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São Paulo, o espelho de um país desigual

Leda Maria Paulani / Foto: Bruno Leite
Leda Maria Paulani / Foto: Bruno Leite

Leda Maria Paulani, economista formada pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, onde é professora titular, tem doutorado em teoria econômica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da USP e graduação em comunicação social pela mesma universidade. É também pesquisadora da Fapesp e do CNPq e foi assessora-chefe da Secretaria de Finanças da Prefeitura de São Paulo e presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política. Em 2011 foi condecorada pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo com a comenda Professor Mario Henrique Simonsen.
Desde janeiro de 2013 é secretária municipal de Planejamento, Orçamento e Gestão da prefeitura paulistana.
A palestra de Leda Maria Paulani, com o tema “O Futuro de São Paulo”, foi realizada no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 8 de maio de 2014.

Existem dois brasis, somos um país cindido. O primeiro não reúne mais do que 15% da população, é um país civilizado e seus habitantes, em geral brancos, têm educação e saúde de qualidade, moram em habitações decentes, são bem informados e têm acesso a cultura e lazer. Possuem também uma renda estável em função de um bom status de riqueza ou bons empregos. Por isso são respeitados e tratados como cidadãos. Apesar de sofrerem com o crescimento da violência, principalmente urbana, não são vítimas de violência policial, conhecem seus direitos e sabem defendê-los.

O segundo, onde se encontram mais de 150 milhões de pessoas, é um país selvagem. Seus habitantes, em sua maioria negros ou mulatos, dependem de educação e saúde públicas, em geral de qualidade ruim, vivem em habitações inadequadas, são mal informados, não têm acesso a cultura e lazer, sobrevivem em empregos precários e mal pagos e possuem estoque de riqueza próximo de zero. São constantemente desrespeitados e discriminados, uma discriminação que começa pela cor, passa pelo endereço e chega ao tipo de ocupação. Sofrem de dupla violência porque, diferentemente dos habitantes do Brasil civilizado, enfrentam também a violência policial, não estão a par de seus direitos e não têm meios nem sabem como defendê-los.

Na última década ocorreu redução da desigualdade, mas mesmo assim a realidade dos dois brasis permanece, pois o país continua sendo um dos mais desiguais do planeta – está no grupo dos 15 países mais desiguais do mundo. Além disso, estudos sobre a desigualdade de riqueza apontam para um índice de Gini em torno de assustadores 0,85 a 0,9. Quanto mais próximo de 1, mais desigual.

São Paulo é o espelho desse Brasil cindido. É a cidade mais rica do país e da América Latina. Com 5,8% da população, 11 milhões de habitantes, é responsável por 12% do PIB e apresenta uma renda per capita de cerca de US$ 21 mil, próxima da de países desenvolvidos e muito maior que a média brasileira, em torno de US$ 10,4 mil. Apesar disso, o índice de Gini paulistano de renda é maior do que o brasileiro, ou seja, São Paulo é mais desigual do que a média do Brasil como um todo, 0,57 contra 0,56.

Assim, 15% da população de São Paulo, 1,65 milhão de pessoas, têm renda per capita igual ou inferior a US$ 1,2 mil dólares, semelhante à de países como Lesoto, Camarões e Paquistão. Pior: mais de 100 mil pessoas têm renda per capita inferior a US$ 400, semelhante à de países como Serra Leoa e Etiópia, sendo que mais de 15 mil deles são moradores de rua.

O abismo socioeconômico se apresenta de maneira muito clara na relação entre as distribuições do emprego e da moradia no território paulistano. Enquanto as seis subprefeituras que formam o centro expandido, contornadas pelo minianel viário, concentram 57% dos empregos, 52% dos estabelecimentos formais e apenas 17% dos habitantes do município, as restantes 26 subprefeituras concentram 83% da população e têm apenas 43% dos empregos.

A necessidade de deslocamento, que gera essa desconexão entre os espaços de moradia e os espaços de emprego, produz um gigantesco problema de mobilidade, principalmente se considerarmos que a cidade tem uma área enorme de cerca de 1,5 mil quilômetros quadrados. O espaço viário da cidade, de cerca de 17 mil quilômetros, é destinado fundamentalmente ao transporte individual, que não atende a mais do que um quarto da população. Dos três quartos que usam o transporte público, 75% utilizam ônibus, uma vez que a rede de metrô é bastante reduzida, cerca de 70 quilômetros. Os usuários do transporte público são fundamentalmente aqueles de renda mais baixa. Somente 23% dessas viagens são de uma população com renda mais elevada.

Ao longo das últimas décadas, as políticas públicas de um modo geral se combinaram para incentivar o transporte individual em prejuízo do público. Nas cidades os investimentos em infraestrutura de transporte concentraram-se na ampliação da malha viária, em vez de rede metroviária ou de linhas de BRT, o Bus Rapid Transit, um tipo de ônibus que trafega em corredor, funcionando praticamente como um trem. Além disso, houve ainda uma política de subsídios para a aquisição de automóvel. Entre 2001 e 2012, a frota da cidade aumentou espantosos 55%. Cresceu o problema da mobilidade e se aprofundou a desigualdade.

