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Depoimento: Um resgate histórico da gerontologia e do trabalho social com idosos no Brasil

Fotos: Eron Silva / Nilton Silva
Fotos: Eron Silva / Nilton Silva

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MARIA JOSÉ LIMA BARROSO (1)
NEUSA mendes GUEDES (2)
MARCELO ANTONIO SALGADO (3)

 

INTRODUÇÃO

O resgate histórico da Gerontologia no Brasil e do trabalho social com pessoas idosas é algo sempre oportuno. Por isso, entrevistamos três gerontólogos pioneiros na área. Esperamos que o relato de suas vivências profissionais possam incrementar a formação dos novos especialistas e estimular novos profissionais a ingressarem na Gerontologia, área em franco desenvolvimento e de promissoras expectativas de mercado de trabalho, em decorrência do expressivo aumento da população idosa.

REVISTA:– O que influenciou sua decisão de trabalhar com a Terceira Idade? Quando e como começou esse trabalho?
MARIA BARROSO
- Considero importante resgatar a memória de fatos ocorridos na minha infância. Com três anos acompanhava D. Manoel da Silva Gomes a entidades religiosas. Gostava muito do Colégio da Imaculada Conceição em razão do Dispensário dos Pobres da Irmã Marta. Participava distribuindo uma caixinha de fósforo para as idosas, complementando os saquinhos de mantimentos quinzenais, a cesta básica da época. Ajudar me fazia muito bem, e com os afagos generosos recebidos também.

Talvez este tenha sido o despertar do meu trabalho com a Terceira Idade. Penso que ficou impregnado em mim a fragilidade, a mansidão, os gestos de gratidão pelo pouco recebido, numa incontestável demonstração de gratidão pelas ofertas quinzenais.

Diversos idosos da rua onde eu morava, com quem gostava muito de conversar, atraíam-me pela distinção e carinho. Despertavam em mim uma atenção especial os pedintes de porta, criando amizade, respeito e dever de partilha. Até hoje permanecem em minha retina e no meu coração os idosos da minha infância. Rezo continuamente por eles, pelo carinho que tiveram comigo e por serem anjos bons e protetores. Essas lembranças tão nítidas talvez tenham sido o começo de minha forte ligação com a Terceira Idade.

Na década de 70, mais precisamente nos idos de 1975, como servidora da Previdência Social perpassava-me uma grande preocupação com a falta de documentação dos idosos que reivindicavam a Renda Mensal Vitalícia. Por outro lado, as famílias se julgavam com todo direito ao benefício previdenciário. Começamos a trabalhar mais diretamente com a clientela idosa e seus familiares na tentativa de repassar a filosofia e os objetivos previdenciários, pois não entendiam que o benefício era para o atendimento às necessidades dos mesmos e não da família. Ainda hoje lutamos contra o desvirtuamento da aposentadoria.

NEUSA GUEDES - Na função de coordenadora do Serviço Social da Secretaria de Bem Estar do Instituto Nacional de Previdência Social do Estado de Santa Catarina, era minha atribuição orientar tecnicamente as ordens de serviço provenientes da administração central. Em 1975 recebi uma dessas ordens de serviço que tratava de um programa de atendimento direto e outro indireto a idosos. Direto através da formação de grupos de convivência, indireto através de convênios com instituições de internação asilar.

Em cumprimento à determinação, o Centro de Serviço Social de Florianópolis deu início à formação de um grupo de idosos. Os profissionais de Serviço Social no desenvolvimento de suas ações contavam com uma “ajuda supletiva”, permitindo a concessão de próteses e órtoses aos idosos que delas precisassem. Possibilitava ainda à administração do programa adquirir o material necessário a trabalhos manuais e lanche para os idosos. Desta forma, iniciou-se a assistência direta em Florianópolis. A assistência indireta era bastante complexa nas exigências. Para exemplificar, recomendava a existência de profissionais especializados na instituição conveniada. Todavia esses profissionais eram inexistentes, ou eram em número muito pequeno em nosso Estado, como os terapeutas ocupacionais e os fisioterapeutas. Talvez por essa dificuldade, acrescida da resposta que recebi dos dirigentes de uma instituição que diziam não acreditar em trabalho técnico junto a idosos, busquei implementar a ordem de serviço que tratava da atenção às Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais.

