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A consagração do efêmero

Estantes atulhadas, mas número de leitores avança pouco / Foto: Fernando Piovesan
Estantes atulhadas, mas número de leitores avança pouco / Foto: Fernando Piovesan

Por: CECILIA PRADA

Em notável artigo publicado na “Gazeta do Povo”, de Curitiba, em 19/6/2014, o escritor, crítico e professor Affonso Romano de Sant’Anna pergunta: “O Leitor, Onde Está o Leitor?” Com sua inigualável experiência de magistério e, principalmente, pela sua atuação de 1990 a 1996 como presidente da Fundação Biblioteca Nacional e criador do Sistema Nacional de Bibliotecas, Sant’Anna vai fundo na questão fundamental da “crise do livro”, ou melhor, “da leitura” – analisando os vários setores da produção cultural envolvidos, de editores, escritores, leitores e professores a agentes literários, livreiros e sistemas de distribuição, levando em conta fatores históricos, econômicos e sociais que deságuam na situação atual. Que vê, com lucidez, não propriamente como “crise”, mas antes como um processo de “metamorfose”, em uma fase em que se entrosam os três processos de aprendizado, primeiro o oral, depois o escrito e, agora, novamente passando pelo visual, ou antes, também visual, concluindo: “O livro está se metamorfoseando. O leitor também tem que se metamorfosear. Como tem que se modificar o editor, o livreiro, o jornalista, o publicitário e todo o sistema da escrita e da representação simbólica. De certa maneira somos todos neoanalfabetos”.

Sim, porque sabemos hoje que nosso processo de alfabetização caminha continuamente, desde antes mesmo da alfabetização básica – isto é, da aquisição formal da habilidade de ler e de escrever (pelo “letramento”, definido pelos pedagogos como a incorporação inconsciente que vamos fazendo, desde o nosso tempo de bebês e se nascemos em uma sociedade civilizada, de elementos esparsos da escrita, presentes na nossa cotidianidade). E porque também já fomos suficientemente advertidos, por escritores e educadores, sociólogos e filósofos, de que a alfabetização escolar (ou “mobralizada”) pouco ou nada significa em si – valendo mais como recurso estatístico barato, eleitoreiro, do que como índice real de cultura. Que outros tipos de “alfabetização” vão sendo necessários na nossa formação, como a “alfabetização humanista”, há muito já definida como a necessidade de assimilar e compreender o que se lê. Como diz o crítico francês George Steiner em seu fundamental livro Linguagem e Silêncio – Ensaios sobre a Crise da Palavra, da década de 1960: “Ler corretamente é correr grandes riscos. É tornar vulnerável nossa identidade, nosso autodomínio... Quem leu A Metamorfose, de Kafka, e consegue se olhar no espelho sem se abalar talvez seja capaz, do ponto de vista técnico, de ler a palavra impressa, mas é analfabeto no único sentido que importa”.

Leitores de menos

A complexidade da era atômica em que vivemos hoje, porém, nos exige continuamente também outros tipos de “alfabetizações”, como a “científica” e, mais recentemente, a “tecnológica”. O romancista britânico Charles Percy Snow (1905-1980) – citado por Steiner – ocupou-se, desde a década de 1940, da coexistência necessária das duas culturas, a humanista e a científica, pois foi também cientista e ocasionalmente, político. Dizia: “Quem não leu Shakespeare é inculto, mas não mais do que quem desconhece a segunda lei da termodinâmica. Cada um deles está cego em relação a mundos comparáveis”.

O foco principal do artigo de Affonso Romano de Sant’Anna consiste na contradição do argumento editorial a respeito da súbita e catastrófica inundação do setor, que, segundo os empresários, teria sido causada pelo “excesso de livros, de escritores, contra uma suposta carência de leitores”. Atarantados, os donos das grandes empresas – como a Companhia das Letras, a Record e outras poderosas holdings do gênero – confessam estar naquela situação “do aprendiz de feiticeiro”: não sabem o que fazer com a enchente que eles próprios desencadearam e lamentam a despesa alta com armazenamento em seus galpões atulhados.

