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Entrevista: Adélia Prado

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ADÉLIA PRADO (1)

RESUMO: 

Na juventude a pessoa tem uma grande ilusão de poder: “Eu sou jovem, sou belo, sou forte, minhas pernas me obedecem, tenho ótima visão, reflexos perfeitos”. Você absorve esse conteúdo divino do poder, da vida eterna, etc. e vive como tal. Estou falando de um jovem comum. Não estou falando de pessoas neuróticas, mas de pessoas “normais”, “normais” entre aspas (risadas). Quando chega à Terceira Idade, a pessoa defronta-se com o limite, o corpo não lhe obedece como antes, necessita de determinados auxílios, o seu poder fica em xeque. Aí a pessoa se volta naturalmente para aquilo que de fato é o poder, a força, a vida verdadeira, e isso é sempre de ordem espiritual. É aí que muitas pessoas se reencontram e voltam à sua religião de juventude, realmente se convertem a uma piedade verdadeira. Essa maior proximidade da morte e das doenças tem essa vantagem. Quando não tem, a gente vira um velho patético.

REVISTA A TERCEIRA IDADE – Como teve início sua inclinação para a literatura e como ela foi se desenvolvendo? O que fez com que você se voltasse para a literatura?
ADÉLIA PRADO
— Eu não me voltei para a literatura, me descobri nela. Quando descobri a vocação da poesia, já estava ali, nesse lugar literário mesmo. Antes de entrar na literatura você é poeta. Agora, à medida que você escreve, você já entra aí nesse lugar literário. Toda a vida li muito, desde a escola primária, desde que aprendi a ler.

REVISTA — Quais foram seus autores prediletos na infância e na adolescência?
ADÉLIA
— Na infância, eu gostava demais de Olavo Bilac. Eu me lembro muito de estudar Monteiro Lobato e Olavo Bilac na escola. Gostava demais desses autores. E depois alguma outra coisa, pouca, de Cecília Meirelles.

REVISTA – Quais são os temas preferidos enquanto objetos de atenção e reflexão em seu trabalho literário?
ADÉLIA
– Não tenho nem proponho temas. Minha atenção imediata é o próprio cotidiano, o que me afeta primeiro e já traz consigo as perguntas básicas que fazem parte da vida e, portanto, da literatura: o quê, o como e o porquê, o que sou, de onde vim, para onde vou.

REVISTA — O que você acha da literatura brasileira hoje, como você a vê, quais são as perspectivas?
ADÉLIA
— Sempre achei a nossa literatura vigorosa. Ela é das coisas que nós temos de melhor, temos autores de prêmio Nobel. Para citar apenas três geniais, três grandes: Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Esses autores são absolutamente universais, e atrás destes temos uma série de outros excelentes autores. Então uma das coisas que nós temos de muito boa qualidade é a literatura. Eu acho que a literatura e a música são as mais fortes expressões artísticas no Brasil.

REVISTA – Você recentemente esteve no Sesc. Como foi essa experiência aqui no Sesc de São Paulo?
ADÉLIA
— Nossa, foi maravilhosa! Eu nunca vi uma coisa assim. Fiquei comovida, até falei com o pessoal que as escolas precisam ver esse carinho que uma entidade não-escolar dedica à literatura. Eu acho que é um trabalho de divulgação literária que merece aplausos mesmo, aplausos de pé. Fiquei encantada com o carinho e o zelo com que o autor é tratado no Sesc, uma beleza mesmo, achei maravilhoso. Gostei muito do recital que apresentei no Sesc Vila Mariana. Sempre que há pessoas, entidades ou grupos que querem um recital, eu vou prazerosamente, porque é muito bom falar os poemas. Tem ainda o grupo de música, a música é perfeita como vinheta do texto, então é uma alegria só, uma festa. A exposição de pôsteres dos meus poemas no Sesc Carmo e nas praças de São Paulo, foi um acontecimento bom demais. Eu levei um susto, bom demais ver aquilo no meio da selva de pedra, aqueles pedestais com os poemas. Fiquei dando volta de carro olhando... as minhas fotos ficaram bonitas também... até fiquei bonitinha!(risos).

REVISTA — Você teve alguma experiência assim em outros países?
ADÉLIA
– Sim, na Alemanha e nos Estados Unidos. Eu fiz leitura de poemas, foi uma coisa muito boa também. Fiz com outros poetas e fiz sozinha em Nova York, em algumas universidades lá. Foi muito bom, foi uma festa também. Eu acho sempre uma festa falar poesia.

