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Carolina Maria de Jesus

Crédito: Audálio Dantas
Crédito: Audálio Dantas


Com trajetória excepcional, a escritora Carolina Maria de Jesus foi além do cotidiano da favela e do cânone literário ao construir uma obra reconhecida no Brasil e no mundo


“Não foi o que ela mostrou, foi o que eu encontrei”, diz Audálio Dantas sobre a riqueza dos diários de Carolina Maria de Jesus. A história vivida pelo jornalista, que remonta a 1958, impressiona ainda hoje. Na ocasião, Dantas era repórter da extinta Folha da Noite, e, a trabalho, foi parar na favela do Canindé (Zona Norte de São Paulo).

O encontro do jornalista com a aspirante a escritora e moradora da favela se deu enquanto ela se exasperava com alguns rapazes, por serem muito grandes para usar um playground recém-inaugurado na região. O parquinho era o motivo da visita do repórter. 
Foi então que Carolina ralhou com os jovens e ameaçou colocá-los como personagens de seu livro. Curioso e de alma aberta para ver e ouvir – como ele mesmo se qualifica –, Dantas seguiu a desconhecida até o barraco onde ela vivia e encontrou uma série de cadernos e diários com anotações, peças, provérbios, contos, letras de música, poesias e tudo o que cabia na escrita de Carolina.

O playground foi obrigado a ceder o protagonismo e Carolina se tornou destaque da matéria de Dantas. O texto, de maio de 1958, que saiu na Folha da Noite, retrata a catadora de papel e sua produção literária.

Sorte? Para Dantas, foi apenas o instinto de repórter: “Tive curiosidade e disposição para não ter preconceito, porque outros para quem ela tentou mostrar o material não quiseram se dar ao trabalho de olhar a sua produção. A diferença foi essa”. O jornalista foi responsável pela edição de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada (Editora Ática, 2007, 9ª edição), publicado em agosto de 1960 pela editora Francisco Alves.

Sobre o impacto do encontro com a escritora, Dantas relembra a personalidade forte de Carolina. “Ao mesmo tempo em que se colocava como vítima da situação e da sociedade, tinha uma atitude de independência”, resume.

Mania de escrever

A oportunidade mudou a vida de ambos. Carolina já havia tentado outros caminhos de levar a público sua obra. Frequentava as redações dos jornais e revistas da época. Segundo o jornalista, há um registro no jornal Folha da Noite, entre os anos de 1948-49, no qual ela visitou a redação e conseguiu publicar uma notinha, identificando-se como poetisa da favela.

A escritora nasceu em 1914, na cidade de Sacramento, interior de Minas Gerais. Sua mudança para São Paulo aconteceu em 1937. Sua chegada à favela do Canindé se dá em 1948. Antes de se tornar a autora do best-seller Quarto de Despejo, trabalhou como empregada doméstica na casa do médico Euryclides Jesus Zerbini, onde podia ler os livros da biblioteca particular nos dias de folga. Carolina teve três filhos, não conseguiu se manter num emprego fixo e trabalhava como catadora de papel até a sua estreia editorial.

A lacuna da falta de ensino formal – a escritora frequentou a escola por menos de dois anos – não a afastou de sua “mania de escrever”, como define Dantas. Para ele, também teve um grande peso na conquista uma vontade inerente a sua personalidade. “Pretendia e queria ser escritora. Tanto é que, antes de eu encontrar os originais, ela tinha tentado com várias editoras, jornais inclusive”, relata. “O diário era uma espécie de desabafo em função da vida que levava, ‘atabalhoada’, como costumava dizer. E era uma arma naquele meio em que vivia.”

O best-seller

Quarto de Despejo vendeu mais de 100 mil exemplares, tornando-se um grande sucesso editorial. Em um ano, equiparou-se em vendas a Jorge Amado e foi editado em 40 países e 13 línguas diferentes. O prefácio da edição italiana foi escrito por Alberto Moravia, um dos romancistas mais lidos da Europa. No Brasil, ganhou elogios de Clarice Lispector e do poeta Manuel Bandeira.

O título foi extraído dos diários compilados por Dantas. Em anotações, Carolina se queixa da aspereza do dia a dia na favela ao escrever que lá é o quarto de despejo da cidade, onde as pessoas jogam os trastes imprestáveis. Nos escritos ela faz definições, interpreta e narra as mais diversas situações. “É forte a capacidade narrativa e crítica de Carolina, mesmo sendo uma mulher que tinha tudo para não ser ouvida, como alguém destituído dos direitos humanos por sua origem negra e pobre num país racista e classista”, analisa a cientista social Raffaella Fernandez. “No entanto, ela definiu a favela, deixou jorrar sua veia quixotesca, abriu portas para que tantas outras Carolinas fossem ouvidas e valorizassem a própria personalidade.”

Ainda na opinião de Raffaella, doutoranda no Departamento de Teoria e História Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com pesquisa baseada nos manuscritos inéditos da autora, intitulada Narrativas de Carolina Maria de Jesus: Processo de Criação de uma Poética de Resíduos, a obra de Carolina se insere no contexto da contracultura e visibilidade das massas. “Isso devido ao período histórico que coincide com a época do governo de Getúlio Vargas”, explica.


