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Um mar sob nossos pés

Praia no Rio Tapajós: sistema hidrogeológico do Alter do Chão / Foto: Ricardo Teles/Pulsar Imagens
Praia no Rio Tapajós: sistema hidrogeológico do Alter do Chão / Foto: Ricardo Teles/Pulsar Imagens

Por: EVANILDO DA SILVEIRA

A cada segundo, o Rio Amazonas, o maior do planeta em extensão, despeja no mar, em média, 200 mil metros cúbicos de água – 20% ou um quinto do volume de todos os rios do mundo que correm para os oceanos. É muita água, em torno de 60 vezes mais do que a vazão do Rio Nilo – o segundo maior do mundo –, que banha países como Egito, Uganda e Sudão, no nordeste do continente africano, mas apenas algumas gotas se comparada com o que existe debaixo do solo por onde ele corre. Pesquisadores das universidades federais do Pará (UFPA) e Ceará (UFC) descobriram, recentemente, um reservatório subterrâneo gigantesco, que se estende por mais de 1.800 quilômetros desde o Peru e Colômbia, entrando no Brasil pelo Acre e indo até a Ilha de Marajó, com uma largura que varia de 250 a 500 quilômetros e uma espessura que vai de 1.200 a 7 mil metros. Trata-se do Sistema Aquífero Grande Amazônia (Saga), uma reserva estimada em 162 mil quilômetros cúbicos que, se somada ao Aquífero Guarani, localizado no sudeste e sul do país, chega a cerca de duas vezes o volume de água existente em todos os rios e lagos do planeta.

De certa forma, pode-se dizer que a Terra, pelo menos em suas camadas superficiais, é feita de água – dois terços de sua área total são cobertos pelo chamado “líquido precioso”. O problema, quando se fala em consumo humano, é que apenas uma ínfima parte dela pode ser bebida e usada para outros fins. Do total existente no planeta, nada menos que 97% são as salgadas dos oceanos. Dos 3% restantes, que poderiam ser consumidos pelos seres vivos, cerca de 1,6% está na forma de gelo nos polos, nas geleiras e nos topos de montanhas; um pouco menos de 0,30% são subterrâneas e apenas 0,03% estão ao alcance fácil em rios e lagos. Em termos absolutos, o volume total no mundo gira em torno de 1,37 bilhão de quilômetros cúbicos, mas apenas cerca de 41,1 milhões são doce e não mais do que 120 mil quilômetros cúbicos estão em rios e lagos.

Por isso, cada vez mais os aquíferos ganham importância, enormes depósitos de água no subsolo que abastecem um número crescente de cidades. Eles não são, como alguém desavisado poderia imaginar, rios correntes ou lagos subterrâneos. São reservas que ocupam os interstícios das rochas, como poros, fissuras ou rachaduras. Ou seja, as pedras funcionam como espécies de esponjas gigantes, encharcadas do líquido. O professor e pesquisador Rodrigo Lilla Manzione, chefe do Laboratório de Hidrologia e Hidrogeologia Operacional do campus de Ourinhos da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), define um aquífero, em linguagem técnica, como “uma unidade geológica (formação ou grupo) saturada por água, constituída de rocha ou sedimento, suficientemente permeável para permitir a extração dela de forma econômica e por meio de técnicas convencionais”.

Existem milhares de aquíferos espalhados pelo mundo, inclusive sob os desertos, entre os quais, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), despontam 273 transfronteiriços (que se estendem por mais de um país). Entre os maiores e mais conhecidos estão o Arenito Núbia (Líbia, Egito, Chade e Sudão), com 2 milhões de quilômetros quadrados; a Grande Bacia Artesiana e a Bacia Murray, na Austrália, respectivamente, de 1,7 milhão e 297 mil de quilômetros quadrados; o Ogallala, nos Estados Unidos, de 450 mil km; e o KalaharijKaroo (Namíbia, Bostwana, África do Sul), de 135 mil quilômetros quadrados.

Alter do Chão

No território nacional, segundo o Mapa das Áreas Aflorantes dos Aquíferos e Sistemas Aquíferos do Brasil, elaborado pela Agência Nacional de Águas (ANA), há 182 desses reservatórios distribuídos pelo país, inclusive no árido Nordeste. Eles foram classificados em três categorias: Sistemas Fraturados (aqueles em que a água subterrânea encontra-se basicamente nos planos de fraturas, microfraturas, juntas e falhas em meios rochosos), Sistemas Porosos (nos quais ela circula especialmente entre os poros das rochas) e Sistemas Cársticos (em que o armazenamento e a circulação são condicionados principalmente pela dissolução aleatória e ao fraturamento ou descontinuidades das rochas carbonáticas).

