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Anselmo Duarte - cineasta

Foto: Nilton Silva
Foto: Nilton Silva

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Nessa descontraída conversa com Anselmo Duarte pudemos conhecer a trajetória do menino que era “molhador de tela” do cinema da cidade de Salto (SP) até sua consagração como diretor premiado em Cannes. 

 

REVISTA: Fale um pouco da sua infância.

ANSELMO: Eu nasci na cidade de Salto, São Paulo e, como todo menino do Interior, ambicionava ser alguma coisa, mas era muito difícil porque a cidade não oferecia oportunidades aos jovens, principalmente aos jovens de família pobre, sem recursos. Tinham que trabalhar naqueles empregos que a cidade oferecia. Em Salto havia duas fábricas de tecidos, a Brasital e a Têxtil, e o resto só trabalhos domésticos. Eu era de uma família pobre, mamãe era costureira e criava oito filhos, ela perdeu o marido com oito filhos e foi uma heroína, uma mulher maravilhosa, uma grande mãe, uma grande mulher. Então foi isso. Uma cidade sem oportunidades, sem perspectiva nenhuma. Eu nem pensava no futuro, vivia brincando, era muito feliz quando jovem, como toda criança do Interior. Eu tenho a impressão de que todo menino do Interior tem sempre uma infância melhor do que a criança da Capital, o menino da Capital é muito preso, não pode sair à rua. Criança do Interior é criada com muita liberdade, na rua, nos campos, vai buscar frutas, vai ver uma porção de coisas que tem a natureza.

REVISTA: E sua mocidade como foi?

ANSELMO: De Salto já vim direto para São Paulo. Com 18 anos de idade vim trabalhar e estudar em São Paulo. Esse foi meu início, fui estudar economia, não podia fazer um curso superior, o máximo seria esse. Eu trabalhava em escritório, então fazia um curso de economia e me diplomei como perito contador que naquele tempo chamava-se guarda-livros. Nunca pensei em vida artística, meu negócio era contabilidade.

REVISTA: Como teve início a carreira artística?

ANSELMO: Num determinado dia passou uma pessoa na rua, chamava-se Alípio Ramos, era um homem de cinema, produtor de documentários e fazia jornal. O Alípio Ramos e o Eurides Ramos faziam os jornais. Sabe como é o jornal noticioso? Ele estava querendo deixar de fazer jornal, porque quando falavam em Alípio Ramos diziam: “Ele faz jornaleco!”. Ele queria ser produtor de filmes, com enredo e essa coisa toda, queria ter nome de produtor de filme, não de produtor de jornal. Então ele me viu na rua e eu gostava de me vestir bem, não era artista, mas gostava de me vestir bem. Eu tinha muita namorada, boa-pinta, então tinha que ter a roupa de acordo com a cara. Ele me viu na rua, me achou com cara de artista e viu o início da carreira dele como produtor de filmes, ele me achou assim com um tipo de ator americano, sei lá, e veio falar comigo. Falou se eu queria fazer um filme. Então, encurtando a conversa, eu passei a ser o primeiro ator do primeiro filme que ele produziu, ele me escolheu para ser o ator do filme dele. Eu fiquei contente, porque ele era uma pessoa honesta, tinha possibilidades, tinha dinheiro e era bem conceituado no ambiente cinematográfico. Escolheu a mim que tinha predicados para o cinema, tinha nascido para aquilo, mas ninguém sabia.

REVISTA: Há tempos o senhor já sentia inclinação para as artes?

ANSELMO: Desde menino gostava de representar em casa. Ele escolheu certinho. Depois ele se orgulhava, porque eu me tornei o mais importante ator do cinema brasileiro. Diziam que eu era o galã, o mais bonito, o mais isso, o mais aquilo, depois comecei a fazer drama, dirigi e passei a ser uma pessoa importante dentro da história do cinema brasileiro. O Alípio Ramos se orgulhava de ter me descoberto. Essa foi a história do meu início, do porquê comecei em cinema, porque gostava, porque queria e me adaptei bem.

REVISTA: E como foi o desenvolvimento de sua carreira?