Para lembrar e ouvir

Um ano após o lançamento do primeiro livro, começou a ser publicada uma série de obras com os diários e aforismos: Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-Favelada (1961), Provérbios (1965) e os póstumos Diário de Bitita (1982) e Meu Estranho Diário (1996). Além disso, ela escreveu o romance Pedaços da Fome (1963), e o volume de poesias Antologia Pessoal (organizado por José Carlos Sebe Bom Meihy) veio a público em 1996.

Carolina também pode ser ouvida ainda hoje. Em 1961, a escritora gravou suas composições em Quarto de Despejo: Carolina Maria de Jesus Cantando Suas Composições, lançado pela RCA. O disco pertence ao acervo do crítico musical José Ramos Tinhorão, que está sob os cuidados do Instituto Moreira Salles (www.radiobatuta.com.br/Episodes/view/563).

Na opinião da mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora da obra de Carolina, Sirlene Barbosa, o nome da escritora se insere no contexto de produção da literatura negra nacional. “Depois de ler Carolina Maria de Jesus e algumas de suas biografias, textos acadêmicos que a têm como objeto de estudo, notícias de jornais, posso afirmar que essa mulher foi uma socióloga da prática, sempre questionando a vida”.

Quando foram lançados, os livros que se seguiram a Quarto de Despejo não tiveram a mesma repercussão crítica e comercial. A escritora morreu em 13 de fevereiro de 1977, em Parelheiros – depois de uma passagem por um bairro de classe média, onde escreveu Casa de Alvenaria – e foi enterrada no cemitério da Vila Cipó, a 40 quilômetros do centro da capital. No entanto, sua contribuição já estava muito bem respaldada e influenciaria a formação cultural brasileira, especialmente para os escritores e artistas que produzem e se articulam na periferia das cidades, expandindo, também, o impacto e alcance de seus trabalhos.

Na avaliação de Audálio Dantas, os movimentos culturais que hoje existem demonstram a força do trabalho da autora. “O movimento cultural da periferia que vemos hoje tem muito a ver com a Carolina de Jesus. Escritores como Ferréz, Paulo Lins, Sacolinha (Ademiro Alves), entre tantos outros. Esse é um dos pontos importantes da trajetória de Carolina, suas reverberações”, completa.


Incrível jornada

Conheça outros escritores que enfrentaram o preconceito e viraram expoentes da literatura brasileira


Luíz Gama (1830-1882)
Um dos grandes escritores negros do Brasil. Em 1840 foi vendido como escravo pelo pai. Alfabetizado aos 17 anos, fugiu para São Paulo e, em 1850, frequentou o curso de Direito do Largo São Francisco. Lutou pela causa abolicionista e se destacou como jornalista e escritor, principalmente por seus poemas. Um monumento em sua homenagem pode ser visto entre as ruas Jaguaribe, Vitória e Arouche, no centro de São Paulo.


Lima Barreto (1881-1922)
Carioca, filho de pai mulato nascido liberto e de mãe também de família de escravos libertos, sofreu preconceito de uma sociedade que estava passando pelo processo que culminou com a abolição da escravatura. Tornou-se jornalista e notável romancista, publicou Recordações do Escrivão Isaías Caminha (Lisboa, 1909), Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915), Numa e a Ninfa (1915), Vida e Morte de J. Gonzaga de Sá (1919), Histórias e Sonhos (1920) e Os Bruzundangas (1922).


Solano Trindade (1908-1974)
Nascido em Recife, Solano atuou não só como poeta, mas também no teatro e cinema. Autodidata e militante da causa negra, ganhou notoriedade e respeito por sua trajetória e empenho pela valorização da cultura negra. Entre seus livros, Poemas de uma Vida Simples (1944), Seis Tempos de Poesia (1958) e Cantares ao meu Povo (1961).

 


Poéticas da resistência

Carolina Maria de Jesus é homenageada em seu centenário

O Sesc Belenzinho recebeu o educador e escritor Rodrigo Ciríaco, que é coordenador do Sarau dos Mesquiteiros (Sarau da Molecada), e outros autores, como Sacolinha (Ademiro Alves), Dugueto Shabazz, Raquel Almeida, na programação especial: Poéticas da Resistência – Centenário Carolina Maria de Jesus e Abdias Nascimento – que tematiza a vida e a obra de Carolina Maria de Jesus e Abdias do Nascimento.

Como parte da programação, foi realizado na biblioteca da unidade um encontro em homenagem à escritora e ao político e ativista. A atividade reuniu autores ligados à obra de Carolina e Abdias para tratar das trajetórias literárias, culturais e de vida, recitando textos e poesias inspirados na obra de ambos. “Carolina Maria de Jesus foi mulher, negra, favelada, semialfabetizada, dentro de uma sociedade machista, racista e que por muitos momentos desprezou (e em certos momentos, ainda o faz) a cultura popular, dos socialmente desfavorecidos”, resume Rodrigo Ciríaco. “E dentro de tudo isso, ela conhecia a força, a importância da literatura, da palavra. Ela é imprescindível para humanizar as relações, as pessoas, o mundo. Ter Carolina como referência é ter força, coragem, esperança.” O encontro aconteceu em dezembro de 2014.