REVISTA – Quais são as suas impressões sobre o leitor brasileiro da atualidade? Ele lê mais? Como incentivar o gosto pela leitura?
ADÉLIA
– Temos poucos leitores relativamente à quantidade de população. A meu ver, por causa do preço alto do livro, inalcançável para a maioria, e também porque as escolas, com as exceções de sempre, consideram a literatura uma disciplina menor. Incentivamos a leitura oferecendo livros de qualidade nas bibliotecas, renovando currículos e barateando o livro, procedimentos que incluem a ação dos governos, das escolas e dos pedagogos.

REVISTA – A presença da mulher é cada vez mais expressiva na produção literária. É possível definir alguma característica própria da literatura feita por mulheres, sem cair em uma atitude discriminatória e reducionista ao se falar de uma “literatura feminina”? Há efetivamente um “olhar feminino”?
ADÉLIA
– A maior presença da mulher na literatura é de natureza cultural e política. Aprendemos a ler como os homens, estamos frequentando universidades, temos maior acesso aos meios de divulgação e o preconceito diminuiu consideravelmente em relação à mulher escritora. Eu acho que seja um preconceito até nosso mesmo, um preconceito contra nós mesmas, talvez uma certa vergonha, uma certa timidez de ocupar esse espaço. Há conquistas formidáveis das mulheres no campo da política, da vida social e cultural. Então a mulher está tendo espaço de expressão. Eu acho que é isso que está acontecendo na literatura e também em outros campos. Por exemplo, as profissões liberais foram invadidas por mulheres. Numa faculdade, hoje, a quantidade de moças é muito maior do que a de homens. Em determinados departamentos, a maioria absoluta é de mulheres. Então é evidente que isso iria transbordar para o espaço literário, para a pintura, para a música, compositoras, autoras. Necessariamente ia chegar aí, faz parte desse espraiam ento da expressão feminina, da vida feminina. Claro que a literatura feita por mulheres carrega o olhar feminino por absoluta incapacidade de ser de outra forma. Não somos homens, nossa experiência do mundo é feminina, nosso texto se singulariza pelo registro dessa experiência em sua casuística. Quanto ao resto é literatura, graças a Deus. Senão caímos mesmo no reducionismo. Isso vale também para homens que escrevem. Acredito, no entanto, que escritores geniais possam transpor essa circunstância e navegar com êxito pelos dois gêneros.

REVISTA – Além das peculiaridades de gênero, há também uma marca distintiva na produção literária do autor jovem e do autor idoso?
ADÉLIA
— O autor jovem não tem a experiência do autor velho. Então o que ele vai falar? Ele vai falar da experiência dele, é o rés da experiência dele, só aquilo que ele conhece. Você vê a obra de um autor na juventude e na maturidade. Então há um aprofundamento de níveis. Por exemplo, se ele falava do amor, o amor na juventude, na adolescência é uma coisa; na maturidade é outra e na velhice é outra ainda. Há um aprofundamento, há níveis mais profundos de experiência. Se o autor for bom, acho que varia apenas na profundidade e não na qualidade dos textos. Mas se acaba falando uma coisa só e certos temas também aparecem com mais recorrência. O tema da morte, por exemplo, costuma aparecer mais na maturidade, ainda que para os poetas seja uma presença constante. Assim também acontece com o tema da doença e da debilidade da velhice; nos verdadeiros poetas esses temas costumam estar presentes desde sempre, porque são temas fundamentais: a morte, o amor, as paixões humanas, tanto as boas quanto as más. Há um mistério tão grande na criação artística que está fadada ao fracasso qualquer tentativa de enquadramento absoluto de seus cânones. É livre como o Espírito que a move. maturidade. Então há um aprofundamento de níveis. Por exemplo, se ele falava do amor, o amor na juventude, na adolescência é uma coisa; na maturidade é outra e na velhice é outra ainda. Há um aprofundamento, há níveis mais profundos de experiência. Se o autor for bom, acho que varia apenas na profundidade e não na qualidade dos textos. Mas se acaba falando uma coisa só e certos temas também aparecem com mais recorrência. O tema da morte, por exemplo, costuma aparecer mais na maturidade, ainda que para os poetas seja uma presença constante. Assim também acontece com o tema da doença e da debilidade da velhice; nos verdadeiros poetas esses temas costumam estar presentes desde sempre, porque são temas fundamentais: a morte, o amor, as paixões humanas, tanto as boas quanto as más. Há um mistério tão grande na criação artística que está fadada ao fracasso qualquer tentativa de enquadramento absoluto de seus cânones. É livre como o Espírito que a move. oferecendo dificuldades, então é difícil lidar com isso. Envelhecer é doloroso. Idoso é como criança, precisa mais que programas de lazer. Precisa de atenção real, o que, sem complicação e sociologia equivocada, tem um só nome: amor.