ANSELMO: Tudo que eu fiz deu certo, tive muita sorte. Os filmes meus fizeram muito sucesso popular. Mas, falavam: “É porque ele é bonito e o filme dele é musical”. Depois fiz um drama e ganhei o prêmio em Cannes. Fechei a boca de todo mundo, Cannes não dá prêmio para qualquer um. Por quê? Porque eu fui concorrer com famosos, lá não concorri com meus colegas que competiam comigo aqui na cidade, lá fui competir com ingleses, americanos, franceses, etc. Eu dizia na época: “Em vez de ficarem me atacando, vocês deviam se orgulhar do Brasil”. Foi muito difícil para mim competir com aqueles países. Eu saí daqui para competir com os Estados Unidos, com a Inglaterra, com a França. Competi com Buñel, Fellini, De Sica. Eu sou brasileiro, me orgulho de ser brasileiro. Compreende? Eu sou assim, continuo assim e estou aqui ainda falando assim. São poucos os que podem fazê-lo neste país carente de bons exemplos.

REVISTA: Até porque a competência, nesse episódio, foi além de sua beleza.

ANSELMO: É lógico. Eu até detestava esse negócio de beleza. Sabe por que? Porque sempre justificavam meu sucesso por minha aparência física. Os homens invejosos falavam que galã era efeminado. Então quando falavam “ele é lindo”, eu dizia: “Que lindo o que?” Eu não gostava desse negócio de lindo, de bonito, com medo que achassem que eu fosse efeminado. Eu era briguento.

REVISTA: Briguento?

ANSELMO: Era bravo. Então foi difícil no início. Sempre quando o ator era feio era o grande ator. Um dia eu perguntei: “Por que todo vilão feio é grande ator?” O cara falou assim: “Anselmo, porque todo homem é contra o galã”. Sabe quem é a favor do galã? A mulher”. Quando as mulheres são a favor de um homem, os homens ficam contra, todo homem não gosta de galã. Se começar a elogiar muito o galã, eles falam: “Ah, mas ele é meio efeminado”.

REVISTA: O senhor molhava tela de cinema lá em Salto quando criança? Conte essa história.

ANSELMO: Tinha que molhar a tela porque ela esquentava, pois o projetor ficava muito próximo dela. Uma vez deve ter pegado fogo, não sei eles falavam... Mas, eu não trabalhava dentro do cinema. Eu ia lá para poder assistir o filme, como iam outros meninos da cidade. Havia um emprego que era o de “molhador de tela”. No tempo do cinema mudo, o projetor de filme ficava atrás da tela. Pouca gente sabe disso. Por que ficava atrás da tela? O filme já vinha preparado para projetar próximo da tela. Daí vinha aquela fama de que cinema fazia mal à vista, os pais diziam assim: “Não vá ao cinema que faz mal à vista”. O letreiro vinha ao contrário também, vinha preparado para esse fim. Sabe porque ficava atrás da tela? Porque não tinham ainda inventado uma lente que se chama teleobjetiva, que é de grande alcance, como é hoje, o projetor fica atrás do público e passa por cima da cabeça a grande distância. Não tinha essa lente ainda, a projeção saía e já tinha que encontrar a tela, era uma lente de pouco alcance.

REVISTA: Que idade o senhor tinha?

ANSELMO: Comecei com 14 anos. Com 14 anos eu já era “molhador de tela”. Para isso duas qualidades eram necessárias: primeiro gostar muito de cinema, porque se trabalhava de graça, só em troca de ver o filme. E depois tinha que ter um stoloc, que é uma seringa como essa de injeção, que os meninos faziam na rua para brincar. A gente fazia de um gomo de taquara, aquelas taquaras grossas. A gente pegava um gomo grande, fazia um furo na frente, um furo atrás, botava um pauzinho com um courinho, fazia uma seringa, puxava a água e espirrava a água. Todo menino tinha aquela seringa, nós chamávamos de estoloque, não sei por que. Então eles chamavam as crianças para ver o filme e para molhar a tela. Ia toda aquela garotada com aqueles aparelhos na mão e eu era um deles. Todo mundo tinha aquilo porque era com aquilo que a gente entrava no cinema. A garotada gritava: “olha o meu, olha o meu”, e eles escolhiam quatro ou cinco. Eu comecei a ver cinema indo molhar tela para poder assistir os filmes.

REVISTA: Como foi essa trajetória de “molhador de tela” para a direção de cinema?

ANSELMO: Ah, tanta coisa aconteceu. Comecei a trabalhar em cinema por causa da roupa também, eu me vestia bem.

REVISTA: Não foi também porque o senhor falava um pouco de italiano e em Salto isso foi importante?