Entrementes, fui convocada para uma reunião no Rio de Janeiro que trataria da questão social da velhice no Brasil. Nessa oportunidade, através de Marcelo Antônio Salgado, tomei conhecimento da preocupação com o envelhecimento da população brasileira, e das consequências que poderiam ocorrer caso o país não tomasse providências.

A partir desse momento senti-me envolvida e ligada à questão do idoso e responsável pelo que viesse a ocorrer. De volta a seus Estados, os representantes ficaram responsáveis por deflagrar ações que em trinta dias demonstrassem o retrato dos Estados brasileiros quanto a situação dos idosos.

MARCELO SALGADO – Desde a infância sempre tive um carinho muito especial e uma curiosidade particular com referência a pessoas idosas. Como não tive oportunidade de conviver com velhos na minha família, particularmente com avós, em toda a minha infância praticamente adotei alguns idosos que eram avós de crianças amigas com os quais passava um longo tempo, ouvindo suas histórias. Esse comportamento me acompanhou ao longo de quase toda a minha juventude. Posteriormente, tendo feito a opção profissional pelo campo social, pude constatar que não havia no Brasil nenhum trabalho voltado para as pessoas da Terceira Idade. Quando tive conhecimento de que o SESC/SP iniciava um trabalho voltado a esse grupo etário busquei uma forma de ingressar nessa entidade. Fui admitido em 1970 na carreira de orientador social. Após trabalhar alguns meses nas Unidades Móveis de Orientação Social, fui transferido para o SESC Carmo, unidade operacional onde se iniciava o primeiro trabalho com idosos. Ali encontrei uma pequena nucleação de pessoas da Terceira Idade, um grupo formado basicamente por homens. Quase todos eram aposentados da atividade do comércio; se encontravam após a refeição; e se entretinham com jogos de salão, leitura de jornais e revistas etc.

Colaborando na organização desse grupo, conhecendo seus participantes e ajudando-os a definir seus interesses e expectativas, foi como ingressei nessa área social.

REVISTA:- Como foram suas primeiras ações? Fale sobre os eventos e as conquistas sociais e políticas.
MARIA BARROSO
- Em 1976, como Coordenadora de Serviço Social do INPS, fui convocada para uma reunião no MPAS/ Secretaria de Ação Social no Rio de Janeiro. Tomei conhecimento de inovações. De imediato fui convocada para coordenar o III Seminário Regional sobre a situação do idoso na sociedade brasileira, realizado na região Norte e Nordeste, com a participação de representantes de dez Estados.

Nessa oportunidade conheci diversas pessoas, como o Secretário Marcos Candau, de quem me lembro com ternura, pois era muito educado e sensível. Conheci as Dras. Livia Penna e Ivani, minhas grandes aliadas. Participou dessa reunião Neusa Mendes Guedes, coordenadora de Serviço Social do INPS em Santa Catarina, colega, amiga pessoal e companheira de lutas. Um destaque especial da reunião foi o professor Marcelo Antonio Salgado do SESC/SP, o coordenador das inovações. Somente hoje tenho conhecimento de que foi o grande autor da Renda Mensal Vitalícia e outros lances técnicos na Previdência, ainda não registrados na história e ao grande público. De imediato senti uma identidade de pensamentos e de objetivos profissionais e humanísticos. Surgiu então uma rica amizade, celebrada até com bodas de prata pelo tempo decorrido. Foi um ganho, um presente da vida e da Gerontologia. O mestre com quem muito aprendi foi o mantenedor da minha chama de esperança de alcançar a dignidade do envelhecer. Hoje, ouço
s vezes seus queixumes: não mais lhe obedeço, não é verdade. Às vezes ouso e não posso mais retroceder. Os mestres, quando têm uma boa repercussão na vida do aluno, alcançam a alquimia da eternidade.