“O Brasil não produz livros demais, o Brasil produz leitores de menos”, diz o articulista, denunciando os paradoxos envolvidos no sistema atual, a precariedade das estatísticas manipuladas para servirem a um falso triunfalismo de “vendas fabulosas”, de “acesso de classes C e D ao mundo cultural”, quando o que realmente existe é um consumismo desenfreado que, em sua opinião, é somente “um lamentável desperdício econômico e cultural”. E argumenta: não se sabe ao certo qual o tamanho do mercado consumidor do livro. Parece que não chegaria a 20 milhões de leitores – mas “mesmo se fossem 30 milhões seria igualmente vergonhoso”, em relação ao total da população, em seus mais de 200 milhões de pessoas. E pergunta: “E os outros 170 ou 180 milhões, onde estão? Estão anestesiados pela sociedade do espetáculo?”

Não estão. Eis tudo. Na crise total em que se debate o sistema do livro, o escritor “autêntico” (hoje também designado como “literário”) é o principal prejudicado, porque não pode se sujeitar apenas a urgências mercadológicas, e mesmo a imposições de caráter ideológico e político que também ocorrem em países como o nosso. Ele necessita de tempo, reflexão, maturação e, principalmente, de liberdade e de condições materiais adequadas, para poder criar algo que valha a pena ser escrito e publicado. Enquanto isso, editores, agentes literários e livreiros se enredam cada vez mais em planilhas de vendagem, verrumando o cérebro em busca de novas estratégias de marketing, ou armando colossais holdings inchadas de capital estrangeiro, distanciando-se cada vez mais do único elemento imprescindível do setor produtivo do livro – o escritor.

Paradoxalmente, acabam por sabotar seus próprios esforços, seu propósito de conquista a todo custo do elemento que está na outra ponta da cadeia de produção – o leitor. Não conseguem a formação e a manutenção de um significativo e constante público leitor. Esse grande desperdício de investimentos marqueteiros resulta apenas no superespetáculo do “vazio”, do “nada”, a consagração do efêmero, da mediocridade, da agitação oca, que viradas culturais, bienais e outros carnavais nos oferecem. Produtos e emblemas desta nossa “era do vazio”, do “império do efêmero” – glorificada pelos apóstolos do hedonismo, do consumismo e de uma “nova individualização”, como o bimbalhante autor francês Gilles Lipovetsky, cujos livros, é certo, atingem também vendagens fabulosas.

Há vinte anos, entre 1993 e 2000, tive a ocasião de realizar para a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo um trabalho importante – a organização e apresentação de quatro volumes do livro/dossiê O Escritor nas Bibliotecas: Diálogos e Debates, relativos ao programa instalado por Mário Chamie em 1981 – do qual eu já participara – e que, na década de 1990, prosseguia sob a gestão de Rodolfo Konder, falecido em maio deste ano. À medida que transcrevia as palestras de um grande número de escritores – de vários tipos, e vindos de diversas regiões do Brasil – fui me dando conta do rumoroso clamor de descontentamento, perplexidade, desorientação, que se levantava de seus depoimentos. Foi a época em que já todos nós pressentíamos a “invasão dos bárbaros” propiciada pela massificação do ensino, pelo sucateamento da literatura e das artes em geral, desvalorização e retirada das disciplinas humanas do currículo universitário.