ANSELMO: Sim, eu falava italiano. Sou filho de portugueses, mas em Salto todo mundo falava italiano porque a colônia é muito grande e as melhores escolas que tinha em Salto eram escolas italianas. Escola de desenho, escola disso, escola daquilo, era tudo de italiano. Então você aprendia a falar italiano e tinha escola de italiano também. Se quisesse estudar um idioma de graça, era italiano. Eu falo italiano até hoje, embora seja filho de portugueses. Minha mãe era costureira, uma pessoa famosa na cidade, modista, era quem ditava a moda na cidade, uma pessoa importante. Todos achavam minha mãe muito importante, era a única que tinha os figurinos em casa, figurinos franceses que ela encomendava. Tinha uma pessoa lá em Salto que vendia bilhete de loteria e ela dizia: “Quando o senhor mandar vir bilhete de loteria de São Paulo, manda vir figurinos também”.

REVISTA: Qual foi o seu primeiro filme?

ANSELMO: “Querida Suzana” foi o primeiro filme. Fiz o papel principal e a produção foi de Abílio Pereira de Almeida, Alípio Ramos e Luiz Severiano Ribeiro Jr., o exibidor.

REVISTA: E sobre a Palma de Ouro em Cannes com O Pagador de Promessa? Eu queria que o senhor contasse como é que foi. O senhor já freqüentava Cannes, não é?

ANSELMO: Sim, a companhia cinematográfica Vera Cruz estava com muita fama porque estava fazendo filme de padrão internacional. Certa ocasião ela inscreveu dois filmes, um foi o “Caiçara, em que eu não trabalhei e o outro em que fui ator, o “Tico-Tico no Fubá”. Por isso fui Cannes pela primeira vez.

REVISTA: O senhor contracenou com Tônia Carreiro, não é?

ANSELMO: Com Tônia Carreiro e muitas outras atrizes famosas. Eu fui convidado para o festival porque era ator do filme, eram dois filmes que representavam o Brasil. Não ganhamos nada, mas o único elogio que fizeram ao filme foi à beleza da Tônia Carreiro. Ela abafou lá, acharam ela a atriz mais linda do festival. Ela era muito bonita mesmo, então fez muito sucesso lá, não como artista, mas por sua beleza. Diziam que o meu papel no filme não exigiu uma grande interpretação. Um ledo engano dos críticos: fazer o papel de um homem do Interior, de um caipira, é muito mais difícil do que fazer o papel de um vilão cheio de gritos e tal. Isso é fácil, gritar, xingar, bater. Agora, ser humano, ser gente, falar como gente, falar com humanidade é muito difícil. Primeiro precisa ter qualidades humanas para saber o que é falar com humanidade. Segundo, ter educação. Aqueles que falam suavemente, que falam das coisas humanas, esses são os grandes artistas. O cara que vem gritando, que xinga e que bate, é fanfarrão, é um papel fácil de fazer. Impressiona o público. Mas eu sempre fui um ator de interpretações humanas, de pessoas do Interior, de pessoas humildes. Nunca fiz papel de vilão. Até chegou um tempo em que eu estava louco para fazer papel de vilão. E fiz: foi um filme que fez sucesso também, foi o filme mais fácil que eu fiz, porque o vilão só critica e a coisa mais fácil que tem no mundo é criticar.

REVISTA: Os nossos atores hoje estão mais próximos de fazer um bom papel de vilão ou ainda não?

ANSELMO: Eu acho que os artistas brasileiros evoluíram muito, porque foram criadas escolas dramáticas no Brasil que não existiam naquele tempo. Hoje temos bons professores, escola de teatro, escola de cinema, no Rio, em São Paulo, até em Campinas, cidade do Interior, já tem. Antigamente não tinha escola, nem de cinema e nem de teatro. Aprendia-se fazendo.

REVISTA: Sobre a Palma de Ouro em Cannes, o senhor venceu, bateu o Antonioni, o Fellini, etc.

ANSELMO: Cannes não é só Antonioni e Fellini. Em Cannes, todos os anos tem os melhores diretores de cinema do mundo, porque é o mais importante festival. É o mais importante, o mais famoso, o filme que vence em Cannes vende para o mundo inteiro. Então, todos querem vencer em Cannes. Um filme que ganha a Palma de Ouro passa a valer muito.

REVISTA: E o Fellini foi cumprimentá-lo?

ANSELMO: Sim, me cumprimentou. Havia muitos diretores famosos por lá, os melhores do mundo. Eles cumprimentam mesmo, são pessoas educadas. Podem não estar de acordo com a vitória, porque eu ganhei a Palma de Ouro e lá eles não dão duas, só uma. Mas cumprimentam o vencedor.