Desigualdade espacial

A relação entre o número de empregos e a população moradora nas diferentes regiões da cidade, que tem como consequência a falta de mobilidade que vivemos, é a forma mais sintética de dizer que a enorme desigualdade social de São Paulo toma a forma também de uma desigualdade espacial. Ela está presente em todos os lados, da paisagem urbana deteriorada das periferias aos ambientes extremamente luxuosos dos bairros ricos.

Duas outras áreas expressam de modo exemplar essa desigualdade espacial: saúde e cultura. A distribuição dos equipamentos de saúde em São Paulo acompanha a distribuição dos empregos e dos estabelecimentos formais. Além disso, a concentração cresce conforme o grau de especialização. Quanto mais complexo, mais concentrado ele é na área central.

A cidade de São Paulo é hoje um centro de consumo e produção cultural de relevância nacional e internacional. Sede de milhares de grandes e pequenos eventos de enorme diversidade, a cidade tem mais de 800 equipamentos culturais, entre casas de cultura, centros culturais, espaços culturais, bibliotecas, galerias de arte, museus, teatros e salas de cinema. Essa fartura na oferta, no entanto, não é bem distribuída, pelo contrário, dos 96 distritos do município, 60 não possuem centro cultural algum, 59 não têm cinema, embora existam 55 desses na cidade, com cerca de 260 salas, e quase um quarto deles não dispõe de qualquer biblioteca pública. Os poucos pontos fora do centro são CEUs, os Centros Educacionais Unificados, que têm equipamentos de cultura, teatro, biblioteca etc. e que foram realizados na gestão da ex-prefeita Marta Suplicy.

A saúde e a cultura são áreas exemplares da desigualdade espacial na cidade, desigualdade que fica gritante quando o tema é moradia. Uma grande quantidade de domicílios é assolada pela ausência total ou parcial de infraestrutura, pela irregularidade jurídica ou fundiária da posse ou pela ausência de espaço interno suficiente para as funções de morar. O município apresenta um total de 989,8 mil, contendo algum tipo de irregularidade, o que significa que cerca de um terço da população vive em habitações precárias ou inadequadas, sendo 43% em favelas, 43% em loteamentos irregulares e o restante em cortiços e outros tipos de habitação irregular. Fora o déficit por incremento populacional, a cidade tem hoje um déficit por substituição de 133 mil moradias, quer dizer, no mínimo precisa de 133 mil domicílios para poder alocar, por exemplo, famílias que moram juntas porque não têm outra casa disponível e assim por diante.

A profunda desigualdade nas condições de moradia é o aspecto mais visível da desigualdade espacial, pois 90% da inadequação habitacional está concentrada nas zonas periféricas. Na região oeste, a mais rica da cidade, praticamente não há inadequação habitacional, o pouco que há está fora do centro expandido. A existência de duas São Paulo, o que torna a cidade o espelho do Brasil, toma aqui na paisagem urbana sua forma concreta.

Um resumo de toda essa situação pode ser descrito assim: uma parcela substantiva da população paulistana praticamente não tem direito à cidade, mora mal, longe do trabalho e sofre com a falta de mobilidade de forma desproporcional, pois gasta no deslocamento o tempo que seria de lazer, convivência familiar e aprimoramento pessoal. Além disso, como há escassez de equipamentos de saúde e de cultura, nas áreas onde mora, o acesso aos serviços de saúde e equipamentos culturais custa proporcionalmente muito mais do que para a parcela mais rica e mais adequadamente localizada da população. No caso da educação, apesar de não haver problemas de oferta no nível fundamental, a não ser na faixa de zero a três anos, que são as creches, há uma enorme falha na qualidade do ensino público.

Exclusão territorial

Diante dessa realidade tão desagradável, pergunta-se o que é possível fazer. O diagnóstico é que pelo menos três quartos da população de São Paulo moram na cidade, mas não têm direito a ela pelas várias razões que mostramos aqui. Então o que o governo poderia fazer? O programa de governo da atual prefeitura, elaborado com a participação de grupos profissionais e movimentos sociais, propôs derrubar o muro que separa a cidade rica da cidade pobre. Nos últimos anos, com a retomada do crescimento econômico, o aumento do emprego e a implantação de programas sociais, a situação econômica da população melhorou, mas a falta de uma política urbana, fundiária e habitacional no município, associada à intensa especulação imobiliária, agravou a exclusão territorial.

Cada novo prefeito de São Paulo tem a obrigação legal de apresentar à população, até 90 dias depois da posse, um Programa de Metas, no qual devem estar contidos os principais objetivos, as iniciativas, programas e ações a serem desenvolvidos e os novos equipamentos públicos a serem entregues à população. A atual gestão aproveitou essa obrigação para inscrever no programa as medidas de curto e médio prazo que podem começar a transformar a situação de desigualdade socioterritorial de São Paulo.

As medidas de longo prazo estão em sua maior parte inscritas no Plano Diretor Estratégico, peça legal aprovada em primeira votação na Câmara dos Vereadores e que deverá definir os rumos e as regras para o desenvolvimento da cidade nos próximos dez anos. As 100 metas inicialmente apresentadas, que se tornaram 123 depois do debate público com a população, foram articuladas em três eixos fundamentais. Primeiro, compromisso com os direitos sociais e civis. Segundo, desenvolvimento econômico sustentável com redução da desigualdade. Terceiro, gestão descentralizada, participativa e transparente. Esse programa foi apresentado à população e discutido em mais de 90 audiências públicas na cidade de São Paulo. Boa parte das sugestões foi incorporada a ele. O Programa de Metas é uma atribuição da pasta que eu dirijo, a Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Gestão [Sempla], responsável por elaborar esse programa.