O Saga é um exemplo do segundo tipo. Na verdade, ele é uma extensão de um aquífero já conhecido, chamado Alter do Chão, que leva o nome de uma das mais belas praias fluviais do Brasil, no município de Santarém, no Pará. Há cerca de 10 anos, os pesquisadores começaram a estudar esse reservatório subterrâneo e tiveram uma surpresa: ele era muito maior do que se pensava. “Descobrimos que o Alter do Chão integra um sistema hidrogeológico que abrange as bacias sedimentares do Acre, Solimões, Amazonas e Marajó”, explica o geólogo Francisco de Assis Matos de Abreu, da UFPA, um dos coordenadores da pesquisa. “No total, essas quatro bacias possuem, aproximadamente, uma superfície de 1,3 milhão de quilômetros quadrados”.

Graças aos estudos descobriu-se que seu volume é o dobro dos 86 mil quilômetros cúbicos estimados até então. Por isso, acharam melhor rebatizá-lo com a denominação que é usada hoje. Em termos técnicos, o Saga é um conjunto hidrogeológico poroso de camadas geológicas depositadas nas quatro bacias sedimentares a partir do Cretáceo, há mais ou menos 140 milhões de anos. Por meio de processos geológicos ocorridos nesse período, uma extensa cobertura sedimentar foi depositada nas bacias, que hoje está encharcada de água. Além disso, o aquífero é transfronteiriço, pois se estende aos países vizinhos Peru, Colômbia, Equador e Bolívia – mas 67% do sistema fica no Brasil.

O país também detém a maior parte do outro grande aquífero da América do Sul, o Guarani, nome dado, em homenagem ao conhecido povo indígena, pelo geólogo uruguaio Danilo Anton, em 1996, durante um workshop em Curitiba. Na época, pensava-se que este manancial subterrâneo fosse o maior do mundo e que poderia abastecer a população brasileira durante 2.500 anos. Hoje, os dados são mais precisos. Sabe-se que o sistema tem uma área de cerca 1,2 milhão de quilômetros quadrados, estendendo-se por oito estados (Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, São Paulo e Rio Grande do Sul), num total de 840 mil quilômetros quadrados, além do Paraguai, Uruguai (ambos com 58.500 quilômetros quadrados) e Argentina (255 mil quilômetros quadrados).

A exemplo do Saga, o Guarani também é do tipo poroso, mas possui uma “capa” de basalto – um rocha dura – por cima, com até mil metros de espessura, dificultando sua exploração em alguns pontos. Segundo o diretor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas (Cepas) da Universidade de São Paulo (USP), Ricardo César Aoki Hirata, o aquífero tem espessura média de 250 metros, podendo variar de 50 a 600 metros, e profundidades superiores a mil metros. O volume total armazenado é estimado entre 30 mil e 40 mil quilômetros cúbicos, o equivalente a 100 anos de fluxo cumulativo no rio Paraná.

Em termos geológicos, o Guarani compreende uma sequência de camadas de arenito quartzosos (fracamente cimentados) de idade triássica-jurássica (entre 250 milhões e 145 milhões de anos atrás), relacionadas às formações geológicas de Botucatu e Anhembi, cidades do interior de São Paulo. “Elas foram formadas por processos de deposição continental (eólicos, fluviais e lacustres), a partir de uma erosão regional de superfície permo-triássica (há 250 milhões de anos) e são sobrepostas por rochas basálticas do Cretáceo (entre 145 milhões e 130 milhões de anos)”, explica Hirata. “Essa camada de basalto cobre todo o sedimento”.

Papel estratégico

Ultimamente, o otimismo inicial com o potencial do Aquífero Guarani para o abastecimento vem sendo questionado por novos estudos. Uma dessas pesquisas foi realizada pelo geólogo José Luiz Flores Machado, do Rio Grande do Sul. Em artigo publicado na revista “Scientific American Brasil”, ele diz que o megarreservatório não é o “mar de água doce” que se imagina. De acordo com Machado, “novos estudos sobre sua diversidade geológica revelam que, em espaços de algumas centenas de quilômetros, sua potencialidade pode variar drasticamente. Enquanto algumas áreas são excelentes, em outras a água é inacessível, escassa ou não potável”.

