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A versão brasileira do Vale do Silício

Indústrias de eletrônica e informática ao redor da Unicamp / Foto: João Prudente/Pulsar Imagens
Indústrias de eletrônica e informática ao redor da Unicamp / Foto: João Prudente/Pulsar Imagens

Por: CECILIA PRADA

Encravada a 99 quilômetros da capital paulista, e o terceiro município em população no estado, depois de São Paulo e de Guarulhos, a glamorosa Campinas impôs-se desde meados do século 19 como rival da capital, primeiro na hegemonia da cultura cafeeira, e sucessivamente, na industrialização. Fundada em 1774, completou 240 anos no dia 14 de julho de 2014, um conglomerado urbano cuja marca é a constante evolução econômica, somada a um nível cultural elevado, justificando seu antigo lema que dizia: “No trabalho e na virtude, a cidade floresce”. Segundo dados atuais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sua população é de 1.154.617 habitantes no município, e mais de 3 milhões em sua região metropolitana, formada por 20 municípios. Juntamente com a Grande São Paulo e a Baixada Santista, mais Jundiaí, Piracicaba, Sorocaba e Vale do Paraíba, integram o Complexo Metropolitano Expandido – a primeira macrometrópole do hemisfério sul, que concentra pouco além de 30 milhões de habitantes, isto é, mais de 75% da população total do estado.

No curso de sua história, até meados do século 19, Campinas evoluiu e teve perfis diversos, de simples rota de bandeirantes e entreposto de tropeiros a importante centro agrícola açucareiro. Dali por diante tornou-se hegemônica na produção cafeeira. Com as sucessivas crises enfrentadas pelo café, principalmente nos anos de 1930, gradativamente foi se transformando em importante polo industrial, abrigando hoje mais de 10 mil empresas de médio e grande porte. Campinas responde por 1/3 da produção industrial do estado, predominando nos setores de alta tecnologia e metalurgia. O polo petroquímico de Paulínia, a poucos quilômetros de Campinas, junto à Refinaria da Petrobras no município, é o maior do Brasil e um dos maiores da América Latina.

Em 2000, a cidade já era tida como a versão brasileira do Vale do Silício e estava listada entre os 46 mais promissores centros mundiais do segmento de microeletrônica. Situado na Califórnia, o Vale do Silício se esparrama por várias cidades daquele estado americano, abrigando empresas de ponta de eletrônica e informática. Campinas tem como vantagem o fato de estar bem localizada e dispor de atributos que a tornam atraente para os investimentos, como a superestrutura de transportes e excelente malha de comunicação tanto aérea, quanto rodoviária. O aeroporto internacional de Viracopos, por exemplo, um dos mais importantes do Brasil, fica dentro de seus limites geográficos. Além disso, com a alta disponibilidade de técnicos das áreas de física, química, engenharia elétrica, computação e matemática fornecidos pela integração com os “centros de saber” como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), fundada em 1966, e a Pontifícia Universidade Católica (PUC de Campinas), fundada em 1941, o Vale do Silício brasileiro exibe os mesmos fatores positivos que fizeram do congênere californiano um parâmetro mundial (produção técnica aliada a saber especializado advindo das universidades de Berkeley e Stanford). Em Campinas, zonas industriais dos setores eletrônico e de informática foram estabelecidas em torno do próprio campus da Unicamp, no subdistrito de Barão Geraldo.

Coube ao médico e professor Zeferino Vaz (1908-1981) o papel de presidir a construção e a organização da Unicamp, desde 1965 e foi seu reitor de 1966 a 1978. Aposentado, passou a presidir a Comissão Organizadora da Unicamp, cargo em que se manteve até sua morte. Estabeleceu ligações importantes entre a universidade e as empresas privadas e, priorizando o fator humano sobre os estruturais, contratou profissionais respeitados, no Brasil e no exterior, chamando de volta ao país também cientistas brasileiros que atuavam nos Estados Unidos e na Europa.