O III Seminário em Fortaleza foi muito significativo pelo grande número de participantes, tornando-se um marco histórico. Na realidade a mobilização e a articulação foram surpreendentes. O INPS tinha uma rede muito vasta e precisa, não foi difícil. O diagnóstico sócioeconômico dos idosos foi significativo pela presteza, rapidez e eficiência.

A partir desse não poderia mais voltar atrás, pois estava comprometida demais com a questão. As entidades sociais cobravam respostas, decisões e a anunciada Política Social para Terceira Idade.

Por esses motivos o comprometimento profissional e as cobranças éticas me fizeram idealizar, com Marcelo e representantes de dez entidades de Fortaleza, a primeira organização social de idosos no Brasil, a ACEPI. Reivindicava os direitos dos idosos numa época em que pouco se falava em idosos e muito menos em seus direitos. Foi sem dúvida uma ousadia, pois coordenava o Serviço Social do INP S e presidia a ACEPI, cobrando medidas, ações, direitos e uma política específica para esse segmento. Com “diplomacia e ética” convivemos muito bem até os dias presentes.

NEUSA GUEDES - Santa Catarina participaria do I seminário que seria realizado em São Paulo. Em mãos um questionário que deveria informar, entre outros dados, o número de instituições de internamento e a participação de idosos em ações da comunidade. Em Florianópolis, com o total apoio do Superintendente do INPS da época, conseguimos vinte e oito entidades entre órgãos governamentais, instituições privadas, imprensa e outros.

Com essas ações iniciávamos um novo momento na questão social da velhice em Santa Catarina. Mais adiante, tivemos a oportunidade de comparecer ao Seminário de São Paulo com representantes de cada uma das instituições envolvidas. Acredito que este foi o ponto de partida das ações conjuntas; uma prática que se tornou efetiva em nosso Estado.

Ainda em 1976, no Seminário Nacional realizado em Brasília, obtivemos uma síntese do que ocorria no Brasil. O Seminário denominou-se “O Idoso na Realidade Brasileira”. Entre as conclusões desse Seminário chamou-me a atenção a que se referia à necessidade das Universidades e entidades afins dedicarem-se a estudos e pesquisas do idoso brasileiro e a formação de recursos humanos.

Acumulando a função de Assistente Social do INPS e a de professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, senti que poderia realizar algo mais. Convidei uma colega, professora do curso de Enfermagem da UFSC, para juntas solicitarmos que a direção dessa Universidade nos autorizasse a realizar alguma ação gerontológica. Assim nasceu, em 1982, o Núcleo de Estudos da Terceira Idade da Universidade Federal de Santa Catarina – NETI/UFSC. Foram muitas as dificuldades, e só conseguimos porque obtivemos o apoio de integrantes daquelas entidades, que me ajudaram em 1976, e do colega Marcelo Antonio Salgado, que ministrou em Florianópolis o primeiro curso de Gerontologia Social. Para surpresa geral o curso contou com 115 participantes.

O meio acadêmico foi muito resistente às ações do NETI. Aos poucos foram ocorrendo algumas e significativas adesões. Contamos ainda com o apoio de Maria José Barroso, de Fortaleza; Flávio da Silva Fernandes, de Campinas; Elvira Abreu de Melo Wagner e Ana Perwin Fraiman, de São Paulo; Helena Bertho da Silva, do Rio de Janeiro. Hoje o NETI é um marco não só no Brasil, mas em outros países da Europa e da América Latina. Suas ações são reconhecidas e valorizadas como modelo plausível.

MARCELO SALGADO – A primeira ação foi, evidentemente, a de sistematizar e orientar esse trabalho que se iniciava na unidade do SESC Carmo. Para iniciar esse trabalho foi fundamental fazer um estudo de reconhecimento daquela população, das condições em que viviam e, particularmente, das suas expectativas sócioculturais. Uma vez conhecida a realidade daquelas pessoas idosas, pudemos organizar um programa de trabalho muito amplo, contemplando ações na área da informação sobre assuntos de interesse no tocante à aposentadoria, previdência social, saúde, nutrição, reciclagem de conhecimentos e cultura geral. Também um certo número de atividades que propiciassem um convívio mais intenso e, ainda, participação nas decisões da programação do grupo. Uma das primeiras tarefas foi organizar um trabalho com comissões, maneira encontrada para encaminhar esse processo. Não foi, evidentemente, um trabalho difícil.