Entre as primeiras, ele cita a parte do aquífero que fica no estado de São Paulo, que “apresenta excelente conformação estrutural, facilitando a recarga, circulação e descarga das águas subterrâneas”, e cujo potencial se aproxima do que foi divulgado no início. Em contrapartida, em Santa Catarina e Paraná “extensas áreas do aquífero têm alta salinidade”. Na Argentina a situação é ainda pior. Lá, segundo Machado, predominam as termais e o sistema aquífero é totalmente confinado em grandes profundidades. “Na Província de Entre Rios, por exemplo, é possível observar um incremento exagerado na salinidade do aquífero logo a partir do rio Uruguai, quando poços termais que tinham águas com aproximadamente mil miligramas por litro de sais minerais passam a apresentar mais de 100 mil mg/l do componente, quase três vezes o valor encontrado no mar”, relata.

Mesmo com esses problemas, no entanto, o reservatório tem abastecido um grande número de atividades. Nesse sentido, Hirata cita dados recentes do Projeto Aquífero Guarani, da ANA, que resultou num cadastro abrangente de poços de produção. “O trabalho indicou uma explotação [termo técnico usado para designar a retirada, extração ou obtenção de recursos naturais, geralmente não renováveis, para fins de aproveitamento econômico] de aproximadamente 1,04 quilômetros cúbicos por ano, dos quais 94% no Brasil (80% no estado de São Paulo), 3% no Uruguai, 2% no Paraguai e 1% na Argentina”, conta. “Cerca de 80% do total é usado para abastecimento público, 15% para processos industriais e 5% para estâncias de águas geotérmicas”.

Ainda de acordo com o diretor do Cepas, estima-se que existam cerca de 2 mil poços tubulares profundos operando atualmente, alguns dos quais podendo produzir mais de 500 metros cúbicos por hora. Em média, menos de 20% do total dos poços estão produzindo mais do que 100 metros cúbicos por hora, no entanto. Essa vazão é semelhante aos poços que operam na área do Saga, que também varia de 100 a 500 metros cúbicos por hora. Segundo o geólogo da UFPA, Francisco Abreu, no vale amazônico, grandes cidades como Porto Velho, Rio Branco, Manaus, Parintins e Santarém, utilizam água subterrânea tirada do aquífero. “Mas a relação entre reservas e uso ainda é extremamente modesta”, diz. “O que se retira dele é praticamente nada em relação ao seu potencial”.

Seja como for, não dá para negar o papel desses mananciais subterrâneos como imensas reservas. “Uma vez que eles representam 30% do estoque de água doce mundial e que outros 69% estão aprisionados na forma de gelo nas calotas polares, a importância dos aquíferos para o abastecimento é fundamental”, diz o professor Manzione, da Unesp. “Há quem acredite que uma de suas funções é justamente estratégica, armazenando o líquido para momentos de escassez ou mesmo esgotamento de reservas superficiais”.

Momento de escassez é o que atualmente vive a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), com a ameaça de torneiras secas pairando sobre os lares da capital e de cidades vizinhas. As águas do Guarani, infelizmente, não poderiam ajudar, pois não alcançam a região. Mas há o aquífero São Paulo, que fica justamente sobre a mancha urbana da capital paulista e adjacências. “As águas subterrâneas têm um papel importante no abastecimento complementar das regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas e não somente durante a crise de água”, diz Hirata. “Alguns de nossos estudos têm mostrado que mais de 10 metros cúbicos por segundo já são extraídos de 12 mil poços na RMSP, tornando esse recurso o quarto mais importante”.

De acordo com o diretor do Cepas (USP), há mais água subterrânea disponível na RMSP e que poderia ser aproveitada, tornando-se a terceira fonte de água para seu abastecimento. “Isso não ocorre em todas as áreas, no entanto”, ressalva Hirata. “A parte central da capital, por exemplo, é a mais densa e não suportaria mais poços. O Sistema Aquífero Guarani é um recurso muito importante, todavia não haveria possibilidade econômica de atender a capital paulista e adjacências. A limitação seria no transporte da água, por adutoras, um recurso extremamente oneroso. Entretanto, uma alternativa interessante seria abastecer parte das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiá e assim reduzir a pressão sobre o abastecimento do Sistema Cantareira, que abastece a RMSP”.