As metas também aparecem organizadas segundo cinco articulações territoriais. São Paulo, pouca gente sabe, tem a quinta maior floresta urbana do mundo, na Cantareira, que precisa ser preservada, além de se reduzir a desigualdade socioterritorial da cidade. Como ilustração, cabe mencionar a primeira dessas cinco articulações. Trata-se justamente do resgate da cidadania nos territórios vulneráveis.

Uma das metas era elevar em 150 quilômetros a quantidade de faixas exclusivas de ônibus, até o final da gestão. Como medida de curto prazo e em função dos movimentos de junho de 2013, foram criados 291,4 quilômetros dessas faixas até o final do ano, superando em apenas um ano a meta total da gestão. Além disso, como medida de médio prazo prevista no programa, mais 150 quilômetros de corredores serão construídos até 2016, dando oportunidade para que, na ausência de investimentos mais substantivos no sistema metroviário, que não estão sob o arbítrio da prefeitura, a cidade possa experimentar, por exemplo, o sistema BRT.

Evidentemente, medidas como essas, ainda que minorem as consequências da desigualdade socioterritorial da cidade, não atacam o problema em si. Este só pode ser combatido com medidas que em sua maioria produzem efeitos que demoram um pouco a chegar, pois devem ser resultado de um planejamento, que permita, no longo prazo, a desconexão espacial entre emprego e moradia e a redução da desigualdade socioterritorial. Isso implica em cinco objetivos que devem ser alcançados. Primeiro, valorizar os territórios periféricos, dotando-os de equipamentos públicos e melhorando a qualidade dos serviços prestados. Segundo, levar empregos onde eles não existem hoje e construir moradias populares nos locais em que os empregos se concentram, no caso de São Paulo, no centro expandido. Terceiro, incentivar o adensamento populacional com moradias de usos mistos nos eixos urbanos dotados de infraestrutura viária e de transporte público de alta e média capacidade, reduzindo o adensamento fora dos eixos. Quarto, dirigir o crescimento da cidade de modo a desestimular a gentrificação. Gentrificação é um processo em que o território vai se tornando mais valorizado e acaba expulsando as populações de baixa renda; é um termo usado pelos urbanistas. Quinto, construir instrumentos que permitam ao poder público se apropriar das mais-valias urbanas, criadas no processo de desenvolvimento urbano, utilizando-as para torná-lo mais equilibrado e justo.

Incentivos fiscais

Com relação ao primeiro item, a distribuição dos novos equipamentos tem como diretriz justamente o preenchimento da lacuna que existe nas regiões mais pobres, tornando-as assim menos distantes das regiões mais bem aquinhoadas da cidade. Para aproximar emprego e moradia, que é o segundo item da lista, o programa prevê que das 55 mil moradias populares a serem entregues até o final da gestão pelo menos 10 mil estejam no centro expandido. E uma agressiva política de incentivos fiscais para levar empresas e estabelecimentos formais para a zona leste da cidade, de todas a mais carente de empregos. Combinado com a política de incentivos, um manejo especial do instrumento da outorga onerosa do direito de construir para alcançar o mesmo objetivo. Adicionalmente, para reduzir a demanda de mobilidade, está em andamento uma agressiva política de desestímulo ao transporte individual e de incentivo ao transporte público, além da construção de corredores de ônibus.

Para incentivar o adensamento populacional nas áreas dotadas de infraestrutura urbana, viária e de transporte público, o terceiro item, a prefeitura conta com a aprovação em segunda votação pela Câmara dos Vereadores do novo Plano Diretor Estratégico. O direito à cidade aparece como o objetivo maior desse plano, que prevê um novo regramento urbanístico ao longo da rede de eixos de transporte coletivo de média e alta capacidade e macrozonas de restruturação urbana, como o Arco do Futuro. O Arco, que constitui também uma das articulações territoriais do Programa de Metas, busca modificar o modelo radial de cidade que até agora vigorou, onde tudo converge para o centro. A ideia é construir uma macrozona de restruturação urbana, que vá desmontando esse modelo radial de cidade e implantando outro modelo de organização urbanística.

E o novo Plano Diretor permitirá, por meio da conjugação de instrumentos fiscais, como o IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano] progressivo no tempo, e urbanísticos, como o coeficiente de aproveitamento, a outorga onerosa do direito de construir e a demarcação das zonas especiais de interesse social, desestimulando o comportamento especulativo em relação à terra, que é o quarto item. A gentrificação, em especial nas macroáreas de restruturação urbana, será desincentivada por meio de instrumentos como a cota máxima de terreno, que limita o tamanho máximo da área construída por unidade habitacional, para não causar um processo de gentrificação nessas macroáreas de restruturação urbana. Finalmente, é também o novo Plano Diretor que – por meio da utilização dos instrumentos urbanísticos já citados, além de outros como a cota de solidariedade, que é uma doação de terrenos ou pagamento em dinheiro para produção de habitação de interesse social como contrapartida da liberação de grandes empreendimentos – permitirá ao poder público apropriar-se o mais possível das mais-valias urbanas e atuar como contrapeso às forças do mercado.