REVISTA: O Brasil reconheceu a conquista desse prêmio, único na América do Sul?

ANSELMO: O Brasil reconheceu através das pessoas que sabem reconhecer e as pessoas que não sabem, a gente perdoa. Não sabem nem o que é Cannes, então a gente tem que perdoar. O que você vai falar? Agora, para as pessoas que sabem você não precisa falar, a pessoa logo chega e diz assim: “Anselmo, nós ficamos orgulhosos quando você venceu o Festival de Cannes. Não somos mais campeões do mundo com os pés, agora somos campeões do mundo com a cabeça. Muito obrigado pelo o que você fez pelo Brasil”. São as pessoas esclarecidas, educadas, que sabem o que é Cannes. Então você não precisa falar, eu só agradeço. Quem freqüenta Cannes sabe o que os países fazem para vencer lá. Quem inscreve os filmes em Cannes são os países, porque têm muita despesa, têm que dar coquetéis, têm que dar reuniões, têm que chamar a imprensa, custa muito caro inscrever um filme em Cannes. Então os países que têm posses todo ano estão lá com todo o poderio. Nós aqui no Brasil, quando fui pedir dinheiro para viajar, para passagem e não sei o que, disseram assim: “Além de ser artista, de namorar as mulheres, ainda quer que a gente pague passagem para ele?”. Esse é o Brasil. O que vou fazer? Então, fui com meu dinheiro representa-lo e venci.

REVISTA: Foi uma grande surpresa para todo o meio cinematográfico?

ANSELMO: Ninguém esperava nada do Brasil. Eu não inventei coisa nenhuma, apenas fiz o que ninguém tinha feito, fiz um filme humano e filmei a verdade de um país. Era um filme com bastante humanidade, com bastante realismo, não era um filme pleno de técnica, era um filme bastante humano.

REVISTA: O pessoal do Cinema Novo o criticou muito, não é? Por que isso aconteceu como o senhor encara essas críticas?

ANSELMO: Tudo vem da nossa formação social. O pessoal do Cinema Novo, de um modo geral, eram jovens que tinham feito faculdade, tinham cultura, etc. e não faziam sucesso com cinema, estavam querendo inovar e não acertaram. Eu só fiz cinema e todo filme meu era sucesso, era sucesso de público, era sucesso de crítica. Então começaram a me criticar, a dizer que era um filme de ignorante, filme primário, começaram a menosprezar, diminuir. Demorou muito tempo para passarem a respeitar e a entender que cinema não é questão de colorido, que cinema é uma questão de inteligência e uma questão de mostrar a realidade através de uma das mais importantes artes que temos no mundo. Mas, é uma arte muito difícil. Eu sempre fui cineasta, nasci cineasta, desde menino já fazia cinema, desde garoto sempre gostei de cinema e sempre estudei cinema, sempre fui ver cinema.

REVISTA: O senhor acha que o cinema brasileiro hoje já tem um outro espaço, há menos no preconceito em relação ao seu valor?

ANSELMO: Ah, sim, ganhamos já muitos prêmios internacionais e hoje há mais recursos do que nós tínhamos naquela época e as escolas de cinema, academias de cinema, são mais bem preparadas. Está bem melhor o cinema brasileiro.

REVISTA: Numa sociedade que valoriza a beleza física como é que o senhor pensa a questão da passagem do tempo, a chegada do envelhecimento? Como o senhor reflete sobre isso?

ANSELMO: É uma coisa triste. É uma coisa triste porque você sabe que vai acabar, que o negócio vai terminar com o tempo, com o envelhecimento. Então você tem que esperar. São raros, mas tem alguns que mesmo com o envelhecimento continuam sendo bons atores. Diversos atores brasileiros continuam sendo reconhecidos bons atores mesmo com o envelhecimento.

REVISTA: Muitas pessoas interioranas vieram a São Paulo e formaram a indústria cinematográfica brasileira, como o senhor, como Moacir Fenelon, não é?

ANSELMO: É verdade, porque cinema você não podia fazer no Interior, então todo cineasta do Interior sonhava vir para São Paulo, porque em São Paulo estavam instalados os estúdios de cinema, os produtores de filmes. Na minha cidade não tinha ninguém que fizesse cinema, só eu falava em cinema lá. Todo mundo que eu conheço em cinema veio do Interior.

REVISTA: E o que o senhor tem a dizer aos jovens do Interior que sonham em fazer cinema?