Saber descartar

Enquanto, em 1995, o ficcionista José J. Veiga, então com 80 anos, se apresentava como “um animal em extinção, um escritor literário”, outras vozes que felizmente continuam a clamar hoje aproveitavam o espaço e o tempo que lhes era concedido para deixarem seu testemunho. O mesmo Sant’Anna já dizia, em 1993: “Foi este o século em que se viveu ideologicamente no sentido mais partidário do termo. Tivemos um conceito de história que afetou nossos gestos mais cotidianos e nossa produção intelectual. A ideologia marcou a atitude fascista presente nos dois lados, tanto a esquerda como a direita, pois o stalinismo foi apenas uma outra face do fascismo-nazismo”. E ainda: “Se o Brasil quiser entrar no século 21 como um país decente, só o poderá fazer pela porta da leitura e do livro”. O escritor e jornalista Álvaro Alves de Faria é mais radical: “Nesta virada de século, a literatura brasileira se não está inteiramente esfacelada está bem perto de se tornar sucata. O pessimismo pode ser um exagero, mas existe. O escritor brasileiro é um esquecido dentro de seu próprio país”.

Revisito esses livros e verifico, duas décadas depois, a importância do levantamento então feito “ao vivo”, do panorama literário – e pela internet fico sabendo que essa coleção faz parte hoje do acervo referencial de várias bibliotecas universitárias norte-americanas. No Brasil ela pode ainda ser encontrada, penso, na rede pública de bibliotecas paulistas, pelo menos, e com certeza no único setor livreiro que ainda guarda características intelectuais: o aprazível e seleto mundo dos sebos.

Uma comparação necessária e possível: o estado de crise do mundo dos livros, há 20, 40, ou 50 anos, e hoje. A ampliação da crise, o acréscimo de elementos – e também de possibilidades de solução, claro. Mas será trabalho minucioso e penoso, não pode ser feito de afogadilho, em meros artigos. No entanto, já merecem reflexão alguns fatores bem caracterizados. Por exemplo, o distanciamento cada vez maior entre editor e autor. Continuam a inexistir hoje editores do tipo dos velhos Monteiro Lobato, José Olympio, Affonso Schmidt e Ênio Silveira, que gostavam do convívio, então indispensável, com o escritor – que liam e escolhiam eles próprios seus livros, davam sugestões, pediam mesmo a escritores muito jovens que fossem encontrá-los, interessavam-se por suas carreiras.

Eram intelectuais – e não meramente comerciantes. Hoje, mesmo escritores cotados e respeitados sentem a impossibilidade de seguir o curso de suas edições, de discutir seu trabalho presente, seus projetos, sentir o apoio dos que os publicam, de contar com auxílio na parte de divulgação – em um sistema desonesto, em que resenhas, entrevistas, concursos literários devidamente manipulados, e outros acessórios necessários para a requerida “visibilidade”, são comprados a peso de ouro, ou por influência política, e fatores similares.

Há que se ponderar, também o excesso de produção, e não há como negá-lo. De todos os lados, montanhas de informações, de textos, de aspirantes a escritor – ao ponto que, para Umberto Eco, por exemplo, “a sabedoria hoje consiste em saber descartar”. Brotam de todos os lados miríades de pessoas que querem escrever (o quê, e como, e por quê, não lhes interessa), de muito jovens a velhos barbados babando em suas memórias que na maioria dos casos só interessam a eles próprios. Os jovens, principalmente, não sabem – nunca dizem a eles – que para escrever algo que valha a pena é requerido talento, e mais do que talento, muito preparo cultural e pessoal mesmo, um processo de “maturação”, e que é preciso “ter o que dizer e saber dizê-lo”. São patéticos esses jovens, com os quais tenho me deparado em cursos ou no convívio social – estão apenas seduzidos pelos ouropéis do superespetáculo (é bonito ser escritor, é uma profissão que pode dar glória e dinheiro facilmente, pensam). Mas não é patético, é fraudulento, criminoso, o encorajamento, o direcionamento deles por parte de editores, resenhistas (que não são mais “críticos literários”, categoria mais séria e hoje extinta) e alguns escritores de massas. Estou pensando, por exemplo, em um artigo de resposta, escrito por uma das escritoras desse tipo, à pergunta clássica de um jovem aspirante: “Como fazer para me tornar um escritor?” Poderia ser tomada, essa resposta, por uma carta comercial institucionalizada, porque omite qualquer referência ou parâmetro cultural ao “produto-livro”, que poderia ser substituído por meias, laranjas, preservativos, sabonetes, qualquer coisa. Limita-se a enumerar meios de contatar editoras, de orçar despesas, planejar distribuição, aparecer na mídia etc.