Obstáculos e desafios

Uma parte significativa das mudanças necessárias para reduzir a desigualdade socioterritorial da cidade e mudar seu futuro são medidas cujos resultados só se efetivam no longo prazo, a partir do funcionamento de instrumentos de planejamento urbano, como o Plano Diretor Estratégico, a política de incentivos fiscais e outros. Elas dependem também da ação e da intervenção do poder público, mas seu papel é muito mais o de normatizador e regulador, buscando direcionar a dinâmica natural da metrópole aos objetivos de redução dos desequilíbrios. Então não é propriamente uma iniciativa do poder público que envolva a necessidade de um grande volume de recursos.

Outras mudanças, porém, podem ser alcançadas com medidas de curto e médio prazo, como aquelas previstas em instrumentos que incluem o Programa de Metas e a lei orçamentária anual. Neste último caso, a disponibilidade de recursos torna-se uma variável crucial. Sem eles, ou com uma situação financeira de muita restrição, o poder público fica de mãos atadas. A cidade de São Paulo sofre desde o ano 2000 com o peso de uma enorme dívida, hoje beirando R$ 60 bilhões. Quando o contrato com a União foi assinado, o débito montava a R$ 11 bilhões. De lá para cá, pagamos cerca de R$ 28 bilhões e devemos hoje R$ 56,5 bilhões. A dívida é impagável. Sem sua resolução continuaremos a investir anualmente um volume de recursos per capita que equivale à metade do que investe o Rio de Janeiro e a quase um terço do que investe Belo Horizonte. Esse é o primeiro fator que se coloca como obstáculo para que os objetivos do Programa de Metas possam ser atingidos.

O segundo fator é a impossibilidade de lançarmos o IPTU a partir da nova Planta Genérica de Valores [PGV], aprovada pela Câmara no final de 2013, a Lei 15.889/2013, mas proibida pela Justiça paulista. A revisão da PGV é uma obrigação legal, a prefeitura nada mais fez do que cumprir a lei e o fez buscando a justiça social. Se a nova lei pudesse ter sido implementada, mais 30 mil novos contribuintes ficariam isentos, mais de 200 mil teriam redução nominal nos valores pagos e quase 300 mil teriam reajuste inferior à inflação, sendo que a enorme maioria desses imóveis encontra-se nas regiões mais pobres da cidade. Com o acolhimento pela Justiça da liminar impetrada pela Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], junto com o PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira], contra a medida, todos esses contribuintes pagarão o mesmo IPTU do ano passado, reajustado pela inflação.

A perda de mais de R$ 800 milhões em relação ao previsto tem consequências deletérias para várias áreas, em particular para a já imensamente reduzida capacidade de investir da municipalidade. Só para a educação, considerando que temos de gastar 31% da receita de tributos com educação pela nossa lei municipal – 25% são constitucionais –, a gente perde R$ 248 milhões, que vão afetar a construção, operação e manutenção de equipamentos educacionais. O programa de criação de creches fica complicado com isso.

Na saúde perdem-se cerca de R$ 120 milhões para a construção, ampliação e reforma de equipamentos de saúde, operação de assistência farmacêutica, administração de material médico-hospitalar, o Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência]. E várias outras ações e investimentos de proteção especial à população em situação de rua, crianças e adolescentes em risco, operação e manutenção de equipamentos culturais, o atendimento habitacional, o transporte de pessoas com deficiência etc.

O terceiro fator que age na mesma direção é a irresolução do complexo problema de financiamento do transporte público. Uma proposta é a municipalização da Cide, a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, que é federal, cobrada como parte do preço dos combustíveis. A ideia é que o transporte individual subsidie o público. As manifestações de junho de 2013 trouxeram o problema à tona. Para o poder público municipal, a não resolução da questão implicou uma elevação de gastos com o subsídio à tarifa de mais de R$ 200 milhões em 2013 e a previsão de um gasto adicional de mais R$ 600 milhões para 2014. Mais uma vez os maiores prejudicados com essa situação são os investimentos necessários para atenuar os imensos desequilíbrios sociais da cidade.

Precatórios

Apesar de todas essas dificuldades, em termos absolutos 2013 foi praticamente o ano de maior investimento da cidade de São Paulo. Foi, dentro da história do município, a taxa de investimento mais elevada num primeiro ano de gestão, mas em números absolutos o maior investimento feito na cidade.

O último fator a gerar enormes incertezas sobre a disponibilidade de recursos para fazer os investimentos previstos no Programa de Metas é a despesa com precatórios. O município de São Paulo é também o campeão nesse tipo de dívida, com um volume que ronda a casa dos R$ 17 bilhões. A determinação do STF [Supremo Tribunal Federal] que julgou inconstitucional a Emenda Constitucional 62, colocou uma nuvem de incerteza sobre o futuro dessa despesa. Em 2013 foram pagos R$ 1,1 bilhão. Em 2014, enquanto a modulação da sentença do STF não vem, continuam a valer as regras anteriores e a despesa prevista ronda a casa de R$ 1,5 bilhão, já muitíssimo elevada em relação ao orçamento do município. Várias gestões estão sendo feitas, não só pela cidade de São Paulo como por outros entes da federação que também têm dívidas elevadas com precatórios, como os estados, principalmente, para que o STF faça uma modulação dessa sentença que não seja danosa demais.