Tempos depois, houve interesse de outras duas unidades do SESC de reproduzirem essa ação: a de Catanduva e a de Ribeirão Preto. O trabalho foi repassado para essas unidades do Interior, começando assim a formação de uma rede de programas com e para a Terceira Idade. Alguns anos mais tarde, fomos procurados pelo Departamento de Serviço Social do Instituto Nacional de Previdência Social - INPS, que pretendia realizar um trabalho semelhante. Assim aconteceu a primeira passagem da experiência do SESC para uma outra organização, nesse caso um órgão público federal.

O trabalho iniciado pelo INPS na cidade de São Paulo rapidamente foi repassado para outras cidades do Estado de São Paulo e para outros Estados brasileiros. Quando da criação, em 1976, do Ministério da Previdência e Assistência Social, o trabalho voltado para o público da Terceira Idade, particularmente os aposentados, foi designado como uma das prioridades daquele Ministério. Nessa oportunidade fui requisitado por aquele Ministério, me deslocando para o Rio de Janeiro onde funcionava a Secretaria de Assistência Social.

Assim, tive a oportunidade de propor e ajudar a desenhar a primeira política nacional de assistência aos idosos. Fez parte da proposta a organização de quatro grandes seminários. Três foram regionalizados: um na região sul-sudeste, que aconteceu em São Paulo; um na região Leste-Centro Oeste; e outro na região Norte-Nordeste. Estes seminários colheram informações sobre a situação do velho em toda a sociedade brasileira e informações de todos os recursos de assistência e de promoção social, programas, ações de entidades públicas e privadas, de assistência ou de proteção social ou de promoção social das pessoas idosas. Uma vez reunidas todas essas informações, aconteceu um quarto seminário; desta vez na cidade de Brasília, e que lançou o primeiro plano nacional de assistência ao idoso. Isso aconteceu entre 1976 e 1977.

Na organização desses seminários, tive a oportunidade de entrar em contato com a totalidade dos Estados brasileiros, conhecendo profissionais de instituições diversas. Alguns desses profissionais se engajaram definitivamente no trabalho, no qual permanecem até hoje. Continuam ainda trabalhando com a Terceira Idade: Maria José Lima de Carvalho Rocha Barroso, do Ceará, e Neusa Mendes Guedes, de Santa Catarina, na época, responsáveis pelo trabalho de serviço social no INPS de seus Estados. Tiveram contato comigo na primeira reunião de organização desses eventos, e até hoje trabalham em programas voltados à Terceira Idade.

REVISTA:- Na sua trajetória de vida que aspectos levou você a continuar batalhando em prol desse segmento etário?
MARIA BARROSO
- 1º) A certeza de ter iniciado uma caminhada justa e ética, exigindo continuidade como uma questão de responsabilidade sócio profissional. A ACEPI tinha uma proposta de luta e não podia retroceder. As entidades sociais confiaram as suas dificuldades. Havíamos desvendado não ser somente “casa, cama e comida” as únicas necessidades básicas para uma digna sobrevida de um idoso. E agora, o que faremos? Os profissionais devem se lembrar sempre: “nos tornamos eternamente responsáveis” por todas as informações, os ensinamentos e as perspectivas apontadas. Com a criação da ACEPI não podíamos retroceder ao constatarmos as necessidades dos idosos e o desconhecimento do poder público.

Muitas vezes somos forçados a tentar “educar” o poder público, chamando-o para a sua responsabilidade, estimulando e questionando. A ACEPI tem uma longa história de sucessos e alguns momentos de desânimo. A ACEPI lembra a fênix: das cinzas faz ressurgir um novo fogo. Sempre é tempo de recomeçar.

2º) Somente através da sociedade será possível avançarmos na luta pelos direitos dos idosos, pela dignidade do envelhecimento, pelo cumprimento das leis existentes e por outras causas que se façam necessárias.