Produção cafeeira

Hoje, com um campus de 3 milhões de quilômetros quadrados e 32 mil alunos, a maioria dos quais nos cursos de pós-graduação e especialização, a Unicamp classifica-se entre as 15 melhores universidades-jovens do mundo (com menos de 50 anos de vida). Na mesma lista aparecem, porém, universidades nos Estados Unidos, na Bélgica, na Ásia (Cingapura e Hong-Kong), muito mais novas e ocupando os primeiros lugares do ranking. Posicionada em 206º lugar na classificação geral de universidades no mundo, em 2017 a escola superior campineira deixará de ser “jovem”, deixando de pontuar entre as melhores nessa categoria (dados da consultoria britânica QS). Então, cabe aqui uma pergunta: apesar de todo o legítimo orgulho que sua existência desperta nos brasileiros, não seria o momento de considerar a hipótese de um upgrading? Será que sem uma política firme de reestruturação e investimento nossas universidades poderão alavancar o sonhado desenvolvimento sustentável do país?

Hoje, somam-se à PUC e à Unicamp várias outras instituições de ensino de alta qualidade, como a Faculdade Campo Limpo Paulista (Faccamp), a Universidade Presbiteriana Mackenzie, a Fundação Getulio Vargas (FGV), a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e a Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação (Esamc). O município também sedia importantes institutos de pesquisas avançadas, entre os quais figuram a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS). E tem o Instituto Agronômico de Campinas (IAC), fundado em 1887 pelo Imperador Dom Pedro II para apoiar e incrementar, principalmente, a produção cafeeira, e que permanece até hoje como um centro de pesquisas capaz de garantir matéria-prima à indústria e alimento para a população.

A fundação oficial de Campinas, em 1774, deu-se quando o governador da província, Morgado Mateus, outorgou a Francisco Barreto Leme do Prado, o título de “Fundador, Administrador e Diretor da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso de Jundiaí”. Prado era original de Taubaté e se instalara na região com a família entre os anos de 1739 a 1744. Em 1797, já autônoma em relação a Jundiaí, a povoação foi elevada à categoria de vila, com o nome abreviado para Vila de São Carlos, e, em 1842, à categoria de Cidade de Campinas. Com a expansão periférica e a metropolização da área, o núcleo citadino, que teve no século 19 seu apogeu, amargou a redução de sua atividade social, comercial e cultural, mas pelo menos ficou de certa forma preservado dos riscos de destruição e desfiguração arquitetônica acarretados pelos objetivos de rápida e intensa industrialização. Sem deixar de ser cidade moderna e pujante, Campinas consegue assim salvar um perfil histórico e turístico interessante. Na expressão do grande cronista da cidade, o jornalista e romancista Eustáquio Gomes – falecido em janeiro de 2014 – “a Campinas oitocentista ainda é a mesma, embora recolhida à sombra de uma outra cidade”.

O historiador José Roberto do Amaral Lapa, fundador do Centro de Memória da Unicamp, salienta em seu livro A Cidade – Os Cantos e os Antros a nítida e constante coexistência de duas cidades – a vinda dos tempos coloniais, atrasada, de hábitos “caipiras” mesmo, de um conservadorismo extremo, arraigada na religião católica, aristocrática, despudoradamente escravocrata e conhecida pela crueldade contra negros e mendigos, confrontada, já nas últimas décadas do século 19, com outra urbe adiantada e “burguesa”, moderna, republicana, valorizadora nas artes e nas ciências, seduzida pela moda e pela cultura dos grandes centros europeus – para citar somente um exemplo, podemos lembrar que foi uma das primeiras cidades em todo o mundo a ter um sistema telefônico.

O pai da aviação

A história da cidade, todavia, registra pelo menos dois episódios que só demonstram preconceito e atraso em relação à ciência: o mais evidente é o do sacerdote católico Roberto Landell de Moura (1861-1928), gaúcho de nascimento, físico e químico com formação europeia e que exercia a função de pároco em Campinas. Nos anos de 1892 e 1893, ele realizou em São Paulo experiências pioneiras de transmissão de voz à distância – antecedendo em pelo menos três anos as investidas na área do italiano Guglielmo Marconi e merecendo, portanto, ser considerado o verdadeiro inventor do rádio. Mas, voltando a Campinas depois de seu grande feito, encontrou a porta da casa paroquial arrebentada e seu laboratório completamente destruído. Foi considerado “herege”, “louco”, “padre renegado”, “feiticeiro perigoso, com parte com o diabo”. Seus superiores eclesiásticos o obrigaram a desistir da carreira científica. Morreu em Porto Alegre, pobre, tuberculoso, anônimo e amargurado.