É preocupante a fragilidade e os ataques que os aquíferos vêm enfrentando no Brasil e um bom exemplo, segundo o professor Manzione, é a superexploração. “Ela vem ocorrendo em diversos locais, onde a demanda não acompanha a recarga (reabastecimento do aquífero pela chuva) dos reservatórios subterrâneos, causando rebaixamentos sistemáticos”, diz. “Além disso, há a poluição do solo e da água provocada principalmente por atividades perigosas conduzidas em áreas vulneráveis”.

Esses riscos têm afetado o Sistema Aquífero Grande Amazônia, onde “o problema principal hoje é a vulnerabilidade nas áreas de extração de água mais importantes, ou seja, nas cidades”, explica Abreu, da UFPA. “Isso ocorre em razão da falta de saneamento e da deposição de resíduos sólidos sem controle (lixões). Por isso, suas águas, nas porções mais rasas, começam a ficar poluídas, dificultando o seu uso para o suprimento humano. Também se observa índices de rebaixamento muito expressivos de poços, como por exemplo, em Manaus”.

Devastação das florestas

Hirata, por sua vez, enumera uma série de potenciais ameaças à qualidade original das águas subterrâneas nas áreas de recarga, entre as quais a urbanização e infiltração de efluentes domésticos. As áreas industriais e o armazenamento e manipulação inadequados de produtos químicos perigosos, além da deposição incorreta de dejetos líquidos e sólidos também são um perigo, assim como a intensificação do cultivo agrícola e reflorestamento. “O uso do solo rural em determinadas partes das áreas de recarga do Guarani tem testemunhado enormes mudanças nos últimos 30 anos”, diz.

Entre essas alterações destaca-se a devastação das florestas subtropicais úmidas, com o objetivo de explorar seus recursos madeireiros e abrir caminho para a pecuária extensiva bovina, o que ocorre principalmente no Brasil e no Paraguai. A aragem de áreas de pastagem, para a introdução de agricultura intensiva – rotações das culturas soja-girassol/soja-milho e cana-de-açúcar no Brasil, Paraguai e Argentina, em parte para produção de biocombustível e frutas cítricas é outro problema. “Sem falar no reflorestamento de algumas áreas de pastagem naturais com eucaliptos, para fabricação de papel ou pinheiros para produção de madeira no Uruguai”, diz Hirata.

De qualquer forma, o abastecimento público não é o único papel do aquífero, especialmente do Saga. “Temos chamado a atenção para o funcionamento do ciclo hidrológico amazônico, compreendido na sua relação com a floresta, na perspectiva de balanço que se estabelece entre a umidade que chega ao continente sul-americano, entrando na altura da linha do Equador, vinda do Oceano Atlântico”, esclarece Abreu. “Essa umidade é transferida paulatinamente para o interior da Amazônia até alcançar os Andes”.

Depois, pelo efeito de evapotranspiração da floresta, o deslocamento desse spray atmosférico, pelos ventos e pelo movimento de rotação da Terra, tem como efeito final a transferência anual média de 8 trilhões de metros cúbicos de água para as regiões sul e sudeste do Brasil. “Nesse contexto é que se situa o Saga como a parte mais expressiva do ciclo hidrológico em volume, já que representa mais de 80% do total das águas da região (os rios amazônicos têm cerca de 8% e a atmosfera aproximadamente esse mesmo valor)”, explica Abreu.

Segundo o professor da UFPA, essa transferência é a origem, em grande parte, das chuvas que sustentam o agronegócio brasileiro e o enchimento de aproximadamente 70% dos reservatórios que geram energia elétrica nessas regiões. “Assim, o que interessa acima de tudo nos nossos objetivos de pesquisa é compreender como se estabelece essa relação recursos hídricos-floresta, na dinâmica do ciclo hidrológico e no balanço final entre entrada e saída de água na região”, diz Abreu. “Além de avaliar a vulnerabilidade desse sistema às intervenções do homem que se fazem principalmente sobre a floresta”.

Para os especialistas, esta é a melhor maneira de proteger os aquíferos, ou seja, estudá-los para melhor conhecê-los. “Necessitamos de financiamento para continuarmos a estudar o Saga”, diz o geólogo Milton Antonio da Silva Matta, colega de Abreu na UFPA, que também participou da pesquisa sobre o reservatório. “Precisamos de estudos principalmente sobre aspectos hidrogeológicos, para determinar suas reservas com mais exatidão e montar um modelo de uso e explotação desse sistema”.