3º) A conquista da Política Nacional do Idoso, construída pela Associação Nacional de Gerontologia, ANG, contou com a participação de organizações públicas e particulares. Foi um exemplo concreto da força da sociedade ao propor uma política avançada, exequível, moderna e justa. Aliás, me parece a única elaborada pela sociedade. Desde a sua implantação vem servindo de parâmetro para outros países.

4º) Como cidadãos devemos contribuir com o poder público na construção de ações, medidas, programas, projetos e serviços, resultando em apoio, proteção e assistência ao idoso. Como membro da sociedade e participante da ANG/ SBGG/ACEPI não poderia deixar de estar atenta à essas questões. Somos cidadãos responsáveis pelos destinos da sociedade deste novo século, pela correção de erros públicos, pela insensibilidade à questão e pelo não cumprimento das leis. É impossível silenciar, deixando o desprestigio da velhice e a não efetividade da cidadania. É como se transferíssemos para as gerações vindouras as situações incorretas e a angústia do viver mais, como párias, sem direitos e sem o reconhecimento do poder público, que tem obrigação de assegurar padrões mínimos de dignidade para todas as idades. O Brasil apresenta o envelhecimento mais rápido do mundo, e uma qualidade de vida com índices deprimentes atrás de países paupérrimos; e, no entanto, permanece no ranking econômico entre as dez maiores economias mundiais.

NEUSA GUEDES - Muitos foram os aspectos positivos em minha trajetória, tanto profissional quanto pessoal. Profissionalmente percebi que o fato de o trabalho ter-se iniciado na área governamental, sob os auspícios do Ministério da Previdência Social, identificou velhice à questão de carência econômica. O NETI apostou na importância da educação equacionada às questões ligadas ao envelhecimento. Por volta de 900 idosos circulam hoje no Campus da UFSC em atividades diversas, dentre as quais destacamos o curso de Formação de Monitores da Ação Gerontológica, com duração de três anos e o Curso de Especialização em Gerontologia, com 360 horas/aula. Todas estas atividades deram oportunidade de estudar e de comprovar que a questão da velhice não está vinculada a uma classe social, mas particularmente a aspectos culturais.

A Lei 8842/94, que trata da Política Nacional do Idoso, é reconhecida como uma das mais completas já formuladas. Foi um avanço na causa do idoso. Todavia, acreditamos que a não inclusão de agricultores e militares no texto da Lei é uma falha a ser reparada.

Quanto à vida pessoal, creio que muito me favoreceu o fato de estudar, debater e aprofundar os temas relacionados ao envelhecimento. Ao atingir os 70 anos de idade percebi que vinte e quatro deles foram dedicados a Gerontologia. Embora aposentada compulsoriamente para o serviço público, espero continuar colaborando com a causa do idoso.

MARCELO SALGADO – Apesar de todos os esforços realizados e do volume considerável de profissionais e instituições sociais, realizando ações em prol das pessoas idosas, há muito ainda para ser realizado.

O velho brasileiro é proprietário de uma pobreza ainda muito acentuada, o que dificulta seu acesso a bens e serviços da comunidade, e à manutenção da sua participação social e da vida cultural.

Por outro lado a cultura brasileira, ainda que já esteja reconhecendo a existência da população idosa, mantém Com algumas visões extremamente negativas com relação à Terceira Idade. O envelhecimento também é visto como um tempo de decadência e de incompetência social, que se acentuam com as perdas econômicas. Os velhos na sociedade brasileira ainda carregam o estigma da desvalorização social, e uma série de preconceitos que, por vezes, inibem sua participação, prejudicam sua auto-estima, e evidentemente contribuem para a perda da qualidade de vida.

REVISTA:– Quais as passagens marcantes em sua trajetória?
MARIA BARROSO
- Em minha trajetória vivi momentos marcantes, fortes e significativos, dando continuidade a esta luta cidadã e cristã.

1) O êxito do III Forum Regional sobre a situação do idoso na sociedade brasileira em 1976, promovido pelo MPAS/SAS/INPS.