Em 2013, a prefeitura paulistana conseguiu cortar despesas na ordem de R$ 800 milhões, o que permitiu fazer aquele investimento recorde, apesar da escassez de recursos. Mas o que se pode obter desse tipo de esforço tem um limite. Se os demais problemas não forem resolvidos, o futuro da cidade ficará comprometido.

Debate

NEY FIGUEIREDO – A desigualdade de renda é um problema que está trazendo preocupação no mundo todo. Em setembro foi lançado na França um livro, de Thomas Piketty, sobre o capitalismo do século 21, apresentando o fenômeno da concentração de renda que está se agravando no planeta. Na França não teve muito sucesso, mas nos Estados Unidos, sim, revelando que nesse país a situação era muito pior do que na Europa. Evidentemente, outros economistas disseram que o capitalismo, diante de crises, sempre teve meios de encontrar uma saída e deve haver uma para isso também. Então não é um problema só de São Paulo.
Outro ponto é a questão viária, o transporte público. É óbvio que o Brasil não investiu onde tinha de investir, no metrô. E o governo federal fez uma política de incentivo ao automóvel, desonerando tributos e facilitando o financiamento para o consumidor. Apesar dessa política de incentivo federal, o prefeito Fernando Haddad dificulta o uso do automóvel.

LEDA – O que Piketty mostra no livro é uma visão de longo prazo dos resultados do desenvolvimento capitalista no mundo. Não cheguei a ler a obra, apenas algumas resenhas, a favor e contrárias, mas parece que há uma enorme pesquisa de dados históricos, longas séries temporais que fundamentam algumas de suas conclusões. É evidente que se trata de um problema mundial, mas pelo menos nos últimos dez anos, tivemos no Brasil uma brutal queda da desigualdade de renda. O responsável por isso, ao contrário do que se pensa, não foi apenas o Bolsa Família e as políticas de renda compensatória, mas o aumento real do salário-mínimo. Hoje temos cerca de 30 milhões de benefícios do INSS no valor de um salário-mínimo. Multiplicando esse número pelo tamanho médio da família brasileira, chegamos a um contingente de quase 100 milhões de pessoas beneficiadas. Isso faz uma enorme diferença.
Atualmente, o grande programa de renda no país é a Previdência Social com os benefícios que paga para os trabalhadores rurais, para os idosos e portadores de deficiência sem renda etc. Então a desigualdade, no caso de São Paulo, tem sua principal face na desigualdade territorial. Foi isso que quis destacar, a cidade é desequilibrada. Foi crescendo, tocada por sua própria dinâmica e se tornando agudamente desequilibrada do ponto de vista territorial e espacial. Isso já estava muito claro quando da campanha do prefeito, que foi tentando tomar medidas no curto, médio e longo prazo para reduzir esse desequilíbrio socioterritorial. Nosso objetivo é esse, reduzir o desequilíbrio socioterritorial da cidade.
Com relação ao conflito entre a orientação da política econômica federal, que incentivou o automóvel, e as restrições impostas pelo município, é preciso em primeiro lugar contextualizar. A política de redução de tributos foi adotada no bojo da crise de 2007-2008, quando Lula reduziu o IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados], não só dos automóveis, mas também de eletrodomésticos. É evidente que a cidade de São Paulo, que já tem uma frota de 5,5 milhões de automóveis, precisa enfrentar essa situação, que é muito desigual, pois três quartos da população, que anda de ônibus, têm 17% do espaço para se deslocar, enquanto todo o restante do espaço fica para o transporte individual. São números de agosto do ano passado. São Paulo não pode mais apostar no transporte individual, simplesmente porque há uma restrição de espaço.

NEY – Como ficam as motocicletas nesse conjunto de dados?

LEDA – A motocicleta é transporte individual, mas hoje fundamentalmente é um meio de trabalho. Na realidade é um meio de produção nos serviços de delivery, entrega de documentos etc.

LENINA POMERANZ – Trabalhei muitos anos em planejamento urbano e faço parte de um grupo que discute a mobilidade urbana no Butantã. O que me chama a atenção é o seguinte: se são cento e não sei quantas metas, onde está o foco estratégico fundamental? A mobilidade urbana, penso que esse é o foco, mas você falou também das moradias. Nas discussões de que participo fica muito claro, com base em minha experiência, que qualquer plano, se não tiver foco nem instrumento de implementação e controle, fica na gaveta. Não se trata só de recursos nem de gestão. Então, se é para fazer alguma modificação, precisamos pensar seriamente em foco, no que atacar.

LEDA – São 123 metas, mas quero lembrar que o Programa de Metas do prefeito Kassab tinha 700 e não sei quantas.

ISAAC JARDANOVSKI – 220.