Já Manzione vai um pouco além. Para ele, as pesquisas precisam abranger todas as águas subterrâneas existentes no território nacional. “São necessários estudos em detalhe das formações aquíferas brasileiras, para que a política nacional de recursos hídricos instituída pela Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997, seja de fato colocada em prática”, recomenda. “Isso precisa ser feito considerando as interações entre os mananciais superficiais e os subterrâneos, dentro dos planos de bacia e dos programas de gestão, conforme determina o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos”.

 


 

Desperdício e degradação

Abençoado por Deus e bonito por natureza, o Brasil também é bem aquinhoado no que se refere à água, o líquido precioso que garante a vida no planeta. Sozinho, o país é dono de 12% de toda a água doce do mundo. Não deveria ter, portanto, problemas para abastecer sua população. Mas não é isso o que se vê: a escassez ou até mesmo a falta dela é uma realidade para milhões de brasileiros.

E as causas são muitas, indo desde a ausência de planejamento e investimentos no fornecimento até a degradação e poluição de nascentes, rios e mananciais. Mas por certo, um dos grandes motivos é o desperdício. Segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA), as perdas chegam a 43% do que é captado e tratado para abastecimento por causa de vazamentos, evaporação ou ineficiência do sistema de distribuição, por exemplo. Quando se soma a isso o puro e simples esbanjamento oriundo de maus hábitos de consumo, o volume que vai literalmente pelo ralo pode ser assombroso.

As necessidades biológicas das pessoas por água são mais ou menos as mesmas em qualquer lugar do planeta. O que muda são as demandas culturais e de costumes. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cada ser humano precisa de 3,3 metros cúbicos mensalmente para atender às suas necessidades de consumo e higiene, o que dá em torno de 110 litros por dia. No Brasil, contudo, a demanda por pessoa pode chegar a mais de 200 litros diariamente.

Para entender o gasto (ou seria desperdício) dos brasileiros é preciso olhar para alguns dados da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). E o foco é o banheiro. Um banho de ducha de 15 minutos, por exemplo, com o registro meio aberto, consome 135 litros de água. De chuveiro elétrico, são 45 litros. Se a pessoa fechar a torneira enquanto se ensaboa e reduzir o tempo do banho para 5 minutos, o consumo cai para 45 litros no primeiro caso e 15 litros no segundo.

A escovação dos dentes é outro hábito propenso ao desperdício. Em cinco minutos, com a torneira não muito aberta, gastam-se 12 litros de água. No entanto, se o indivíduo molhar a escova e fechar a torneira enquanto limpa os dentes e enxaguar a boca com um copo de água, o consumo se reduz a apenas meio litro. Assim, da mesma forma, pequenos cuidados e mudança de hábitos podem gerar economia drástica de água na cozinha, na piscina, na área de serviço, no jardim e na lavagem do carro.

De acordo com a consultora na área de recursos hídricos, Marussia Whately, ex-coordenadora do Programa Mananciais do Instituto Socioambiental (ISA), evitar o uso de água nobre, tratada, potável, para lavar calçada é outra providência importante contra o desperdício. “Além disso, poderia se lançar mão de uma série de medidas de reúso, empregando mais de uma vez a mesma água em determinadas operações, como já se faz em vários lugares do mundo”, diz. “Um exemplo: a água do banho pode ser usada para lavar o jardim sem problemas”.

A instalação de hidrômetros individuais nos edifícios de apartamentos é outra medida interessante. “É muito mais difícil reduzir o gasto num prédio do que numa casa”, explica Marussia. “Conversei com várias pessoas que moram em casa e que conseguem reduzir tranquilamente em até 30% o consumo de água. Em prédio, por mais esforço que se faça, depende-se do vizinho. Além do uso coletivo, há o individual, e a conta é comum. Às vezes pode haver um esforço grande, mas, se um vizinho não contribui ou se tem apartamento vago com vazamento, pode não adiantar nada. São atitudes que ajudariam na redução do consumo e também na responsabilização pelo desperdício”.

Para quem não acredita no problema, a consequência da degradação das nascentes e mananciais e do desperdício pode ser medida em números. Um amplo levantamento feito pela ANA, que resultou no Atlas Brasil de Abastecimento Urbano de Água, mostra que 55% dos 5.570 municípios brasileiros, onde moram 125 milhões de pessoas (responsáveis por 73% da demanda do país), poderão sofrer com falta de água até 2015. Desse universo, 84% das sedes urbanas necessitam investimentos para adequação de seus sistemas produtores e 16% apresentam déficits decorrentes dos mananciais utilizados.