2) A corajosa criação da Associação Cearense Pró-Idosos (ACEPI), que estimulou muitas outras entidades no país. O papel da ACEPI foi significativo. Sem recursos próprios conseguiu realizar seis Foruns Nacionais de Gerontologia, um Curso com a equipe do CIGS, de Paris, um Seminário em Paris, juntamente com o SESC e ANG entre muitas outras realizações. Ao longo desses anos a ACEPI ajudou na criação de muitas associações, assumindo por um bom tempo o papel de entidade nacional, como uma Federação sempre convocada pelo poder público a participar, a assessorar e a subsidiar com documentos e informações. É oportuno que se registre o apoio técnico e financeiro recebido de órgãos públicos e de entidades como o SESC/SP e outras particulares.

3) A criação da Associação Nacional de Gerontologia - ANG juntamente com Marcelo Salgado, Neusa Guedes, Edith Motta, e posteriormente, com Flávio da Silva Fernandes, Nara Costa Rodrigues, Dr. Queiroz e muitos outros.

4) Participação em eventos históricos, como o Seminário Franco- -Brasileiro sobre o Envelhecimento: comparação entre duas sociedades, em Paris de 23 a 28 de outubro de 1988, promovido pela Foundation Nationale de Gerontologie – FNG, o Serviço Social do Comércio SESC, a Associação Nacional de Gerontologia – ANG e a Associação Cearense Pró-Idosos-ACEPI. Foi um grande momento de intercâmbio de idéias e de experiências.

5) Participei de travessias difíceis que exigiram diplomacia, e de outras onde pedi a autoridades governamentais desculpas antecipadas para fazer algumas colocações éticas em prol da verdade ante a performance, a fidalguia de algumas autoridades como a do Ministro Reinhold Stephanes, e a simplicidade da Secretária Lucia Wânia.

6) A participação em algumas missões e Fóruns, do Oiapoque ao Rio Grande do Sul, levando mensagens de encorajamento e de incentivo à luta pelos direitos dos longevos.

7) N os vinte e cinco anos de dedicação às causas dos idosos experimentei momentos críticos, pausas, avanços, retrocessos, novas investidas, entusiasmos, decepções, aplausos e temores.

8) Acontecimentos conhecidos, como da Clínica Santa Genoveva, marcaram pelo descaso governamental frente a situações reveladas. Certamente, outras desconhecidas funcionam como holocaustos por falta de fiscalização. Muitas lágrimas foram contidas pela impossibilidade de converter o poder político, ainda insensível e sem cumprir a legislação vigente. Os recursos para a área social sempre foram insuficientes para atender às necessidades básicas da população idosa, permitindo um per capta defasado há mais de 5 anos. É um descaso antiético, uma herança cultural advinda dos tempos do Império. É impossível conceber uma Lei como da Política Nacional do Idoso, consagrada como um momento solene, contar com representantes de diversos países aplaudindo e levando para seus país tal avanço, e depois cair o pano da ribalta, ficando só o silêncio. Torna-se uma situação esdrúxula e até anárquica. O poder público não a efetiva e nem exige dos Ministérios o seu cumprimento.

9) Conquistamos a longevidade. Para alguns é motivo de contentamento. Para outros uma sobrevida sem qualidade, sem direitos e sem dignidade. Uma longevidade de párias. A sociedade fica estarrecida frente às múltiplas formas de corrupção de parlamentares e aos escândalos que denigrem a honra nacional, perpassando por um vendaval de violências, por fortes esquemas de narcotráfico, e por comandos de presos nos presídios, afrontando assim os poderes constituídos. Uma penumbra de apatia e medo, como uma anemia social, encobre as grandes questões éticas e políticas. A sociedade civil, despreparada, deixa de usar instrumentos capazes de influir nas decisões e vontade política pela grande força do voto e pela cobrança coletiva e permanente aos seus representantes parlamentares. Espero que o Brasil possa retomar os caminhos do desenvolvimento humano; investir no seu capital mais precioso, a criança, o jovem e aqueles que, através do trabalho de anos a fio, contribuíram com seus salários e parcelas infindas para ter o direito à uma aposentadoria decente. A longevidade precisa ser enfocada pela ótica do desenvolvimento humano, social e político, e não como fonte de despesa governamental ou um peso para economia. A vida humana deve ser prioridade nacional em educação, em saúde e em oportunidades de trabalho, neste novo milênio.