REVISTA — Você vê perdas e ganhos no processo de envelhecimento?
ADÉLIA
— É claro. As perdas são muito mais de ordem física e também em grande parte psicológicas, porque você tem uma luta muito grande para poder aceitar a nova realidade. Então realmente é uma luta do ego. Mas também há ganhos espirituais maravilhosos. E existem algumas regalias, você começa a ter lugar no ônibus primeiro, na hora da vacinação eles lhe passam na frente (risadas), gentilezas assim. É como gentileza de garçom, sabe? Mas funciona, é bom.

REVISTA — No Brasil, para a maioria da população é difícil envelhecer?
ADÉLIA
– É uma tristeza. É triste demais, porque nós somos um país sem essa proteção social. Em matéria de saúde, enfim, recursos para que o velho tenha uma velhice digna, amparada e feliz. O velho da cidade piorou. Quanto mais pobre, pior. É uma miséria mesmo a velhice nas grandes cidades. Em cidades pequenas, a maioria dos velhos vivem com as suas famílias. Na zona rural, melhor ainda, pelo menos a natureza não o exclui, ele pode olhar o céu, pode andar no mato, se ele der conta de andar. Em todo caso, eu acho a velhice fora dos grandes centros mais humana, melhor. Mas, como um todo, é preciso ainda muita coisa para a proteção do idoso.

REVISTA — Você sabe muito bem que a velhice é cercada de muitos preconceitos, principalmente em relação a algumas áreas como a sexualidade, a vida afetiva. Você é otimista em
relação a uma vida satisfatória, plena do ponto de vista afetivo na velhice?
ADÉLIA
— Eu sou realista, pessimista não sou não. Num último encontro sobre Terceira Idade até chegaram a falar que eu era pessimista, mas acho que não era pessimismo não. Eu fico muito aflita com certos comportamentos de entidades que cuidam de velhos, é como se estivessem enchendo uma bola de gás: “Olha, bola para frente, vamos dançar, vamos nadar, vamos isso, vamos aquilo”. É uma espécie de injeção de ânimo que, às vezes, peca pelo artificial. Eu acho que o velho precisa ser educado e ajudado no sentido primeiro de aceitar a própria condição, isto é, perceber os limites e não alimentar fantasias para transpô-los. Então tem muita coisa que eu acho perfumaria e que o mais necessário mesmo é uma assistência de ordem espiritual, porque muitos velhos apresentam uma grande debilidade física, uma grande solidão, sentem-se excluídos. Às vezes, as pessoas nem percebem que estão excluindo o velho, mas excluem. Então é só na ordem espiritual que ele terá esse alento verdadeiro. A gente vai em excursão para velho, vai no baile, nisso e aquilo, mas volta sempre ao seu lugar íntimo. É lá é que você tem que estar alimentado e ter forças para a Terceira Idade. O resto é prazeroso, é bom, mas se não tiver essa coisa interna isso tudo vira fogo de palha.

REVISTA – Há diferenças no modo como homens e as mulheres envelhecem?
ADÉLIA
– Aceita-se melhor um velho que uma velha. Envelhecemos e ficamos mais feios, lutando sem paz contra os estragos do tempo. O nosso aclamado fôlego de sete gatos costuma produzir dissonâncias. Para homens e mulheres é necessária a aceitação da velhice, o que é mais difícil para as mulheres. Mas é possível envelhecer bem, com beleza e paz.

REVISTA — Na sua opinião, o sentimento religioso se exacerba, se intensifica na velhice?
ADÉLIA
— Na juventude a pessoa tem uma grande ilusão de poder: “Eu sou jovem, sou belo, sou forte, minhas pernas me obedecem, tenho ótima visão, reflexos perfeitos”. Você absorve esse conteúdo divino do poder, da vida eterna, etc. e vive como tal. Estou falando de um jovem comum. Não estou falando de pessoas neuróticas, mas de pessoas “normais”, “normais” entre aspas (risadas). Quando chega à Terceira Idade, a pessoa defronta-se com o limite, o corpo não lhe obedece como antes, necessita de determinados auxílios, o seu poder fica em xeque. Aí a pessoa se volta naturalmente para aquilo que de fato é o poder, a força, a vida verdadeira, e isso é sempre de ordem espiritual. É aí que muitas pessoas se reencontram e voltam à sua religião de juventude, realmente se convertem a uma piedade verdadeira. Essa maior proximidade da morte e das doenças tem essa vantagem. Quando não tem, a gente vira um velho patético.

