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Construção da memória

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti


As informações com as quais nos deparamos diariamente são cada vez mais velozes, fragmentadas e, em alguns casos, em maior quantidade e variedade do que poderíamos assimilar. Como se constrói a memória em meio a esse turbilhão de informações? Com tantas imagens, sonoridades e estímulos, o que fica guardado? Analisam o assunto o jornalista e cineasta Evaldo Mocarzel e o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) Franklin Leopoldo e Silva.

 

O sentido da memória
por Franklin Leopoldo e Silva

Um dos temas mais discutidos na época em que a psicologia se estava constituindo como ciência era a relação entre o que percebemos e o que lembramos. Uma das teses que então circulavam consistia na afirmação de que a lembrança se forma a partir do enfraquecimento das percepções, o que equivale a dizer que o passado não é mais do que o presente tornado menos nítido. Para a confirmação dessa hipótese contribuía a diferença, que todos são capazes de notar, entre a clareza de uma percepção atual e o caráter relativamente vago da lembrança, que parece tender para o esquecimento com a passagem do tempo. Podemos pensar numa analogia com a foto, que vai perdendo a nitidez da imagem à medida que envelhece. Isso concorda com certa ideia que se faz do passado como desaparecimento inevitável de tudo que vivemos.

Essa concepção da memória encontrava, no entanto, alguns obstáculos para se impor inteiramente, e a principal objeção era relativa à função da memória: por que o ser humano traria consigo algo que estaria destinado ao desaparecimento? A finalidade do tempo seria então unicamente fazer com que tudo que vivemos viesse a deixar de existir? Foi na tentativa de encontrar algum sentido para a memória que se começou a pensar que a lembrança estaria conectada com a percepção do presente, de modo que, incidindo sobre o que vemos e sentimos, contribui para entendermos melhor as situações e nos posicionarmos de forma mais eficaz perante o mundo. A lembrança, longe de ser inútil, atuaria como complemento da percepção, sendo, portanto, essencial à vida.

De fato, muitas vezes, diante de situações complexas e difíceis, tentamos nos lembrar de coisas e acontecimentos passados que poderiam nos ajudar a enfrentar o presente. Mas, para que isso ocorra, é preciso que as lembranças permaneçam em nós, caso contrário não poderíamos voltar a elas e fazer com que elas retornassem ao presente. Assim, seria apenas aparente o desaparecimento das lembranças; mais adequado seria dizer que elas permanecem ocultas e fora do campo de nossa atenção, até que necessitemos delas. Não haveria, portanto, esquecimento definitivo e tudo que percebemos e vivemos continuaria existindo em alguma parte de nós. Principalmente aquilo que mais de perto nos tocou e que mais impressionou a nossa consciência, de modo positivo ou negativo, alegrias e tristezas, por exemplo. Nossa memória se constrói à medida que vamos assumindo nossa existência, produzindo a nossa personalidade.

No entanto, essa passagem ao passado e esse retorno ao presente podem se complicar devido ao ritmo de nossa vida, isto é, devido à velocidade e à desordem de nossas percepções, principalmente num mundo excessivamente povoado por imagens de vários tipos, como é aquele em que vivemos atualmente. Todos concordam que a quantidade e a variedade das informações que nos afetam é maior do que poderíamos assimilar. Por vezes nos sentimos perdidos e impossibilitados de controlar tudo que vem preencher a nossa consciência. Desordem e fragmentação que derivam do excesso de estímulos a que estamos submetidos. As imagens e as informações que deveriam nos conduzir acabam por nos desorientar.