 


 

O desempenho do setor

São números de encher os olhos: conforme estudos da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) da Universidade de São Paulo (USP), em 2013 as editoras brasileiras comercializaram 279,6 milhões de livros, um salto de 4,13% em relação ao movimento de 2012. Já a compra de exemplares pelo governo experimentou um incremento da ordem de 20,41%, indo de 166,35 milhões de unidades, em 2012, para 200,30 milhões no ano passado. A venda de e-books, por sua vez, se elevou em 225,13% de 2012 para 2013; contudo, ainda representa uma parcela muito pequena do faturamento total do setor.

Ainda de acordo com a Fipe, o faturamento do setor (mercado e vendas para o Estado) obteve um crescimento nominal de 7,52% em 2013, cravando em R$ 5,35 bilhões, um avanço real de 1,52% com base na variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de 5,91% no período. “Se desconsideradas as compras feitas pelo governo, o crescimento nominal das editoras foi de 5,90%. Ou seja, as vendas ao mercado não sofreram variação, dado que o crescimento real ficou em 0%”, expõe a Câmara Brasileira do Livro (CBL).

Outra interessante constatação da pesquisa revelou que o preço médio constante do livro apresentou uma queda de 4%. Todavia, o preço médio corrente cresceu 1,70% em 2013, em comparação com o ano anterior. “O subsetor que apresentou maior elevação dos preços foi o dos livros Religiosos (14,60%), seguido pelos Científicos, Técnicos e Profissionais – CTP (8,74%) e Didáticos (4,70%). Já o subsetor Obras Gerais amargou um recuo de 2,94%”, esclarece a Fipe.

Os números que medem o volume de livros comercializados poderiam ser mais encorpados, assim como o número de leitores, que poderia ser mais representativo, livrando o Brasil da incômoda situação de país que lê pouco. Nosso índice de leitura é baixo: 1,8 livro por habitante no período de um ano, incluindo aqui a categoria didática. Na Colômbia a média é de 2,4 livros; na Inglaterra e nos Estados Unidos, de cinco; e na França, de sete. Em 2012, em conformidade com os dados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), o Brasil ocupou o 55º lugar no quesito leitura, ficando atrás dos vizinhos Chile e Uruguai.

Problema de ordem cultural? Por que, afinal, os brasileiros não são afeitos à leitura? Estudos garantem que a questão é mais educacional do que cultural, diante do fato de que a maior parte dos pais não cultiva o gosto pela leitura e que, portanto, é preciso criar o hábito nos bancos escolares. O escritor Hernani Donato, falecido em novembro de 2012, dizia que “se as escolas, diariamente, afincadamente, sabiamente, ensinassem a ler para além das lições básicas e a estimar a língua materna, a criatividade e a riqueza do saber pelo saber, haveria mais leitores”.

Acontecimentos como a 23ª edição da Bienal Internacional do Livro de São Paulo, realizada entre os dias 22 e 31 de agosto deste ano pela CBL com a parceria do Sesc São Paulo na curadoria da programação cultural, são uma mão na roda como estímulo à leitura. Segundo a CBL, 720 mil pessoas marcaram presença nos nove espaços do panorama cultural do evento, tais como Arena Cultural, Cozinhando com Palavras, Escola do Livro, Espaço Imaginário, Salão de Ideias, BiblioSesc com Praça da Palavra e a Praça de Histórias, Anfiteatro e Edições Sesc São Paulo.