REVISTA — A morte ainda é um assunto tabu? A maioria das pessoas não gostam de falar sobre isso.
ADÉLIA
– A morte é um assunto tabu. Imagina! Nós somos “eternos” (ironiza), como é que vamos falar de morte (ironiza)? Todo mundo morre. Para enfrentar isso, a pessoa realmente precisa de uma parada, de silêncio interior, de suplicar forças para administrar o problema da morte. E para mim só tem um caminho. Não é a ciência, porque a ciência prolonga a vida, dá mortes menos dolorosas, etc., mas aquilo que dá sentido à minha vida e, portanto, à minha morte é de ordem espiritual, é religioso. A morte estando próxima, a religiosidade costuma renascer em muitas pessoas e constituir-se no que deveria ter sido a vida toda: alento, amparo na caminhada, motivo de esperança e alegria.

REVISTA — Como você vê o relacionamento das gerações ? Alguns falam em conflitos de gerações. Será possível aproximar gerações?
ADÉLIA
— Eu acho que sim. Aproximar gerações é exatamente trabalhar no sentido de que os preconceitos sejam extirpados da sociedade, o preconceito contra o velho e o preconceito contra o jovem etc. À medida em que você pessoalmente trabalha (começando dentro de casa) para eliminar esses preconceitos, estabelece um terreno de comunicação verdadeiro, começa a ter uma audição real do outro. Quando um velho fala, eu não fico pensando que ele é velho, mas fico lembrando que ele é uma pessoa. Quando o jovem faz lá a sua birra, é uma pessoa fazendo birra. Então você tem um outro olhar para essas pessoas e essas situações. Conflito de gerações não é necessariamente entre jovens e velhos, a meu ver diz respeito mais a pais e filhos. O distanciamento entre jovens e velhos – no sentido em que estamos considerando aqui – acontece mais por preconceito de ambos e ausência de uma educação que inclua moços e anciãos como necessários à harmonia do convívio humano. Neste espírito, é mais que possível aproximar as gerações. Paciência, respeito, cooperação fazem parte da tarefa. Minha convivência com jovens é prazerosa e estimulante.

REVISTA – Em uma entrevista concedida ao jornal O Estado de Minas, você disse o seguinte: “Enquanto cidadã sou participante, sofro e ajo no contexto em que todos os brasileiros estão”. Como você vê a questão da cidadania?
ADÉLIA
— Cidadania é direito de escolha. Cidadania para mim supõe, em primeiro lugar, democracia e liberdade. Eu só posso falar de cidadão como a pessoa que conhece direitos e deveres e tem a liberdade de praticá-los. Isso é que é cidadania. Você vai falar de cidadania para uma pessoa, por exemplo, que não tem dentes, que não tem comida, não tem saúde, que está desesperada trabalhando de seis da manhã às nove da noite? Que cidadania é essa? Então a cidadania passa por conquistas políticas de direitos iguais e deveres iguais. Isso é democracia. Sem isso, cidadania é discurso de político oco.

REVISTA – O mundo inteiro está vivendo uma situação de muito medo em decorrência dos atentados terroristas nos Estados Unidos. Como você está vendo essa conjuntura internacional, como as pessoas estão se sentindo e como você está se sentindo frente a essa onda de violência política?
ADÉLIA
— Eu posso falar de mim. Acho que de modo geral as pessoas estão temerosas. Da minha parte, eu acho que o que aconteceu é realmente uma falência de valores fundamentais de ordem espiritual e religiosa que levou o Ocidente, de modo especial a América do Norte, a um esquecimento desses valores no trato com outros povos e países. Vejo como um desespero que toma conta das pessoas com medo de serem reconhecidas na sua identidade, religiosa ou política. Tem muito mais coisas aí atrás, tem filosofia, tem o aspecto religioso, tem o aspecto político, mas para mim qualquer crise tem um núcleo de ordem espiritual que é preciso ficar atento a ele, senão voltamos de novo à barbárie: você me fura um olho, eu furo o seu, você me dá um tapa, eu lhe dou outro. Então isso não é resolvido no campo das armas e da diplomacia apenas.

(1) Poetisa