Ora, se admitimos que haveria conexão entre perceber e lembrar, o acúmulo de percepções e lembranças deve provocar efeito negativo na articulação entre passado e presente. Daí a estratégia de que naturalmente nos valemos: esquecer rapidamente a maior parte daquilo que percebemos para evitar a acumulação desordenada de informações supérfluas. Mas, se é fato que as lembranças permanecem, muito daquilo que gostaríamos de apagar acaba por interferir em nosso pensamento e em nosso comportamento, provocando situações confusas nas quais não conseguimos discernir com razoável clareza o que devemos fazer, pois não temos elementos adequados para saber como agir. Esse fenômeno, frequente em nossa vida cotidiana, pode chegar em alguns casos a níveis insuportáveis, afetando patologicamente a capacidade de adaptação da pessoa às situações que deve viver.

A causa de tudo isso é o caráter desconexo da imagem do mundo que somos levados a formar, consequência da quantidade e da fragmentação das informações que deveriam alimentar essa imagem. Como a memória está integrada à nossa vida como elemento essencial, o déficit na construção da memória influencia decisivamente a construção de nós mesmos, isto é, o grau de coerência do nosso modo de viver. Por isso é que se pode dizer que o sujeito moderno é fragmentado, sua personalidade é difusa e sua identidade está comprometida pela dificuldade em situar-se diante do mundo e perante si mesmo. Com efeito, seja em termos de história pessoal, seja no plano da história geral, é o passado que fornece parâmetros de orientação: cada um de nós e a própria humanidade depende da memória na formação da consciência do presente. Se o tempo presente nos ofusca pelo seu excesso, temos dificuldade em nele inserir a parte de passado que deveria ponderar nossa conduta. Tal dificuldade afeta profundamente nossa capacidade de julgar, isto é, de formular juízos minimamente fundamentados, sobretudo na esfera ético-política.

Isso também nos ajuda a compreender por que damos cada vez menos valor ao passado e padecemos de uma verdadeira obsessão pelo que nos é dado viver imediatamente no instante presente, à revelia tanto do passado quanto do futuro. Essa fixação nos faz esquecer que somos criaturas inscritas no tempo, pelo qual transitamos entre o nascimento e a morte. A incompreensão do passado nos faz ignorar o movimento da vida, já que o presente nos domina por uma espécie de fascínio, sem que tampouco o compreendamos e possamos distinguir em sua multiplicidade quase caótica aquilo que verdadeiramente poderia aprimorar a qualidade de vida material e espiritual.

Pode-se dizer que o indivíduo contemporâneo perdeu a possibilidade de alimentar expectativas devido ao excesso de perspectivas e à impossibilidade de julgar criteriosamente qual deveria ser a sua escolha. Viver o tempo compreende três atitudes correspondentes às dimensões temporais: lembrar o passado para iluminar o presente; perceber o presente; cultivar expectativas de futuro a partir da compreensão do tempo presente. Quando tal articulação se torna impossível, o indivíduo tende a viver um presente estendido e falsamente povoado por oportunidades ilusórias. A memória torna-se um instrumento supérfluo porque já nada pode oferecer de significativo para a formação da personalidade. Ao perder sua história, o indivíduo renuncia à sua singularidade e passa a existir no anonimato da sociedade de massa.

Diante desse quadro, seria ainda possível pensar na construção da memória para além de um armazenamento de informações? Seria preciso recuperar não apenas a memória dos fatos, mas também as significações acopladas a eles, pois são elas que tornam humano o mundo em que se vive. O exercício da memória é o modo pelo qual nos tornamos presentes a nós mesmos e superamos o presente instantâneo que é próprio das coisas.  


“Cada um de nós e a própria humanidade depende da memória na formação da consciência do presente. Se o tempo presente nos ofusca pelo seu excesso, temos dificuldade em nele inserir a parte de passado que deveria ponderar nossa conduta”

Franklin Leopoldo e Silva é professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor, entre outros, de O Conhecimento de Si (Casa do Saber/Casa da Palavra, 2011) e Felicidade: dos Filósofos Pré-socráticos aos Contemporâneos (Claridade, 2007)

 


Excesso de informações
por Evaldo Mocarzel


Na  metade dos anos 1960, em rara entrevista concedida à televisão francesa, o grande cineasta Robert Bresson, autor de filmes memoráveis como Diário de um Padre, Um Condenado à Morte Escapou, Pickpocket, A Grande Testemunha, Mouchette e O Diabo Provavelmente, entre outras obras-primas, comentou que os meios de comunicação de massa eram “uma escola de desatenção”. Nesses novos tempos digitais, a constatação de Bresson foi exacerbada à milésima potência em meio à velocidade das informações que faíscam na web.