O segundo episódio é o de Hércules Florence (1804-1879), hoje reconhecido no Brasil e no exterior como “o verdadeiro inventor da fotografia” – técnica que desenvolveu em Campinas em 1832, isto é, sete anos antes do francês Louis Daguerre patentear seu “daguerreótipo”. Florence também nascera na França, em 1804, mas emigrara aos 20 anos para o Brasil. Depois de participar, como pintor, da Expedição Langsdorff (que percorreu o país de norte a sul, entre 1824 a 1829, fazendo registros de sua natureza e dando origem a um inventário do país no século 19), Florence radicou-se em Campinas, onde se tornou um cidadão rico, emérito, chefe de família numerosa, continuando sua carreira de artista e de cientista. Mas em 1834, desabafava em seu diário: “Eu inventei a fotografia [...] Minhas descobertas estão comigo, sepultadas no olvido [...] mas aqui não vejo ninguém a quem possa comunicar minhas ideias. Os que me poderiam ouvir só pensam nas suas especulações e na política”.

No último quartel do século 19 e nas primeiras décadas do 20, Campinas foi, por excelência, a cidade dos “barões do café” – famílias tradicionais, das quais sairiam muitos políticos, jornalistas, profissionais liberais destacados, como Júlio de Mesquita, Francisco Glicério, Bento Quirino. Nasceu aqui o 4º Presidente da República, Manoel Ferraz de Campos Salles (1841-1913), que ocupou o cargo de 1898 a 1902. Chegou a ser um foco de vida intelectual e política e abrigou temporariamente escritores e intelectuais – aqui Euclides da Cunha fez a revisão completa da obra que o imortalizaria, Os Sertões, em noitadas eruditas e trabalhosas, passadas com seu grande amigo César Bierrembach, que foi o fundador, em 1901, do Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA) – entidade que sobrevive ainda hoje, mantendo o Museu Carlos Gomes e uma histórica biblioteca. O escritor carioca Coelho Netto viveu alguns anos em Campinas, fez parte da diretoria desse centro e foi professor de seu mais tradicional colégio, de nome positivista, Culto à Ciência – no qual estudou durante alguns anos um menino superdotado que deu asas à sua imaginação e inventou o avião: Alberto Santos Dumont.

Nas ruas centrais é possível notar a superposição de estilos arquitetônicos diversos – a coexistência de edifícios modernos, na sua impessoalidade envidraçada, com prédios públicos, igrejas, escolas e majestosos solares que ainda parecem assombrados, como o do Barão de Itapura – hoje uma das sedes da PUC – ou o enorme Palácio dos Azulejos do Barão de Itatiba, que hoje abriga o Museu da Imagem e do Som. E tem o belo edifício do Jóquei Clube, da década de 1910, cuja construção levou dez anos. O poeta campineiro Guilherme de Almeida (1890-1969) evocava a atmosfera dessas enormes mansões: “Casarão. Esta palavra dá bem ideia de um oco sonoro, de um vazio enorme, acústico, retumbante, onde tudo reboa forte e longo... a mão estranha que bate na porta a desoras; o degrau da escada que range; a madeira do guarda-roupa deserto que estala...”.

A Catedral de Nossa Senhora da Conceição, cuja construção foi iniciada em 1807 e terminada em 1883 por Francisco de Paula Ramos de Azevedo, é notável pela sua riquíssima ornamentação interior barroca, em talha de madeira. Também de Ramos Azevedo é uma grande parte dos projetos arquitetônicos dos prédios públicos da época, bem conservados até hoje, colégios, hospitais, instituições oficiais e particulares – nos seus característicos corredores amplos, nos salões de altíssimos pés-direitos, temos a impressão de ouvir ainda o fru-fru das saias de tafetá das damas elegantes que entravam, pelo braço de maridos encasacados e dotados de lorgnons, para assistir a algum sarau literomusical. Estamos em 1902. O footing elegante processa-se ritualmente ao longo do Passeio Público (hoje avenida Júlio de Mesquita), enquanto ao longe – na evocação ainda de Guilherme de Almeida – “campainhando, vem vindo o bonde Aquidaban: três bancos só e dois burrinhos de olhos meigos”.

“Cidade-fênix”

Se foi reconhecida e admirada a tolerância política e até mesmo religiosa entre os membros das famílias aristocráticas, pelo grande parentesco que tinham entre si, foi sempre também denunciada uma atitude de extremo bairrismo na sociedade local. É o que diz o personagem-narrador irreverente, no romance A Febre Amorosa, de Eustáquio Gomes: “Nossos concidadãos eram tão altivos e orgulhosos que no estrangeiro, quando interrogados, respondiam em primeiro lugar que eram campineiros, só depois condescendendo em declarar que eram paulistas, e a muito custo admitindo que eram brasileiros”. Nessa época, o político Quintino Bocaiúva dizia: “Assim como os maometanos vão a Meca pedir inspiração a seu profeta, devem os republicanos vir a Campinas, não para pedir inspiração, mas para ver de perto como germina e se desenvolve a doutrina regeneradora da República”.