ANSELMO: Que hoje não precisam sonhar com São Paulo como eu sonhava, porque ele pode no Interior fazer filmes e coisas originais que não tem na cidade de São Paulo e só ele é capaz de fazer lá. A câmera, aqui em São Paulo eles alugam ou compram. O técnico vai para lá. Diria que não pensem que têm que vir a São Paulo, podem fazer cinema no Interior e devem faze-lo porque o Interior tem muita originalidade e outros problemas para serem discutidos, para serem esclarecidos.

REVISTA: A arte sempre esteve acima da política na sua vida?

ANSELMO: Sempre esteve acima da política. Sabe o que é pior que a política? A inveja. Porque a arte proporciona uma vida maravilhosa para o artista, dá nome, dá prestígio e provoca muita inveja. As pessoas, às vezes, querem ser artistas não para representar uma peça, mas para ter nome, para ser famoso, para chegar em casa e falar: “Mamãe, seu filho está trabalhando no cinema, seu filho fez um filme”!

REVISTA: O senhor foi casado com a Ilka Soares.

ANSELMO: Eu fui casado com ela, tive filhos com ela. Ilka Soares era a mulher mais bonita do Brasil.

REVISTA: O senhor casou quantas vezes?

ANSELMO: Com a Ilka casei duas vezes. Eu estou falando uma coisa impossível e você está aceitando!

REVISTA: Casou duas vezes com a mesma pessoa!?

ANSELMO: Casei duas vezes. Casei, me separei dela e depois de um ano casei com ela outra vez. Eu a amava, mulher maravilhosa, muito feminina, gostava muito da Ilka, muito feminina. É o que eu gosto na mulher, gosto de mulher feminina, meiga.

REVISTA: Recentemente o senhor esteve em Cannes, eles fizeram uma homenagem a todos os diretores vencedores.

ANSELMO: Sim, fizeram. Fomos convidados para a comemoração dos 50 anos do Festival de Cannes, estavam lá só os vencedores da Palma de Ouro. Cada um estava com a “palminha” na mão.

REVISTA: Quais são seus projetos?

ANSELMO: Projetos? Não tenho, tudo o que eu queria já consegui.

REVISTA: Um sonho, um plano, o próximo filme?

ANSELMO: O próximo filme? Não, não estou pensando, é muito trabalhoso, muito trabalhoso. Não pretendo fazer mais nada assim, a não ser que apareça uma idéia boa. Um filme só pode ser feito, só deve ser feito quando você tem uma boa idéia. Fazer um filme só para dizer que dirigiu um filme é jogar dinheiro fora. Se tiver uma boa idéia, uma boa história, valerá a pena fazer um filme.

REVISTA: Esta revista é dirigida ao público interessado nas questões do envelhecimento, nas questões da vida. A gente sempre pede para o entrevistado que ele nos diga alguma coisa que acha importante deixar como uma mensagem para as pessoas que estão envelhecendo. O senhor tem algum recado para os velhos desse país?

ANSELMO: Eu dou o seguinte recado: algumas pessoas aqui no Brasil têm o hábito de ser superior não sendo superior e sim diminuindo aquele que é realmente superior. No dia em que perderem esse hábito de diminuir as pessoas que fizeram alguma coisa e merecem respeito e consideração. Tais pessoas devem ser enaltecidas, admiradas, citadas aos seus filhos como exemplo. É preciso que o brasileiro tenha orgulho de ser brasileiro e para ter orgulho de ser brasileiro ele deve começar a ter orgulho de brasileiros que merecem ser admirados.

REVISTA: Como você está vivendo o seu envelhecimento?

ANSELMO: Às vezes você se assusta quando está passando num lugar e olha para o espelho, você vê um indivíduo com o cabelo todo branco e descobre que é você. Quando você não está se olhando, está se sentindo ainda jovem. Eu estou com 85 anos, mas não falo como um homem de 85 anos, não tenho a voz de um homem de 85 anos, não ando como um homem de 85 anos, as coisas que eu faço não são de alguém com 85 anos, são de pessoas de 20, 30 anos. É uma coisa curiosa. Do que eu estava falando mesmo? Ah, outro dia olhei no espelho e levei um susto. Se eu estou falando com uma moça, me vejo jovem, como quando tinha 30 anos. Eu não me vejo velho. Olhei no espelho e me vi com a cabeça branca, levei um susto. Falei para ele: “Poxa, eu estou com a cabeça branca”. (risos) Estava branquinha, eu nem sabia que estava com a cabeça assim. É uma coisa curiosa essa.