É importante ressaltar que a intenção deste artigo não é tecer uma visão conservadora e até mesmo reacionária da internet. Muito pelo contrário. As novas tecnologias digitais democratizaram o acesso às informações, e a rede cibernética que envolve o planeta é uma babel fascinante em que praticamente tudo pode ser compartilhado: músicas, filmes, fotos, livros, documentos, enfim, uma cultura fervilhante agora disponibilizada em nossos computadores.

No universo do cinema, as facilidades, a leveza e o minimalismo das câmeras digitais cada vez mais diminutas, mas filmando com impressionante qualidade, além dos programas de edição de som e imagem; tudo isso vem promovendo uma revolução estética na linguagem audiovisual, como aconteceu com o advento do som e das câmeras Arriflex 16 mm e dos gravadores Nagra em décadas passadas. Como arte industrial, o cinema não pode prescindir de inovações tecnológicas para respaldar as suas revoluções formais.

O digital, na verdade, é uma revolução de costumes na sociedade contemporânea, em que todos se filmam, se editam e postam em seus blogs e nas redes sociais. Sem sombra de dúvida, o poder do discurso audiovisual foi democratizado e não pertence mais a realizadores da classe média e das elites, bem-intencionados ou não.

Mas como fica a nossa memória nesses tempos de imagens e sonoridades tão velozes e fragmentadas?

Em recente palestra na Escola de Comunicação e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP), que fez parte da série de conferências Telas à Parte – Besides the Screen, o pesquisador Sean Cubitt, da Universidade de Londres, ressaltou que a própria tecnologia precisava ser libertada do uso por vezes equivocado que os seres humanos fazem dela.

O cinema, por exemplo, foi uma nova tecnologia criada no final do século 19, fruto do casamento da lanterna mágica com a câmera cronofotográfica, batizada de cinematógrafo – a invenção dos irmãos Lumière. Mais do que uma mera curiosidade ilusionista em feiras de variedades, a chamada sétima arte trazia na penumbra de suas projeções pré-hipnóticas os mistérios da mente humana, nossa psique, o inconsciente, tendo despontado em período próximo ao surgimento da psicanálise.

A tecnologia é uma espécie de ponta de um iceberg histórico das buscas humanas, das aventuras humanas, artísticas e científicas, que pode ser utilizada de maneira humanista, profunda, frívola ou até mesmo bélica, nefasta e letal. Fico me perguntando: e o digital? O que essas novas tecnologias guardam por trás de seus pixels sempre tão acelerados? As sinapses dos nossos neurônios? Os genomas dos nossos cromossomos? Como pensar o digital filosoficamente além do mercantilismo publicitário da mídia e da futilidade das redes sociais?

Um dos grandes males da sociedade do espetáculo contemporânea é o excesso de informação. A mente humana não é uma máquina e a nossa memória precisa de um tempo mínimo de decantação, de fruição, para degustar, digerir e armazenar informações que precisam ser “experienciadas” e que vão ditar novos rumos para a nossa vida.

Um dos sintomas, ou melhor, um dos mais evidentes efeitos colaterais para toda essa avalanche de informações é a falta de memória generalizada. As pessoas, de todas as idades, estão sempre derrapando nas próprias citações e referências porque não se permitem um tempo de degustação mínima para as informações que procuram em meio ao turbilhão de lixo cultural que infesta a internet, de maneira geral, principalmente proveniente desse culto de celebridades que se tornou outro mal contemporâneo para a vida das pessoas, sempre maquiado de “inofensivas” frivolidades.