LEDA – Fizemos um enorme esforço para que o Programa de Metas não fosse só um listão. Era preciso dar organicidade ao programa. Apesar de se reduzir concretamente à construção de corredores de ônibus, mais UBS [Unidade Básica de Saúde], três novos hospitais etc., ele está dentro de uma concepção da cidade com organicidade e foco. E o foco é a mobilidade, que está diretamente associada à desconexão entre moradia e emprego. Essa desconexão é que agrava a mobilidade. Então é preciso atacar nas duas frentes. Para isso há vários instrumentos de curto, médio e longo prazo. No curto é mais difícil, no médio prazo, por exemplo, temos um agressivo programa de incentivos fiscais na zona leste, que é a mais carente de empregos. A zona oeste é a mais rica, onde mora apenas 17% da população. Os outros 83% residem em regiões que não têm emprego ou onde ele é muito reduzido.
Outras medidas dizem respeito a direcionar a dinâmica natural da cidade para evitar resultados deletérios. O novo Plano Diretor busca justamente fortalecer essas macrozonas de restruturação urbana, uma delas é o Arco do Futuro, baseado nos eixos de transporte de alta e média capacidade. A ideia é adensar esses eixos e deixar os miolos dos bairros respirando, ou seja, coibir, mesmo nas regiões mais ricas, a reprodução dos paliteiros de Moema, o bairro que não respira.
O plano também tem como objetivo levar moradia para onde estão os empregos e vice-versa e há vários instrumentos para isso. O incentivo fiscal procura criar empregos onde a população mora e a construção de moradias populares na região do centro expandido tenta trazer a população para onde estão os empregos. Se conseguirmos atuar no efeito e também na causa do problema da mobilidade, podemos ter sucesso. Talvez o prefeito não se beneficie politicamente disso, mas ele vai deixar um legado para a cidade com esse Plano Diretor e as medidas que vão ser tomadas daqui até o final da gestão. Eu acho que esse é o foco, Lenina. Agora, quando você vai construir um Programa de Metas, não tem como deixar metas da saúde de fora, a saúde também é muito desigual, então você precisa ter metas de saúde etc. Por isso houve esse esforço de articular nos três eixos, os três eixos são o foco.
O respeito aos direitos sociais e civis, o desenvolvimento econômico sustentável com a redução da desigualdade e a gestão democrática, transparente e participativa são os três eixos que estruturam o Programa de Metas. As secretarias estão sendo cobradas por metas, há um sistema de monitoramento que é público e que vai sendo atualizado periodicamente.
Outra coisa foi articular fortemente o Programa de Metas com o Plano Plurianual, que é outra obrigação legal, e com as leis orçamentárias anuais. Finalmente, a participação. É verdade que as audiências públicas são obrigação legal, mas poderíamos ter feito de outro jeito, porque a lei só diz que tem de ser apresentada à população. Fizemos um programa que inicialmente tinha cem metas articuladas em 21 objetivos estratégicos. Apresentamos à população e quisemos ouvir, ter um retorno. Isso a lei não nos obrigou a fazer e fizemos, porque prezamos justamente a participação.

JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – Existem vários níveis de governo e não se falou aqui do metropolitano. O fenômeno de urbanização no Brasil é violento, a única vantagem que trouxe foi certa restrição à explosão demográfica. Vejam essa área de conurbação, que chamo de Cam-Cam – de Campinas até Campos –, são 40 milhões de habitantes. O enfoque de planejamento urbano no Brasil chegou um pouco atrasado. Quando Brasília foi planejada, o Brasil tinha 125 mil carros. Hoje a cidade tem 1 milhão de veículos.
Começamos a construir metrô em São Paulo e no Rio no final da década de 1960, mas não houve sequência, não se tem persistência em praticamente nada. Por que não fazemos uso de teleconferências, teleducação, telemprego, toda essa tecnologia que não exige a presença das pessoas? Se tivéssemos redes de fibra ótica interligando a cidade não haveria necessidade de deslocamento.
Um exemplo: o governo americano reuniu os maiores sábios para verificar qual era o tamanho das fazendas que seriam necessárias para criar os cavalos que seriam utilizados no transporte urbano das grandes cidades americanas. Foi quando apareceu um louco chamado Henry Ford e inventou o automóvel. O planejamento linear que estamos imaginando pode ser quebrado com novas visões e tecnologias mais modernas.

LEDA – A transformação da cidade de um polo industrial para centro de serviços é mundial, aconteceu com várias grandes cidades. Paulatinamente a indústria vai migrando para outras áreas e a cidade toma outro rumo. O emprego hoje é fundamentalmente na área de serviços. Então é evidente que estamos lidando com uma realidade dinâmica, e a tecnologia é fundamental e vai produzindo grandes transformações no modo de vida. Temos de pensar que esse avanço tecnológico pode ter algum impacto sobre a demanda de mobilidade, por exemplo, que já está acontecendo. Hoje muita gente consegue trabalhar em casa, mas isso ainda é marginal.
O poder público tem uma infraestrutura muito precária, há muita coisa para desenvolver, fizemos um novo modelo de governança e vamos começar a fazer várias coisas, como a digitalização de processos em algumas áreas. Há muitas tarefas que gostaríamos de fazer mais rápido, mas não é possível, porque faltam os recursos necessários.
Outro ponto: infelizmente, vivemos no Brasil uma desmoralização da política, ela deixou de ser uma atividade nobre. Uma pessoa honesta, um cidadão de bem, pensa 50 vezes antes de assumir um cargo público ou se candidatar a alguma coisa. Falo com conhecimento de causa, pois vejo funcionários públicos que não querem assinar nada, coisa nenhuma. É difícil levar adiante um processo. Se quero que algo saia do papel, tenho de ligar para 20 pessoas, as áreas não dão pareceres conclusivos. A política é achincalhada, com razão até, eu diria, pois temos um nível de corrupção muito elevado. Mas é uma dificuldade que vem crescendo até por causa da atuação da mídia: fulano falou que o irmão do primo do vizinho disse que não sei quem fez não sei o quê. Sai na manchete do jornal, na televisão, a pessoa é colocada no foco e perde a boa reputação como cidadã. Então não é só uma questão de burocracia, é a judicialização de tudo.