Nos últimos anos do século 19, a cidade disputava com São Paulo o privilégio de se tornar a capital da Província, mas perdeu a corrida devido às epidemias violentas, de varíola e, principalmente, de febre amarela – na mais demorada e destruidora delas, em 1889, houve um grande êxodo da população e Campinas chegou a ficar isolada, com dificuldades inclusive de abastecimento. Médicos e sanitaristas de São Paulo e do Rio de Janeiro, chefiados por Oswaldo Cruz, mobilizaram-se para socorrê-la. Uma de suas principais praças chama-se “Praça Imprensa Fluminense” (mais conhecida como “Praça do Centro de Convivência”) em uma homenagem aos vários jornais do Rio de Janeiro que participaram ativamente dessa campanha. Por ter conseguido superar a epidemia, que teve vários surtos, Campinas é tida como “cidade-fênix” e ostenta em seu brasão essa ave mitológica.

Hoje, Campinas – a cidade do compositor de óperas Carlos Gomes – continua, com razão, a ter orgulho de seus músicos e de sua Orquestra Sinfônica Municipal, fundada em 1974. Muitos deles desenvolveram brilhantes carreiras no exterior, mas nunca perderam seu vínculo com a cidade natal. Como exemplo, entre vários outros, podemos citar os pianistas Sonia Rubinsky e Fernando Lopes. A primeira, residente em Paris e atuante em todo o mundo, vem ainda ao Brasil regularmente, e apresenta concertos em Campinas até mesmo para plateias reduzidas. O segundo, após a aposentadoria, escolheu também a cidade para viver e ainda faz concertos, principalmente na Academia Campineira de Letras e Artes (Acla), da qual é sócio. Outro sócio ilustre desse sodalício foi o maestro e compositor José Antônio Rezende de Almeida Prado, falecido em 2010. É grande também o número de pintores de fama nacional e internacional que a cidade tem hoje – como Celina Carvalho, Paulo Cheida Sans, Dimas Garcia, Egas Francisco e Mario Gravem Borges, entre outros.

No campo literário, além da Acla, a cidade ainda abriga a Academia Campinense de Letras (ACL), fundada em 1956, a mais tradicional e antiga. Com a metropolização da região, porém, Campinas assistiu a uma acentuada redução de sua atividade cultural e social – poucos são os teatros e cinemas sobreviventes, localizados quase todos no interior de shoppings e mantendo programação norteada por exigências mais consumistas do que essencialmente artísticas. Exceção é o Cinema Topázio, com suas quatro salas situadas no Shopping Prado, que apresentam um repertório de filmes de alta categoria e de várias nacionalidades. Por iniciativa de seu culto gerente, essa casa de exibição possui também uma biblioteca circulante, gratuita. A cidade perde, em iniciativas culturais, para o subdistrito de Barão Geraldo e o vizinho município de Paulínia. Tem a Unicamp, que conta com um público jovem, universitário, e dá guarida a instituições culturais importantes, como o Grupo Lume, de teatro, um centro de pesquisa e criatividade reconhecido pelos profissionais do mundo todo. Paulínia tornou-se um polo nacional de produção cinematográfica e investe em edifícios de grande porte, destinados à atividade teatral e musical.

Para se ter uma ideia do como era a agitação cultural e de lazer da cidade no auge de sua importância, isto é, na segunda metade do século 19, comparando-a com a precariedade contemporânea, basta consultar uma lista elaborada por Amaral Lapa em seu livro, onde constam 59 sociedades literárias, musicais, carnavalescas, de canto, teatrais, recreativas, agremiações de classe e até de gênero (duas exclusivamente femininas, uma de dança e outra de pianistas), que foram fundadas e funcionaram no período 1853-1898. Diz o historiador que nessa época “havia em potencial uma população de usuários para tanto, isto é, para o convívio e o lazer”. E que embora, “pelos costumes da época, fossem destinados mais às famílias de posses, tudo leva a crer que as camadas intermediárias e os pobres se beneficiaram de alguma maneira dos serviços desses espaços”.