NEUSA GUEDES - Ao longo de minha carreira recebi homenagens e críticas. Entre as homenagens gosto de destacar o honroso título de cidadã catarinense, que me foi concedido por uma ação dos idosos junto a Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Destaco também a medalha de Mérito Municipal, concedida pela Câmara de Vereadores de Florianópolis. O título de membro honorário da Força Aérea Brasileira, concedido pelo Ministério da Aeronáutica, e o troféu Edith Motta por relevantes serviços à causa do idoso no Brasil, segundo o texto do mesmo.

MARCELO SALGADO - Aconteceram muitos momentos significativos, sempre lembrados, e gratos de serem rememorados, sobretudo os que representaram o carinho de todos os grupos e pessoas da Terceira Idade com os quais tive contato. Acompanhei e colaborei na orientação de projetos significativos, e na organização de ações importantes para a sociedade brasileira.

Estive diretamente envolvido na criação do MOPI (SP), da ACEPI (CE), da ASSIPA (PA), na criação do primeiro projeto de Escola Aberta – precursor dos atuais programas de Universidades Abertas da Terceira Idade, dos programas de Preparação para Aposentadoria, da definição das primeiras políticas públicas de atenção a velhice, dos Conselhos de idosos etc.

Tudo teve um sabor especial, por vezes desagradável, como sempre acontece com todos os projetos pioneiros, sobretudo num tempo e numa sociedade que não reconhecia nem priorizava as questões sociais pertinentes ao envelhecimento. Entretanto as dificuldades sempre foram um desafio e me estimularam a novas lutas.

O apoio dos dirigentes do SESC São Paulo foi, inegavelmente, fator decisivo em todo esse processo de conquistas e realizações. NO SESC ajudei a criar e desenvolvi os projetos que se tornaram referência para quase todas as ações que hoje são realizadas por outras instituições brasileiras. Inúmeras vezes representei o Brasil em Congressos mundiais e grupos de estudos internacionais, inclusive como delegado brasileiro na 1ª Assembleia Mundial da ONU sobre o Envelhecimento.

Alguns momentos me foram extraordinariamente marcantes: a homenagem do governo francês, quando presidi o Colóquio Franco-Brasileiro sobre o Envelhecimento, na cidade de Paris; a condecoração do governo brasileiro, quando do Ano Internacional do Idoso, em Brasília; e do INATEL – Portugal, pelo importantes trabalhos que tenho realizado naquele país; e sobretudo a emoção da amizade dos colegas do SESC que têm compartilhado comigo a construção dessa grande obra, que é o trabalho social com Idosos.

Com o apoio do SESC pude colaborar com governos, entidades, empresas, universidades e milhares de profissionais e pessoas interessadas nessa questão social.

REVISTA:- Hoje, que sentimentos predominam: realização, frustração, esperança? Os anos de trabalho geraram conquistas permanentes? Que perspectivas vocês vislumbra para o novo milênio?

MARIA BARROSO – Sinto-me bem tranquila. Fiz o que pude e o que sabia. Na dimensão da cidadania a minha participação foi consciente: dedicação exclusiva a esta questão. Dei a minha contribuição pessoal para a valorização da velhice. Na dimensão política interpretei como pude, com minha voz, meus artigos, aulas, conferências, em reuniões interministeriais e com autoridades. Dei eco ao abandono e à falta de cidadania dos idosos. Contribuí para a elaboração da Lei da Política Nacional do Idoso. Busquei sempre as mudanças de paradigmas de justiça e de dignidade. Numa dimensão pessoal e existencial busquei a afirmação dos valores que havia traçado para mim e para os meus, refletindo uma coerência pessoal. Se buscava dignidade para mim deveria também propô-la aos idosos sem voz e sem vez.

O sentido existencial cristão me levou a não perder a esperança, a ter coragem de pedir licença aos homens públicos e a dizer o que pensava. Certa vez, em uma reunião de cúpula com autoridades do poder judiciário, dei o grito de dor pelos 102 idosos mortos da Clínica Santa Genoveva.