REVISTA: Você faz regime alimentar?

ANSELMO: Nada. Nunca fiz nem para engordar, nem para emagrecer. Como tudo que eu tenho vontade de comer. Fumava que era uma barbaridade. Meu apelido era “o boêmio”. Eu tinha muitos amigos no Rio de Janeiro, na Fiorentina, no bairro do Leme. Eu era o último a sair do restaurante. Enquanto tivesse alguém para conversar, lá estava eu conversando. Ia todo mundo embora, chegava a sair o sol e a gente estava lá. Eu era o último a sair, então me chamavam de o boêmio Anselmo. Sabe quem é que me apelidou? Ah, o Bororó, compositor de “A cor do pecado” e Jorge Dória.

REVISTA: O senhor costuma fazer exames de saúde?

ANSELMO: Recentemente fiz mais de 20 exames de saúde, exame de sangue, exame disso, exame daquilo, até de Aids. Todos os exames, sem exceção, deram negativos, ou seja, tenho a saúde absolutamente perfeita. A pressão está melhor que a de um jovem: 13 x 8.

REVISTA: Como é possível que um indivíduo boêmio, que nunca fez regime, que nunca se cuidou, chegar aos 85 anos com essa saúde?

ANSELMO: Eu tenho a impressão de que é alegria de viver que dá saúde. Eu sou uma pessoa que tem muita alegria de viver. Eu tenho muita alegria em conversar, em conhecer pessoas, se a pessoa quiser conversar comigo, fico à disposição. Eu sou um homem muito feliz, é por isso, eu sou muito feliz. Detesto infelicidade. Tem pessoas que chegam e dizem assim: “Imagine você que lá em casa essa semana aconteceu isso e isso”. Tem gente que adora essas notícias e dizem: “Você não imagina, na minha casa foi pior”. Ele tem uma pior ainda: “Na minha casa, a minha sogra caiu e quebrou tudo”. Eu não tenho desse negócio. Eu sou uma pessoa feliz. Dizem que filhos dão muito trabalho, que é muito chato criar filhos. Para mim é uma alegria, é uma graça. Meus filhos gostam muito de mim. É audacioso falar uma coisa dessas, até dizem: “Você tem coragem de falar que seus filhos gostam de você? Você pode cair do cavalo, pode ser que não gostem”. Eu tenho certeza. Por que tenho certeza? Porque me acham muito engraçado e ninguém tem raiva de uma pessoa alegre, feliz. Meus filhos me acham muito engraçado, eu não sou daqueles que dizem “siga meu exemplo”. Não, eu não quero que sigam meu exemplo, quero que sejam melhores do que eu. E podem ser. O mundo está provando que os filhos são sempre melhores do que os pais, estão sempre melhorando. No meu caso está um pouco difícil, eu fui bom demais, (risos) mas isso já está passando. Mas eu não deixo. Quando começam a progredir muito, eu baixo o nível (risos). Mas meus filhos são muito inteligentes, todos eles.

REVISTA: Quantos filhos o senhor tem?

ANSELMO: Eu tenho quatro filhos. São todos bem resolvidos, todos são importantes, todos têm boa cabeça, inteligentes. Puxaram o pai, obrigado (risos). Das mães eles puxaram o que tem de melhor a mulher, que não é a inteligência, puxaram a beleza das mulheres.

REVISTA: De que modo o senhor ocupa o seu dia?

ANSELMO: Ontem disse a meu filho: “Veja lá, não vá cancelar a entrevista”. Estou sempre em atividade. Todos dias a primeira coisa que eu pergunto quando saio da minha suíte é sobre a programação do dia. A agenda do dia. Mas faço uma triagem, porque tem gente que vem só ocupar o tempo, faz entrevista sem repercussão nenhuma como aluno de faculdade de comunicação. Sou muito interessado em tudo, preciso manter-me em atividade, senão eu morro. Quando chega cinco e meia, seis horas da tarde, meu lado boêmio vem à tona e pergunto: “Onde é que nós vamos jantar?”. Na verdade, é mais para conversar que para jantar.

REVISTA: E como está a sua boêmia atualmente. Como é a sua vida de boêmio hoje?

ANSELMO: A gente ainda sai muito para “jantar” e às vezes o papo do “jantar” vai até de madrugada. Continuo firme, penso...

REVISTA: Queremos lhe agradecer muito por essa tarde tão divertida.

ANSELMO: Obrigado a vocês do SESC. Continuo à disposição.