NEY PRADO – O grande problema é que a Constituição de 1988, quando trata da administração pública, não se conformou em avaliar o desempenho do agente público pela intenção, mas também pelo resultado. Isso significa que, se o resultado da decisão não for produtivo, do ponto de vista do interesse público, ele também pode ser responsabilizado. É que pouca gente sabe disso. E outra coisa pior: no setor privado também existem pessoas rejeitando cargos de conselho de administração. O caso da Petrobras é típico, pessoas de bem como Gerdau, a ministra Ellen Gracie, Pedro Malan e outros estão sendo responsabilizados. Na verdade, temos uma cláusula pétrea que trava a liberdade de decisão.

LUIZ GORNSTEIN – O investimento público passa pelos seguintes personagens pelo menos: Executivo e vários ministérios ou secretarias, Legislativo, Ministério Público, Ministério Público do Trabalho, órgãos do Meio Ambiente, Tribunal de Contas, ONGs e associações de classe patronais. Na Câmara Federal foi aprovada uma medida provisória que se chama Regime Diferenciado de Contratações Públicas [RDC], que transfere para as empreiteiras o planejamento e a execução de projetos de engenharia e arquitetura na área pública, em todos os níveis, pois lhes permite projetar, construir e atestar obras. Quem defende isso diz que vai agilizar as obras públicas, quem critica afirma que o Estado está renunciando à própria capacidade de planejar. Qual seria a melhor solução?

LEDA – Depois de tudo o que falei, fica difícil a resposta. O RDC foi aprovado no contexto da Copa, os investimentos tinham de ser feitos e foi um meio de agilizar os investimentos, transferindo para o setor privado a execução dos projetos. É claro que isso reduz o poder de arbítrio do Estado, porém não creio que não tenhamos inteligência suficiente para criar arranjos institucionais capazes de conferir agilidade a esses processos e ao mesmo tempo garantir o poder do Estado. É uma coisa muito nova, ainda não devidamente testada, seja do ponto de vista da agilidade, que seria o benefício, seja do ponto de vista da perda de poder de arbítrio do Estado. Por um tempo se pensou que o RDC fosse se restringir aos investimentos da Copa, mas foi estendido. É preciso deixar o tempo passar, experimentar mais um pouco para saber das consequências.

JOÃO TOMÁS DO AMARAL – Há algum tempo coordenei a Câmara de Engenharia Civil do CREA [Conselho Regional de Engenharia e Agronomia] e fizemos um levantamento que concluiu que temos uma cidade em que o legal convive com o clandestino. A parte legal não ultrapassa 10%, 90% refere-se à cidade clandestina. Então existe um descompasso muito grande, porque todas as atuações políticas foram feitas para tentar reorganizar a cidade clandestina, porque na legal está tudo relativamente controlado. Na parte clandestina tudo pode ser feito e a fiscalização nem consegue entrar.
Temos diagnósticos em grande quantidade, alguns extremamente necessários e outros repetitivos, mas no fundo parece que há certa inabilidade para chegar a uma solução. As 123 metas não permitem dizer se representam pouco ou muito, mas a cidade está numa urgência muito grande com questões primordiais e uma delas é a manutenção da sua infraestrutura.
Via de regra, São Paulo é colocada nas manchetes como a cidade mais cara do mundo, inclusive na questão dos impostos. O projeto de aumentar os tributos na cidade tinha que ser repensado, porque ao longo dos anos a prefeitura permitiu que a cidade clandestina crescesse e agora temos esse centro expandido ou um pouco mais amplo, alcançando alguns bairros. É importante entender que a outorga onerosa na verdade concentrou a verticalização, tornando-a muito maior. Não digo se é boa ou ruim, mas a tentativa de levá-la para regiões menos favorecidas vai criar zonas de verticalização muito intensas, com sérios impactos viários.