Guy Debord, o criador dessa expressão hoje tão falada nos quatro cantos do planeta, “sociedade do espetáculo”, apontava a “alienação” como principal consequência desse processo, ou seja, deixamos de viver as nossas inquietações mais profundas para sublimá-las no consumismo publicitário exaltado de maneira constrangedora por atores, atrizes e celebridades sempre tão simpáticos e fúteis, mas convictos de que estão lutando heroicamente pela própria sobrevivência. É interessante comentar que, no caso de atores e atrizes, a sua grande obra é a própria imagem, seu principal legado.

Para Guy Debord, a imagem é o oposto da vida. Hoje em dia não conseguimos mais diferenciar ao certo o que é “real” em meio a toda essa virtualidade que nos confunde e nos sufoca, e que vem banindo a força presencial das relações humanas. O olho no olho está sendo trocado pela comunicação rasa e fragmentada com a qual as pessoas se relacionam com permanente sofreguidão através de próteses tecnológicas como seus smartphones. E quase sempre de maneira muito mal-educada em público. Um vício, uma obsessão contemporânea. Ninguém consegue ficar desconectado da internet por um período mais prolongado. Por vezes, embora coabitando um mesmo ambiente, é muito mais fácil se comunicar com uma pessoa trocando mensagens de texto ou através das redes sociais do que lhe dirigindo a palavra. Não é à toa que o teatro contemporâneo esteja construindo tantas modalidades de “experiências” diferenciadas para os espectadores justamente para reforçar a potência da presença em uma linguagem que prima como arte do encontro. 

Carente de uma vivência “experiencial” mais profunda que nos faça degustar determinada informação (saber e sabor são ` siameses), nossa memória enfrenta recorrentes surtos de apagões, similares àquele episódio constrangedor da seleção brasileira contra a Alemanha na Copa do Mundo, em que nosso time teve um lapso de cerca de dez minutos e deu no que deu.

Em décadas passadas, outro grande nome do cinema, Federico Fellini, também apontava para o perigo da banalização das imagens, ressaltando que os meteóricos planos televisivos só faziam cócegas nos olhos dos espectadores. Para que um quadro permaneça de maneira indelével na nossa memória, é preciso um mínimo de contemplação, pois, como sabemos, determinadas imagens valem mais que milhares de palavras.

Em tempos digitais, nossa memória virou uma espécie de colcha de retalhos mal alinhavados, que quase sempre não chegam a esboçar a plenitude das narrativas dos próprios sons, imagens, cheiros, gostos, enfim, dos próprios sentidos.

Antídoto: selecionar criteriosamente o que se pesquisa. Dar tempo ao tempo para que as informações importantes possam decantar nas nossas sinapses, que precisam de repetições, de releituras, para que o conhecimento consiga se capilarizar e se enraizar na nossa mente. Permitir-se experiências mais densas e profundas na contramão do ritmo acelerado desse mundo cibernético em que se transformou a sociedade contemporânea. Também separar o joio do trigo, imunizando-se da cretinice arrivista, publicitária, autopromocional e cabotina de tantos “famosos” lutando por seus 30 segundos de celebridade.

A verdadeira memória da História, infelizmente não mais escrita com “H” maiúsculo, está muito além da espetacularização midiática, que, no fundo, tenta esconder a amnésia crônica do mundo em que vivemos.


“Em tempos digitais, nossa memória virou uma espécie de colcha de retalhos mal alinhavados, que quase sempre não chegam a esboçar a plenitude das narrativas dos próprios sons, imagens, cheiros, gostos, enfim, dos próprios sentidos”


Evaldo Mocarzel é cineasta e jornalista, dirigiu documentários como Cuba Libre, lançado neste ano,
À Margem da Imagem (2003), Do Luto à Luta (2005), entre outros