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Carros

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti



Por Maria Alice Oieno Nassif

Ferramentas são dispositivos criados para prolongar uma determinada capacidade. O carro é, inicialmente, uma extensão das pernas, da capacidade de deslocar-se. Assim como o telefone é uma extensão da capacidade de conversar; a escrita, da memória; os óculos, de enxergar, de suportar a claridade; as roupas de suportar o frio e outros desconfortos; e por aí vai... O ser humano não hesita em prolongar-se.

Como a fabricação de ferramentas não é uma habilidade inata ou instintiva e não pode se propagar através de genes, a única maneira de passá-lo de geração a geração é através da tradição cultural, o ensino e o aprendizado por imitação, o que também pressupõe alguma forma eficaz de comunicação entre mestres e aprendizes. Esta poderia ser vista como uma das origens pragmáticas da linguagem.

Hoje não imaginamos viver sem nossos prolongamentos. Há que se pensar no aspecto da “tradição cultural”, em que determinadas possibilidades são transmitidas na sociedade e rapidamente exploradas pelos seus integrantes, com a complexidade possível.
Muito já foi comentado das simbologias do carro, que para muito além do deslocamento, aparece ora como ferramenta de demonstração de status, para os mais diversos fins, ora como uma cápsula de proteção dos perigos do mundo, ora contra o desconforto... E, nesse ponto, podemos iniciar um exercício de reflexão. Em nome do pretendido conforto comprometemos o ar que respiramos, o som que ouvimos, a mobilidade em si, comprometida seriamente justamente pelo excesso dos dispositivos criados inicialmente para aumentar a mobilidade. Paradoxos. Uma ferramenta de cerca de uma tonelada (já teve muito mais que isso) para carregar algo entre 70 e 80kg.

O Minhocão, o Elevado Costa e Silva, veio para acelerar a chegada aos pontos da cidade por ele ligados. Os prédios do entorno, foram sacrificados. Morreram. A rua embaixo dele transformou-se num quase túnel, meio escura e inóspita. Possibilita vencer essa distância mais rapidamente, mas a um preço bem alto. E um amigo ponderava: deveríamos usar a via férrea que já está lá, paralela e próxima, pronta... Precisávamos ativar esse meio, o férreo, com a dignidade que ele merece, na cidade. Opções. Políticas. Em um momento da nossa história, como país, foi oportuno facilitar a ampliação do uso da ferramenta carro pelas mais diversas razões.

A necessidade de deslocar-se, mover-se, ainda se mantém dada a agenda. Mais ferramentas, mais elementos na agenda. Daí mais necessidade de estar em lugares e tempos diversos e novas ferramentas são criadas. Podemos fazer as reuniões via Skype, mandar e-mails, mas há o momento presencial. Precisa estar lá. Daí é preciso deslocar-se espacialmente. E o carro não chega a seu destino pois há excesso deles. E as ruas para suportá-los impermeabilizaram o chão que agora alaga-se a qualquer chuva e não há passagem.

A reflexão é necessária pois orienta a articulação dos elementos culturais que mantém e modificam comportamentos e opções. Políticas, contratos e contrapartidas precisam ser ajustados. A cada dia o bem comum necessita articular-se com o bem individual de forma mais elaborada. Considera-se, pelo número de humanos inclusive, a necessidade de que o bem comum prevaleça sobre o individual, pelo menos algumas vezes. A coexistência em um planeta de sete bilhões de moradores humanos assim exige. Os combinados sociais têm de ser melhor elaborados e compromissos passarem a ser incorporados e cumpridos.


Maria Alice Oieno Nassif, bióloga e educadora ambiental, é gerente de Programas Socioeducativos do Sesc