LEDA – Na questão da manutenção da cidade, digo que a municipalidade está refém de algumas grandes prestadoras de serviços, que cobram absurdamente caro e oferecem uma qualidade não adequada, cujo controle não é fácil numa cidade com 1,5 mil quilômetros quadrados. Estamos falando basicamente de varrição, coleta de lixo, limpeza de bocas de lobo. Enfim, foram feitas negociações com essas empresas, elas melhoraram e há uma cobrança maior hoje.
Quanto a São Paulo ser a cidade mais cara do mundo, isso também depende da taxa de câmbio. Hoje os turistas vêm a São Paulo e acham os restaurantes caros. Bons restaurantes são caros. Como nossa moeda ainda é muito valorizada, um estrangeiro dos Estados Unidos ou da Europa acha um absurdo, porque ele espera preços mais em conta. Então precisamos ver como é feita a comparação.
Com relação ao IPTU, São Paulo cobra um dos menores do mundo, considerando as grandes cidades. Nas maiores cidades da Europa, o que se cobra de imposto sobre patrimônio é muito mais do que aqui. No Brasil é quase um crime de lesa-pátria cobrar imposto sobre patrimônio. Vou lembrar o seguinte: as pessoas que reclamam do IPTU provavelmente pagam muito mais de IPVA [Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores]. Quem paga muito IPTU certamente tem dois ou três automóveis, e caros. Eu própria, se juntar os meus dois IPVAs, pago mais do que o IPTU do meu apartamento. E ninguém fala em prender o prefeito por causa do IPVA. Por quê? Porque o aumento do IPVA não precisa de aprovação da Câmara dos Vereadores, ao contrário do IPTU. Tivemos uma enorme valorização imobiliária na cidade e essa mais-valia urbana está sendo inteiramente aproveitada pelo setor privado. O poder público tem instrumentos legais para se apropriar de parte disso e transformar em investimentos que reduzam o desequilíbrio da cidade, mas a Justiça não permite. É uma coisa que me revolta.

TOMÁS – Por falar em IPTU, em Portugal, por exemplo, uma família que tenha uma única residência fica isenta de imposto territorial por oito anos. Desconheço isso no Brasil. Lá a água é mais barata, como a energia, o gás, a telefonia e segue por aí. Quanto à verticalização, muitos terrenos, antes de receberem um prédio, compunham uma unidade habitacional e se cobrava um único imposto. Então num terreno onde se pagava apenas por uma unidade habitacional, hoje, com a verticalização, cobram-se vários IPTUs. E o retorno para a comunidade não é na mesma proporção.

NEY PRADO – O IPTU é um imposto que costumo pagar com boa vontade, porque há a possibilidade de se verificar in loco o que está sendo feito. O grande problema é que temos mais de 60 tributos.

PAULO NATHANAEL PEREIRA DE SOUZA – Sou muito franco em dizer à senhora, pela minha experiência em administração pública, que não acredito num centímetro do que consta desse planejamento. Já desempenhei inúmeros cargos na área municipal, estadual e federal, sempre me deparei com grandes esforços de planejamento, mas parece que este país, este estado e este município já nasceram com um vírus terrível, são avessos a quaisquer planejamentos. A senhora falou que o planejamento levou muito em conta as vocações da cidade, mas elas são as piores possíveis. Na área da educação, as coisas não se resolvem, os planos estão aí multiplicados. Há um certo Plano Nacional de Educação, no Congresso, que não vai para a frente e, se aprovado, não terá nenhum reflexo no que diz respeito à qualidade da educação no Brasil, que está cada vez pior. Também, como nossa colega Lenina, já fui professor de planejamento e cansei de mostrar aos meus alunos as excelências do planejamento, que são excelências teóricas.
Fui secretário de educação no município de São Paulo e dizia ao então prefeito Figueiredo Ferraz, com a liberdade que tinha com ele, meu amigo querido: “Ferraz, você com essa história de que São Paulo precisa parar não vai chegar a coisa nenhuma, porque você pensa que é o prefeito, mas antes de você São Paulo tem dois prefeitos mais poderosos, um é a mobilidade, o carro, o veículo que obriga a abrir ruas conforme a conveniência do comércio, e o outro é a especulação imobiliária que comanda o processo. Você é o terceiro prefeito, há dois de facto e você é de jure.”
Então é preciso ter um projeto, não de longo prazo, mas acompanhado de outro projeto que é o da ação imediata, do pronto-socorro para a cidade. Ela tem muitos problemas, é preciso transformar os mais agudos em foco, em prioridade, e agir em cima disso.

LEDA – Nathanael, você disse que não acreditava um centímetro no planejamento. Pergunto: o que a gente faz então? Não planeja nada? Não faz nada? Sempre tive muito apreço pelo planejamento. Infelizmente, nos últimos anos, produto do espírito da época, ele se tornou uma palavra proscrita, saiu de moda, saiu do foco, junto também com todo um discurso de diminuição do papel do Estado e tudo o mais, porque quem faz planejamento é o Estado. O mercado funciona, o mercado não planeja. Os atores individuais planejam, mas não o mercado. O planejamento é nesse sentido uma atividade afeita ao Estado.

NATHANAEL – Planejamento é vítima da anticultura reinante. Ninguém acredita mais em racionalidade, mérito, prioridades. Tudo é tratado dentro de uma bandeira, hoje chamada de justiça social, que ninguém sabe o que é, mas que justifica tudo.

LEDA – O senhor colocou que o projeto tem de ser de ação imediata. Como respondi para Lenina, nosso foco é o da mobilidade, associado com a necessidade de fazer com que emprego e moradia se encontrem para reduzir o desequilíbrio socioterritorial da cidade. Houve uma ação imediata, que foi a das faixas. Enfim, vamos atacar aí.

NATHANAEL – Será que não vai piorar? Antes de fazer faixa, tinha de chamar os donos de ônibus e impor um regulamento para que o povo não fosse transportado feito gado.

LEDA – As contas do sistema tarifário estão sendo abertas, uma auditoria internacional foi contratada, já está investigando e o novo modelo de transporte urbano também está sendo gestado. Esse modelo de fato tem uma série de inconvenientes, que afetam a qualidade do transporte público. A mudança é uma das coisas que estão sendo discutidas.