A sociedade está se sensibilizando e adquirindo uma consciência amadurecida para o sentido de valorização da vida e da dignidade do envelhecimento. Reconhece os direitos humanos e sociais dos idosos. Já existe legislação suficiente para garantir esses direitos, faltando somente cobrança eficaz para que ela seja efetivamente cumprida. Os idosos confiam em sua cidadania e podem exigir os direitos advindos da Constituição. O que falta é uma consciência operacional mais eficiente dos representantes do poder público.

A conquista de longevidade significa melhoria dos índices de desenvolvimento humano. As autoridades competentes ainda não se aperceberam desse avanço. Visualizam idosos e aposentados sob uma lógica econômica, como se usurpadores fossem do Tesouro Nacional, esquecendo de suas múltiplas contribuições para a Previdência Social.

Num futuro bem próximo, onde florescerão nossos netos e bisnetos? Certamente poderão vivenciar sua velhice com novos paradigmas de justiça, solidariedade e direitos. Foi para isto que trabalhei e estamos trabalhando.

NEUSA GUEDES - Hoje sinto-me bem comigo mesma e esperançosa. Acredito que enquanto estivermos no mundo temos obrigações a cumprir junto a sociedade. Sou otimista, para o novo milênio acredito que nós, idosos brasileiros, iremos oferecer ao mundo uma nova visão do que é um envelhecer integrado na sociedade e gozando de direitos e deveres.

MARCELO SALGADO – Sinto-me feliz por ter tido a oportunidade de colaborar na criação de todas essas ações, bem como a de colaborar na produção dos primeiros estudos gerontológicos no Brasil e na formação de tantos profissionais. Ao longo dos anos tive a oportunidade de orientar o trabalho específico do SESC, bem como outros trabalhos de governos, de instituições sociais e de empresas que, evidentemente, configuram um considerável volume de programas e serviços.

Continuo preocupado com o que ainda tenho para fazer. Se de um lado as instituições sociais já desenvolvem ampla oferta de programas para a Terceira Idade, ainda é acanhado o que se faz efetivamente em termos de política social global, sobretudo nas esferas governamentais. A pobreza material dos velhos, particularmente os aposentados, é um aspecto que me causa grande constrangimento. Muito ainda é preciso ser feito no que diz respeito à modificação da cultura, dando maior e mais adequada visibilidade à pessoa do idoso, ao tempo do envelhecimento e à imagem da própria velhice.

Costumo pensar que, num primeiro momento, a Gerontologia se desenvolveu no Brasil por intermédio dos trabalhadores sociais e das instituições sociais. Hoje, começa a ganhar as Universidades, o que certamente trará um avanço científico. Certamente se produzirá um número significativo de investigações, que melhor ajudarão a compreender não só a pessoa do velho, mas todas as questões que dizem respeito à dinâmica social. Portanto, esperamos viver um tempo mais produtivo, uma concretização de medidas mais eficientes de combate à marginalização e de busca por melhor qualidade de vida.

Num mundo tão globalizado e de mudanças tão rápidas, devemos entender que o envelhecimento não pode continuar sendo representado como um tempo derradeiro da existência humana. Apesar das perdas, sobretudo no tocante a higidez física e a mudança de papéis, o envelhecimento é um tempo do ciclo de vida onde a presença da maturidade favorece uma postura social de mais liberdade e de competência para a auto determinação. Essas condições são extremamente favoráveis para a vivência de experiências socialmente produtivas, diferenciadas das atividades econômicas anteriormente exercidas. A aproximação do idoso a grupos e o seu engajamento em causas sociais e políticas, ou mesmo em projetos culturais, são condições significativas para o fortalecimento do sentido humano de utilidade, e para a conquista de uma visibilidade como ser socialmente produtivo, combatendo imagens preconceituosas de inutilidade da velhice.

 

(1) Assistente social e presidente da Associação Cearense de Idosos.
(2) Assistente social, professora e criadora do Núcleo de Estudos da Terceira Idade da Universidade Federal – SC.
(3) Gerontólogo , epidemiólogo do envelhecimento e gerente de estudos e programas da terceira idade do Sesc - SP.