentina, e o pagamento de parcelas pendentes de sete modernos navios encouraçados encomendados pelo Paraguai a estaleiros europeus e que, mediante tal expediente, acabaram incorporados à Armada brasileira (as operações navais, não por acaso, foram as que selaram a derrota dos paraguaios). Na Batalha do Riachuelo, em 11 de junho de 1865, a esquadra brasileira, sob o comando do almirante Francisco Manuel Barroso, aniquilou a frota do Paraguai, cortando a comunicação fluvial do inimigo com o exterior. Mais tarde, após três anos de bombardeio, na arrancada final para Assunção, a passagem pela fortaleza de Humaitá – considerada a “Sebastopol paraguaia”, com seus 200 canhões e cadeias de ferro estendidas entre as margens do Rio Paraguai, em aparência tão inexpugnável quanto a posição russa defendida na Guerra da Crimeia (1853-1856) contra franceses e ingleses.

Em terra, a situação também se complicara para Solano López. Dois meses após Riachuelo, 5 mil paraguaios sob o comando do coronel Estigarribia são cercados em Uruguaiana pelas tropas de Manuel Luís Osório, militar liberal que faz no Exército brasileiro contraponto ao conservador Luiz Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias. A rendição se dá diante do imperador dom Pedro II, que chega ao Rio Grande do Sul acompanhado por seus dois genros, após ameaçar teatralmente abdicar se não obtivesse licença para se dirigir ao campo de operações. Os prisioneiros são vendidos como escravos ou obrigados a lutar ao lado dos aliados contra sua própria pátria.

Chacina de menores

Sobre as idiossincrasias pessoais dos governantes da época há um episódio curioso, omitido pela historiografia brasileira, mas mencionado pelo historiador paraguaio Efraím Cardozo. Segundo ele, antes da guerra, López concebeu o projeto de proclamar-se imperador e aliar-se ao Brasil pela via do matrimônio com uma das filhas de dom Pedro II, proposta efetivamente encaminhada e prontamente rechaçada pelo brasileiro. Este também se oporia às várias tentativas de mediação de países como os Estados Unidos e de rendição negociada que preservasse o poder do ditador, dando carta branca ao marido francês da princesa Isabel, Luis Filipe Maria Fernando Gastão de Orléans, o conde D’Eu, para que o caçasse até a morte, como de fato aconteceu.

Em 1866, com a luta já transferida ao território paraguaio, ocorre em Tuiuty a maior batalha de todos os tempos na América do Sul, com 35 mil aliados contra 23 mil homens de López. Ao final, 6 mil paraguaios e 3 mil brasileiros estavam mortos. Resultado inverso se daria alguns meses depois em Curupaity, não por acaso um nome exorcizado dos nossos livros: na maior catástrofe dos aliados, ali pereceram 9 mil de seus soldados, com menos de cem baixas guaranis.

Esse revés impõe uma pausa em 1867 e a luta recomeça apenas no ano seguinte, com Caxias à frente das forças da aliança no lugar de Mitre, que se retira para combater as montoneras, bandos armados que desestabilizavam seu governo. O futuro patrono do Exército brasileiro recorre então a um avanço tecnológico não facultado ao oponente: voos de balões tripulados para monitorar a movimentação inimiga antes do avanço sobre Humaitá.

Após a tomada de Assunção, em janeiro de 1869, Caxias dá a tarefa por terminada e retorna ao Brasil, como também o fazem argentinos e uruguaios, voltaram para seus países. O conde D’Eu, então, assumiu as tropas brasileiras para escrever as páginas vergonhosas daquilo que não pode mais ser chamado de guerra, pois ao lado de Solano López só restam velhos, mulheres e crianças. Estas se disfarçam com barbas postiças para travar em 16 de agosto a Batalha de Acosta Ñu: a data é hoje celebrada no Paraguai como o Dia das Crianças, em homenagem aos 3.500 infantes chacinados após seis horas de resistência diante de 20 mil soldados.

Finalmente, a 1º de março de 1870, López e seus últimos esfarrapados seguidores são cercados em Cerro Corá. Ferido pela lança do cabo José Francisco Lacerda, vulgo Chico Diabo, o paraguaio recusa a render-se, com um grito: “Morro com minha pátria”. Seu cadáver é desnudado e ultrajado. Elisa Lynch, que desempenhara durante a guerra a função de enfermeira-chefe, cava a sepultura do marido, para enterrá-lo ao lado do filho mais velho do casal, morto no mesmo dia. Aos arreganhos da soldadesca, adverte: “Cuidado, sou inglesa”.

Os ocupantes do país vencido e destroçado não oferecem qualquer ajuda para sua reconstrução, pois partem do princípio que o povo paraguaio deve expiar as culpas de sua adesão ao tirano. O peso maior recairá sobre as mulheres, forçadas à poligamia como forma de reposição das perdas demográficas. Os procedimentos para a demarcação de limites atendem às máximas pretensões territoriais do Brasil e até hoje permanecem obscuros, pois fazem parte da documentação para a qual o Itamaraty defende o sigilo eterno. A lembrança de que boa parte do atual estado do Mato Grosso do Sul foi anexada como despojo de guerra está presente, porém, na memória coletiva, expressa por Almir Sater na canção Sonhos Guaranis, cuja letra se refere aos costumes e tradições da região de fronteira “onde o Brasil foi Paraguai”.

As consequências para os vitoriosos foram distintas. Na Argentina, consolidou-se o Estado nacional, ao serem eliminados e incorporados todos os focos de oposição à república dos proprietários rurais. Para o Brasil, a principal herança do conflito foi um exército que saiu prestigiado o suficiente para derrubar a monarquia, em 1889, e daí por diante interferir, durante mais de um século, de forma autoritária na vida política do país.